Era madrugada e Deus falou 

Terça-feira, setembro de 99, o dia realmente não havia dado resultados, nada fora produzido, nada havia mudado para melhor, nada de nada. Como não podia faltar nesses dias de melancolia, estava chovendo. Eu, com a sinusite mais viva do que nunca, tentava me controlar entre o mau humor e o desânimo. Para piorar o que já não vinha bem, ainda tinha aquele texto, que mesmo depois de semanas que havia sido escrito, ainda me atormentava com sua polêmica repercussão. Bastou tocar no assunto maldito (racismo) e pronto, aquele que antes só sabia contar amigos passou a colecionar ferrenhos inimigos. 

O problema não estava só em falar nesse mal social, que, no Brasil, a maioria prefere fingir não enxergar; o incômodo estava no fato de o texto obrigar o leitor a tomar uma postura, ou pelo menos enxergar aquilo que há muito tempo a peneira não tem conseguido tapar. 

Cheguei em casa de madrugada, desanimado, havia acabado de discutir pesado com mais um amigo, e, para completar a saga, havia ainda a minha casa, que, depois de um dia de desleixo, estava com a louça a ser lavada e o chão a ser varrido. Normalmente eu teria ido dormir, porém não me conformei em deixar mais uma pendência para o dia seguinte. Comecei pela louça. 

Enquanto lavava, meu pensamento vagueava entre a saudade de minha mãe e os atritos com os amigos. Esfregava os pratos engordurados e colocava-os organizados dentro da pia, para que, juntos, esperassem o momento do enxágüe; me senti bem ao lembrar de minha mãe ensinando-me, ainda menino, a lavar a louça daquele modo. Dizia: "Você precisa organizar as coisas para poder limpá-las, se começa a limpá-las sem organização, verá que no final estarão mal limpas e com certeza algo estará quebrado". Pensei na discussão, como era dificil separar as coisas, a amizade conquistada e o ideal a ser seguido, as polêmicas sempre são levadas "a ferro" para o lado pessoal, quando na verdade deveriam ser vistas no sentido amplo social. Não se deve ficar ofendido com opiniões contrárias, mas sim debatê-las com maturidade, trazendo a consciência limpa de quem busca soluções, e não somente o atrito. Mas como é difícil separar as coisas! 

Estava acabando de enxaguar os copos quando me veio outro pensamento sobre a infância: lembrava como eu gostava de observar os copos de vidro, especialmente aqueles grandes com relevos artísticos, que raramente eram usados; estes, só pegávamos em dia de visita. Na hora de lavá-los, mereciam zelo especial, mãos firmes e muita atenção para não derrubá-los. São como os amigos verdadeiros, grandiosos, transparentes, e não se pode enchê-los com qualquer coisa. Na hora de secá-los, lembrei-me de mais uma lição de minha mãe: "Copo não se seca por dentro, deve-se deixá-lo escorrer sozinho". 

Lidar com pessoas é algo complicado, são necessárias dedicação, perseverança e uma sensibilidade enorme. Precisa-se ter o perdão sempre à mão; compreender e respeitar os motivos do próximo é fundamental. Talvez, por conta disso, Cristo tenha tido tanto êxito com seus discípulos. Ele tinha o coração puro. 

Já acabava de varrer a casa quando recordei uma última lição de minha mãe: “Melhor dormir mais tarde, com a casa limpa, do que se deitar cedo com tudo sujo". 

(Helton Fesan; Cadernos Negros 26, p.67)  

O AVATAR

Alto, muito alto descia a rua. Montado em mula com trote seguro e tranquilo em plena tarde de domingo preguiçoso. 

Lá se ia em direção à praça de chão de mármore, contraposto com o verdejante gramado central. 

No centro da praça, um chafariz em forma de peixe, que fazia jorrar de sua boca um fino jato de água azul anil. 

Em volta da praça, Cafés com mesas na calçada, onde pais despreocupados retiravam de seus bolsos pala- vras elegantes e jogavam fartas conversas ao ar, formando um acúmulo de letras que boiavam sobre suas cabeças até o desaparecer sem sentido. 

Na fumaça das conversas flutuavam calotas croma- das, aparelhos modernos, áudio, vídeos e nets. Pairavam no ar o bom emprego, a promoção, os lucros e juros. 

De vez em quando, surgiam lascivas e libidos em forma de "cochicho fumaça", quase imperceptível aos olhos. Senhoras de alta classe vestindo o que chamavam de alta-costura, tiravam de suas bolsas palavras cosméticas, inovações cirúrgicas e pó de modas, que faziam questão de jogar bem próximo aos olhos das amigas. 

Descia a mula a imensa rua com seu corpo de pequena mula, e, sobre ela, aquele homem alto, muito alto, vestido de abadá branco, com barba farta e sorriso largo. Em torno de si, giravam folhas e palhas. Em torno de si, o tempo pulava em festa. 

A praça estava repleta de crianças que corriam como brasinhas de matizes variadas e enchiam os olhos de colorido. Menininhas e menininhos divertiam-se com palavrinhas que os pais lhes davam, jogando-as uns nos outros, só para vê-las estourarem no corpo alheio. E ficavam rindo, riam muito daqueles que eram acertados na brincadeira. 

Às vezes corriam às mesas de seus pais pedindo de forma imponente: 

Pai, eu quero! Mãe, me dá! 

E os pais, apressados em dispensá-los, com vontade de voltar ao jogo de palavras, abriam as carteiras ou bolsas, tiravam alguns "meu pai me deu", "minha mãe compro", e despachavam os pequeninos de volta à campanha. 

Algumas mães gritavam de vez em quando: Cuidaaado filha, não vá cair! 

Fiiilho, se pega no olho machuca! Era inútil, vez ou outra se ouvia o choro de algum azaradinho que vinha dizendo: 

Mã mã mãaaae ele acertou um "pai me deu" na testa! 

Ou então, seguia-se com triste ladainha em meio a soluços intermináveis: 

- Pá... pai, eu tava brin...can..cando... aí ve... veio o menino, pegou um "mãe comprô" e... e... pluft no meu olho! 

-E você não descontou? 

-Nã... Nãaao! 

Toma aqui um "TE COMPREI" bem grande. Vai esfrega na cara dele! 

E saía a criança contente por poder voltar à brincadeira com munição maior e melhor. 

O enorme homem, da mula pequenina, chegou à praça e ajeitou suas bugigangas. Era um Alabê andarilho e trazia um saco cheio de instrumentos e artefatos místicos. 

Tomou de tambores e toava gostosa melodia infantil convocando a molecada, jogando ao ar palavras brilhantes, que, tiradas do saco mágico, explodiam no céu. 

Eram letras de artifício, que de tão reluzentes trouxeram todas as crianças da praça ao seu redor. Vinham curiosas, eufóricas, formando um cerrado saltitante em torno do homem da mula, aquela imensa árvore de tronco alvo e copado negrume, feliz e frutífero de pensamentos. 

Tamanha era a algazarra dos códigos que explodiam, que até os pais passaram a dar um pouco de atenção ao inusitado personagem. 

Diziam entre si: 

É vendedor de palavras doces! Bom para as crianças, que terão algo diferente para ver! 

Reparou como ele é alto? 

Que roupa é aquela? Estranha... 

Esta cor... é fora de época... destoa... De qualquer forma, não paravam seus jogos. Tudo seguia igual. 

A vida negritava naquela tarde esbranquiçada a felicidade dos pequeninos. 

Entre os adultos só o ser despeito crescia. 

Quando estavam todas as crianças reunidas no centro da praça, o enorme homem inclinou-se um pouco e estendeu as duas enormes mãos em forma de alguidar na direção dos pequenos, que, por encanto, depositavam na concha as palavras caras que os pais lhes haviam dado. 

As caríssimas murchavam diante dos olhos de todos até desaparecerem por completo. A enorme barba crespa e farta do imenso homem abriase em boca soltando bolas de sabão, soltando vissungos... 

Os pais ficaram confusos, já que do buraco de sua barba as palavras tornavam-se arco-íris circulares que pareciam vir do nada e em quantidades absurdas. Alguns diziam descrentes: 

- É truque! Um amigo meu faz isso, deve ter uma bolsa escondida debaixo dessa roupa esquisita, não vê como é larga? Outros se animavam em gritos e chamados que misturavam entusiasmo e azedume pelos feitos. Falavam com veneno: Agora tira uma "palavra carro", tem que ser zero quilômetro! Pra mim, uma "frase casa na praia", duplex! 

Quero ver fazer isso com as palavras de meu marido! Cả, cá, cá cá cá... Alguém havia levado um saco de pequenos despeitos afiados que passaram a ser arremessados contra os vissungos, que explodiam no ar tornando-se palavrões. 

O homem, enorme gameleira-branca, não se abalava. Fez subir um vento que misturava as letras e as tornava poesia flutuante. Depois estouravam e desciam em forma de chuva prateada arrancando exclamações de surpresa das meninas e meninos da Olá...Oiá...Oiá... praça: óia...óia... 

Em certo momento, aproximou-se um senhor com trajes finos, sapatos caros e jornal do dia debaixo do braço, parou em frente ao mago e, de forma até elegante, fez sinal para que o grande homem parasse sua apresentação, o que foi ignorado. 

Cavalheiro, como posso chamá-lo? — perguntou o nobre senhor. 

Ir. 

- Ir? Ir pra onde? 

Ir pra sempre... 

Bem Sr. Ir, não quero que me entenda mal... 

Não te preocupe, eu entendo tudo perfeitamente. 

- Bem, Sr. Ir, não quero ser indelicado, mas fato é que não poderá continuar a exibir seu espetáculo nesta praça, pois é... proibido. 

Diga de novo! Mas... explique por que me in 

Digo por que a lei o diz! 

-Se a lei diz, já foi dito. Mas acredito que a mesma não me interdiz, logo, não posso estar interdito só porque o senhor me diz! O homem ficou confuso, com olhar distante. Depois voltou: 

O senhor perturba a paz e a ordem! 

A paz não se abala, mas a ordem... Ordem de quem? - pergunta debochando sem parar a brincadeira com os mirins. 

Ordem! Ordem das coisas! responde irritado. 

Mas as coisas não dão ordem, as pessoas sim! O homem passou a achar aquela entidade que já era alta, ainda mais alta. Tão alta de barba farta que crescera a ponto do abadá, agora caído dos ombros, tornar-se mera faixa, simples ojá. 

O homem, antes brioso, precisou de instantes para se repensar. 

O gigante estendeu a mão e chamou as crianças para debaixo dela. Os pais, antes espectadores, levantaram-se com a vontade de recolher seus filhos, mas ele abriu a boca e soltou demorados contratempos no que os pais inclinaram-se e de seus bolsos caíram "palavras quinhão". 

Dos pescoços das mães soltaram-se diamantes ditongos Hiatos de ouro desprendiam-se de suas pulseiras ditongos. e iam ao chão. 

Tudo rolava contente aos pés das crianças que riam e amontoavam as palavras de riqueza debaixo dos pequeninos pés, servindo de degrau para que as cabecinhas se e encostassem à palma da mão do imenso Sr. Ir. 

As enormes mãos se enfiaram na barriga rasgando-a e fazendo um Zambiiiiiiiii. 

Abriu-se um negrume estrelado e o vento corria de dentro deste céu barriga. De lá saíram crianças magras e famintas que engoliram os pais, que comeram a mula, a praça, o ouro, e calaram tudo. 

Sobraram as crianças e o chafariz. 

Os pequenos coloriram-se nas águas e cirandaram de mãos dadas. 

E não mais juntaram palavras, e não mais envelheceram. 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol. 30; p.101) 

Anseios  

 

Quero seus cabelos  

crespos 

Ávidos beijos  

Quero seus cheiros  

Seus seios  

 

Quero ser negro  

Senho no  

Áfrico leito  

Quero seus arpejos  

Seu desvelo 

 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol.37; p.120) 

O PALHAÇO NO PÁTIO

Sorria no meio do pátio da escola. 

Um sorriso aliviado de quem chega ao fim. 

Rodava com os braços abertos como quem deseja abraçar o vento (ou o vento que deseja ser abraçado). 

Uma mistura de coisa e gente rodopiava na sua cabeça. Não eram rostos, era um borrão que ria. 

A mesma sensação de sempre, mas estava cansado de fugir de um fim que julgava certo. 

A platéia ria inocente, se divertindo com a cena - é só mais uma: 

Como da vez que fora pra aula todo sujo; que apareceu com a cabeça raspada; que mijou nas calças; que chorou na frente dos amigos porque não tinha pai; que fora pego fumando; que xingou a servente; que tirou as calças no meio da sala; que queimou as carteiras; que explodiu a privada do banheiro; que sumiu da escola por quinze dias; que roubou a carteira da professora; que jurou de morte o aluno da 5ª E que lhe chamou de preto sujo... 

O palhaço mostra a arma para todos verem dos fogem. 

Põe a arma na cabeça - todos gritam. 

Atira - morre só. 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol.30; p.109) 

Ouvindo vozes 

 

Tinha uma luz radiante que vinha depois do fim  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências,  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

Fui mesmo assim,  

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Tinha caneta, lápis e papel pra colorir  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências,  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

Fui mesmo assim, 

Vai ver que a voz é que não era pra mim. 

 

Tinha um trabalho, horário, conta e dim-dim 

E ouvi uma voz sussurrando maledicências, 

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti. 

Fui mesmo assim,  

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Tinha família, filhos bonitos e pretins  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências, 

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti. 

Fui mesmo assim, 

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Outra luz e um aviso; PERIGO! 

(PARE, NÃO PASSE DAQUI!)  

A voz calou e eu não sabia como agir 

Pensei comigo, se havia chegado até ali  

Não custava nada insistir.  

 

Fui em frente e comecei a ouvir gritos:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E agarravam meus pés, e tentavam me impedir  

Eu andava mais rápido e mais forte  

Com pressa de chegar, cuidado para não cair.  

 

E gritavam ao meu redor:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E eu repetia pra mim mesmo:  

Esses gritos não são pra mim. 

Minha esposa, meus filhos, meus amigos  

Tantos que fiz pelo caminho 

 Correram pra me acudir. 

 

E gritavam com eles e comigo:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E eu repetia pra mim mesmo:  

Esses gritos não são pra eles,  

Não são pra mim.  

 

Até que cheguei. 

Cansado, machucado, mas feliz  

Eu era rei 

E alguém perguntou:  

Tantos insultos, como pôde resistir?  

Respondi: Aqueles gritos nunca foram pra mim.  

As vozes calaram  

E as mãos que me seguraram  

Tiveram que me aplaudir. 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol.37; p.118-119)