Poemissão

...desenzalar

a cognição, desacoturnar

as veredas,

 

desconhecer as fardas

e desenquadrar as

esquinas,

 

aguçar as teias,

esparramar pigmentos

plantar nas brechas da carne

 

encrespar

as espirais,

me aquilombar

na confluência malunga,

 

me umbigar nos quintais

como semente forte,

fecunda

 

receber passes

de agrado e segredo

me nutrir da doçura

dos grandes pequenos

 

amar...

com mais cor,

escurecer a

afirmação

 

pra firmar os vestígios,

aquecer os silêncios

de vida e presença

aos que virão.

(Acorde um verso, p.16-17).

Sereia

arabô ayô!

arabô ayô!

odò ìyá rainha!

tu que és musa

soberana dos poetas

 

embala toda essa gente

que faz terreiro no seu quintal

e clama proteção

em barquinhos de esperança

 

agita tua imensidão

em ventos salgados

e maré de bom agrado

 

para a brisa do teu cheiro

espalhar chuvas

de pipoca e canjica

no seu grande dia.

(Acorde um verso, 2014, p.48).

Várzea, batuque e serpentina

O samba me pegou na mão e me fez arrepiar, ainda menino, na várzea. O futebol me deu as primeiras intenções de batucar no corpo, imitar os ritmos, os repiques, e namorar uma bateria.

Todos os domingos, eu ia ao campo do União, pertinho de casa, ver os jogos, principalmente do Escudo Negro e do Ajax, e chegava mais cedo só pra ver a bateria surgir. Os meus vizinhos com os instrumentos na mão faziam brilhar meus olhos, pela força e pela festa que pulsavam das baquetas.

Às vezes, quando o jogo do Ajax era fora de casa, eu ia no caminhão, escondidinho, e me nutria daquela adrenalina, desde a saída na sede (no buteco do Zé Pretinho), onde um quadro informava o jogo da semana.

Ficava lá esperando a peleja começar e torcendo pra alguém da bateria me reconhecer, me chamar pra tocar, me perguntar se eu queria aprender...

Isso nunca aconteceu, na maioria das vezes nem percebiam minha presença. Pensava que era pelo meu tamanho, mas tinha a ver com certo feitiço que paira em quem toca na bateria, e por mais que a falta de coragem me mantivesse distante, eu era enfeitiçado também.

No samba da várzea o coro da torcida não tem letras ensaiadas, versos rimados, palmas em sincronia, mas a cornetagem é de dar dó, em vozes não muito numerosas, mas vibrantes, acompanham o ritmo e aguardam ansiosas a apoteose do gol, obra dos príncipes de ladeira.

Como não consegui tocar na bateria, sonhava em jogar embalado por essa magia.

Tempos atrás os instrumentos foram proibi­dos nos estádios, por causa da violência, e gra­ças à várzea, o samba continuou em sintonia com a bola, e o futebol em SP não se tornou aquela coisa pomposa de violino e ópera da Champions League.

Foi assim que assumi o samba como trilha sonora do futebol. Foi na marcação do surdo ditando o toque de bola, no repique bailando a cadência do drible, no solo da caixa inspirando a correria do ponta-esquerda, na ginga que emana da várzea.

O laço entre o samba e o futebol na cidade é firme e não se desfaz. A batucada que começa na sede, firma no busão e sacode nas canchas de terra, tem fundamento nos blocos de carnaval que representam os bairros e nas torcidas organizadas, onde a maioria se divide entre a emoção da beira de campo e o calor do sambódromo.

Sempre quis ser um jogador profissional, o talento e a sorte não ajudaram, mas pelo menos realizei meu sonho varzeano: o de subir poeira, com o pé na bola, ouvindo o batuque, a bateria de alambrado e assim fiz do futebol a minha folia e do terrão a minha avenida.

(Crônicas de um peladeiro, p. 46-49).

 

 

Poemissão

...desenzalar

a cognição, desacoturnar

as veredas,

 

desconhecer as fardas

e desenquadrar as

esquinas,

 

aguçar as teias,

esparramar pigmentos

plantar nas brechas da carne

 

encrespar

as espirais,

me aquilombar

na confluência malunga,

 

me umbigar nos quintais

como semente forte,

fecunda

 

receber passes

de agrado e segredo

me nutrir da doçura

dos grandes pequenos

 

amar...

com mais cor,

escurecer a

afirmação

 

pra firmar os vestígios,

aquecer os silêncios

de vida e presença

aos que virão.

(Acorde um verso, p.16-17).

 

 

Mapas de asfalto

há tempos que o céu

das beiradas

acorda cinzento

 

as pedras ficam intactas

endurecendo vidas

pelas esquinas

 

 

a esperança passa

como ventania

pelas ladeiras

 

e o asfalto grita

denunciando

mentiras vencidas

 

são heranças de uma

cidade açoitada

em silêncio

 

nos mocambos de hoje

germina a resistência

do amanhã

 

em cada quintal

um traçado

autoestima se firma

 

no olhar da mulecada

vejo uma trilha

sedenta de história

 

é batuque,

rodeando as intenções,

cravando horizontes

 

grafitando nos

muros, poemas

da nossa virada

 

declamando ação,

sacudindo vozes

 

e na espreita das ruas

ecoam as rimas

num versar ritmado de redenção!

(Acorde um verso, p.22-23).

 

Sereia

arabô ayô!

arabô ayô!

odò ìyá rainha!

tu que és musa

soberana dos poetas

 

embala toda essa gente

que faz terreiro no seu quintal

e clama proteção

em barquinhos de esperança

 

agita tua imensidão

em ventos salgados

e maré de bom agrado

 

para a brisa do teu cheiro

espalhar chuvas

de pipoca e canjica

no seu grande dia.

(Acorde um verso, 2014, p.48).

 

Várzea, batuque e serpentina

O samba me pegou na mão e me fez arrepiar, ainda menino, na várzea. O futebol me deu as primeiras intenções de batucar no corpo, imitar os ritmos, os repiques, e namorar uma bateria.

Todos os domingos, eu ia ao campo do União, pertinho de casa, ver os jogos, principalmente do Escudo Negro e do Ajax, e chegava mais cedo só pra ver a bateria surgir. Os meus vizinhos com os instrumentos na mão faziam brilhar meus olhos, pela força e pela festa que pulsavam das baquetas.

Às vezes, quando o jogo do Ajax era fora de casa, eu ia no caminhão, escondidinho, e me nutria daquela adrenalina, desde a saída na sede (no buteco do Zé Pretinho), onde um quadro informava o jogo da semana.

Ficava lá esperando a peleja começar e torcendo pra alguém da bateria me reconhecer, me chamar pra tocar, me perguntar se eu queria aprender...

Isso nunca aconteceu, na maioria das vezes nem percebiam minha presença. Pensava que era pelo meu tamanho, mas tinha a ver com certo feitiço que paira em quem toca na bateria, e por mais que a falta de coragem me mantivesse distante, eu era enfeitiçado também.

No samba da várzea o coro da torcida não tem letras ensaiadas, versos rimados, palmas em sincronia, mas a cornetagem é de dar dó, em vozes não muito numerosas, mas vibrantes, acompanham o ritmo e aguardam ansiosas a apoteose do gol, obra dos príncipes de ladeira.

Como não consegui tocar na bateria, sonhava em jogar embalado por essa magia.

Tempos atrás os instrumentos foram proibi­dos nos estádios, por causa da violência, e gra­ças à várzea, o samba continuou em sintonia com a bola, e o futebol em SP não se tornou aquela coisa pomposa de violino e ópera da Champions League.

Foi assim que assumi o samba como trilha sonora do futebol. Foi na marcação do surdo ditando o toque de bola, no repique bailando a cadência do drible, no solo da caixa inspirando a correria do ponta-esquerda, na ginga que emana da várzea.

O laço entre o samba e o futebol na cidade é firme e não se desfaz. A batucada que começa na sede, firma no busão e sacode nas canchas de terra, tem fundamento nos blocos de carnaval que representam os bairros e nas torcidas organizadas, onde a maioria se divide entre a emoção da beira de campo e o calor do sambódromo.

Sempre quis ser um jogador profissional, o talento e a sorte não ajudaram, mas pelo menos realizei meu sonho varzeano: o de subir poeira, com o pé na bola, ouvindo o batuque, a bateria de alambrado e assim fiz do futebol a minha folia e do terrão a minha avenida.

(Crônicas de um peladeiro, p. 46-49).

 

Mané Garrincha de Lima Barreto

Muitos acreditam que a mentira só deixa de ser imoral na excelência dos escribas, já no futebol a mentira é camisa dez. Há tempos, decide, dita o ritmo da peleja, no vai-não-vai, fez­que-foi-mas-não-foi, no da vaca, na pedalada, no chapéu, na paradinha, no rolinho. Se você aprecia literatura e futebol ou uma das duas artes, sabe que tem um bom gosto por mentiras.

Não há nada mais mentiroso que um drible, o momento mais poesia da bola. O drible é um concreto fingimento, uma enganação. Todo driblador é imoral, cafajeste, sangue frio, não tem piedade de quem mal conhece, como fazia Mané Garrincha com seus Joões.

Na literatura, a mentira também é tempero essencial. Mesmo quando os livros nos envolvem em fatos reais, o escritor – malicioso como um atacante –, nos transporta ao seu mundo pela mentira.

Acreditamos em suas palavras, imagens, cores e rostos criados pela mágica da engabelação; ou será que Castelo seria contratado como professor de javanês, pelo Barão de Jacuecanga, se não fosse pelo 171 perspicaz de Lima Barreto?

O que dizer do pandemônio que virou a pacata Tubiacanga, uma cidade revirando defuntos para desvendar o segredo do ouro de Raimundo Flamel? Esse é um dos maiores dribles da literatura brasileira, como a jogada clássica de Mané na ponta direita, que desnorteou os gringos na Copa de 62, uma história canônica, como é A Nova Califórnia.

Na bola e na página a mentira é uma entidade, sobrenatural. Para deixar de ser o humilde Manuel Francisco e se tornar o eterno Mané Garrincha, ir de um simples Afonso Henriques a um célebre Lima Barreto, é preciso, antes de tudo, ser um mentiroso de alma.

Na bola e na página a mentira não requer só técnica, senão os melhores mentirosos viriam das escolinhas de futebol ou dos cursos de criação literária. Para ser um mentiroso imortal, é preciso poetar com bola, é preciso driblar com a caneta.

Na página, o leitor é como um torcedor fanático, e deve estar de poros abertos para sentir as mentiras que os escritores pregam, pois todo torcedor e todo leitor gostam mesmo é de sentir mentiras que valem a pena, daquelas que depois de um gol ou ao final de um romance, dizemos: “Essa sim é uma verdadeira mentira!”.

Ninguém gosta daquele zero a zero truncado, sem chute a gol, com uma falta a cada dez segundos, dá sono. É como um livro mal escrito, que a gente larga no meio e deixa esquecido, o jogo se apaga da memória e o livro se cobre de poeira em um canto qualquer.

Os boleiros, assim como os escritores, aplicam sua magia com a caneta, um debaixo das pernas de um João, o outro costurando palavras como num gol antológico, em ambos os casos é preciso fôlego e uma boa estratégia.

Os mais experientes ensinam que, nas pelejas, quem corre não é o jogador, é a bola, e nas letras as histórias fluem com vida própria, não se deve aprisioná-Ias.

Lima era um prosador ousado como um ponta, craque com as letras. Garrincha mal sabia ler, assinou até contrato em branco, mas escrevia poesias com as pernas tortas. Mané, provavelmente, não gostava de literatura, assim como Lima odiava football. Mané foi o Lima da bola e Lima o Garrincha da página. Tornaram-se imortais, por serem sacerdotes de mentiras sagradas. Por pouco não foram contemporâneos. Uma pena! Se os dois se encontrassem para tomar um trago, é certo que fariam uma boa tabelinha.

(Crônicas de um peladeiro, p. 56-58).

 

 

Entre pelejas e carapinhas

Eu pensava que raspar e alisar o cabelo entre a boleirada, começou mesmo com Ronaldo e Neymar, mas lendo o clássico O negro no futebol brasileiro de Mário Filho, percebi que isso é tão velho quanto as causas do fato.

Friedenreich já apontava esse comportamento desde o início do século 20. O primeiro a fazer mil gols é descrito como um mulato (filho de uma negra com um alemão), que antes de entrar em cada partida ficava se esforçando em manter a madeixa estivada, ou com um gorro, caso contrário não subia em campo. Esse não era um caso raro, só o mais famoso.

Pouco depois veio a era do pó de arroz, como artefato principal dos jogadores negros do Fluminense, pra dar o tom da brancura antes dos Jogos e não desagradar os torcedores e nem a cartolagem do time da elite carioca. Até porque negros no futebol profissional eram uma novidade, já que ninguém os queria. Por Ironia, o primeiro a apostar no talento dos jogadores negros foi o Vasco, o time da colônia. Fato que contou com a admiração de Carlos Drummond de Andrade, pois o poeta declarou ser torcedor do Vasco por ter sido o primeiro time a assumir a negrada.

O apelido de “pó de arroz” ficou na torcida do Fluminense, e por conta de ser tricolor e formado pela elite da cidade, esse apelido foi estendido à torcida do São Paulo. Há quem afirme que a prática do pó de arroz também contagiou os jogadores paulistas, mas a contradição é que o tricolor do Morumbi contratou Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, poucos anos após sua fundação em 1942, e em 1947 contava com Adhemar Ferreira da Silva, o “ouro negro brasileiro”, bicampeão olímpico em 52/56 (salto triplo), na sua equipe de atletismo.

Outro fato curioso é que o São Paulo foi o primeiro clube a contar com mulheres negras no atletismo, como no caso das velocistas Melania Luz, primeira atleta negra do Brasil a participar de uma Olimpíada, em Londres (1948) e Wanda Santos, medalhista pan-americana em Buenos Aires (1951), México (55) e Chicago (59), segunda mulher negra brasileira em Olimpíadas.

A aceitação dos atletas negros e negras no futebol e no atletismo não tem como ponto principal a superação do racismo e sim o desempenho acima da média desses atletas, e os casos pioneiros de Vasco e São Paulo são positivos, mas devem ser relativizados. Pois, mesmo depois de estarem no quadro de atletas profissionais, os jogadores negros ainda tentavam se embranquecer na cor e no cabelo.

O curioso é que Mário Filho aponta Pelé, criticado por sua indiferença com as lutas da comunidade negra, como pioneiro em manter a carapinha, com seu famoso topete, em meio aos neymares do século passado. Tanto que, não só por causa dele, o espetacular Santos dos anos 60/70 era requisitado mundialmente, inclusive na África, onde foi apontado como o time do pan-africanismo, apesar de alguns jogos terem sido armados para dar uma moral populista aos ditadores na África e Pelé ter se recusado, anos depois, a receber uma homenagem dos Black Panthers nos EUA, quando foi atuar no Cosmos de Nova Iorque. Dialéticas da bola.

Já nos últimos anos, muitos dos boleiros, incluindo Roque Júnior e Tinga, que mantiveram seus dreads mesmo no Brasil, só deixam o cabelo crespo crescer depois de desembarcarem na Europa. Basta ver o próprio Wellington (que foi pra Alemanha e ao voltar pro Palmeiras rapelou de novo), Cristhian (ex-Corinthians), Marcelo (Real Madrid) e Taison (Metalist), entre outros. Será porque lá nossa identidade é marcada pelo outro? Ou porque fica mais fácil manter a natureza das madeixas sem a pressão dos colarinhos e microfones esportivos do Brasil?

Há casos como o de Daniel Alves – tantas vezes xingado de forma racista e de ter recebido cascas de banana na lateral –, que pintou o restinho do cabelo de loiro pra ver se combinava com os olhos verdes, e pouco depois voltou atrás, dizendo em uma entrevista que o racismo na Europa não tinha jeito.

Mas há quem mantenha um contraponto, e no universo das tranças, os antes carecas Vagner Love (ex-Palmeiras e Fla, atualmente na China) e Carlos Alberto (ex-Flu, e Vasco), mesmo depois da Europa mantiveram o estilo descoberto na terra do gelo. Carlos Alberto tem arriscado um tímido black power à la Reinaldo, PC Caju e Jairzinho, os panteras dos anos 10. Veremos até quando.

No Brasil, apesar das piadinhas, o apreço por uma madeixa à la Friedenreich é mais aceito do que os imponentes dreads de Tinga. Já ouvi comentarista ficar atribuindo uma má atuação do volante pelo peso do cabelo, e mesmo os blacks de Cortês e William Barbio também foram ridicularizados em uma transmissão de rádio, enquanto eu ouvia um jogo no radinho sentado na arquibancada do Morumbi.

Manter a carapinha no Brasil não é tão simples e cordial como a história oficial sugere. Aqui, o racismo no futebol, apesar de bem acobertado na crônica esportiva por frases como “não quero acreditar nisso” e “não vou discutir esse assunto”, ainda provoca estragos na identidade dos jogadores, e está longe de ser um problema exclusivamente europeu, como muitos pensam.

(Crônicas de um peladeiro, p. 90-95).

Texto para downloads

Capoeira, um jogo de corpo

Muniz Sodré

Eu atrás do cantadô Sou como abêia por pau.
Como linha por agúia,
Como dedo por dedal
Como chapéu por cabeça
E nêgo por berimbau
(Sextilha do cego Sinfrônio Martins)

Eu vim aqui foi
pra vadiar
Eu vim aqui foi
pra vadiar
Vadeia, nêgo, vadeia
Vadeia, povo, vadeia
(Estrofe de samba de roda)

Vadiação, brincadeira, são outros nomes com que os negros designavam na Bahia o jogo da capoei­ra. Capoeira se luta, joga, brinca, é algo que se faz en­tre amigos ou companheiros. Como? Primeiro, forma-se uma roda composta de um ou mais tocado­res de berimbau (arco retesado por um fio de aço, percutido por uma vareta e ao qual se prende uma cabaça capaz de funcionar como caixa de ressonân­cia), pandeiros, caxixis ou reco-recos. Em seguida, dois homens entram no círculo, abaixando-se na frente dos músicos, ao som dos instrumentos e de canções (chulas) específicas. Na capoeira dita de Angola, ao se cantar a expressão "Volta ao mun­do", está dado o sinal para o início do jogo.

Aí então, mobilizam-se totalmente os corpos dos jogadores. Mãos, pés, joelhos, braços, calcanha­res, cotovelos, dedos, cabeças, combinam-se di­namicamente em esquivas e golpes, de nomes variados: aú, rasteira, meia-lua, meia-lua de compasso, martelo, rabo de arraia, bênção, chapa-de-pé, chiba­ta, tesoura e muitos outros.

O que se busca é o envolvimento, a atração do oponente a um ponto que se pode definir como impacto/queda (na luta) ou a demonstração da possibilidade do impacto/queda (na brincadeira). Mas nenhuma finalidade estrita comanda o jogo, nem há uma divisão radical entre as formas de luta e as de brincadeira ou as formas de ataque e de defesa. Todos se fazem acompanhar do ritmo não rigoro­samente simétrico do berimbau, que apoia (sem comandar) os movimentos dos jogadores numa gradação do menos ao mais rápido, do lento ao prestíssimo. Angolinha, São Bento Grande, São Bento Pequeno, jogo de fora, jogo de dentro, iúna, cavalaria, Santa Maria, são alguns dos toques diferenciados do berimbau, — aos quais correspon­dem diferentes estilos de jogo.

O estilo rítmico do jogo não se confunde, en­tretanto, com o estilo individual do jogador. Este se define inicialmente pela ginga, o balanço inces­sante e maneiroso do corpo, que faz com que se esquive e dance ao mesmo tempo, tudo isto com­portando uma mandinga (feitiçaria, encantamen­to malícia) de gestos, firulas, sorrisos, capazes de desviar o adversário de seu caminho previs­to, isto é, de seduzi-lo. Sobre os pés, sobre as mãos, abaixado, pulando, o capoeirista jamais se imobili­za e, acionado pela ginga, evolui em roda (como no espaço do samba tradicional ou no espaço das danças religiosas negras), sempre com movimentos circulares, afirmando o seu estilo de jogo através do ritmo que imprime ao corpo, da velocidade dos gestos, da sutileza da mandinga. Uma chula define o saber do jogo: "Ele é mandingueiro/iê, sabe jogá, camarada/iê, a capoeira/iê, a capoeira, camará".

E a mesma estratégia de aranha: evitando o confronto direto, o capoeirista seduz o adversário num espaço circular, envolvendo-o, enlaçando-o. Se não o vence, retira-se graças à esquiva, transforma-se num pé-de-mato (capoeira), foge. "Fujão", "quilombola", "capoeira", são epítetos recorrentes para o negro da História do Brasil. Dizia-se do escravo fugitivo: "Caiu na capoeira". E subtendia-se: era rápido, faquista, mandingueiro, rebelde, resistente enfim.

Este último aspecto-resistência aproxima as origens de capoeira das origens da maior parte das artes de corpo e guerra. A crônica da capoeira até quase o final do Império revela disposições permanentes de resistência marcial aos dispositi­vos repressivos de ordem escravagista. Desde pouco antes da Abolição e durante a Primeira República, os capoeiristas passaram a ser usados, sobretudo no Rio de Janeiro, como capangas, (às vezes contra os próprios negros, ou contra republicanos) por políticos e pessoas de influência. Não sendo este o caso, o capoeirista era frequentemente apontado como autor de tropelias e desordens, suscitando mais uma vez medidas legislativas específicas .1

Mas a capoeira implicava, como toda estraté­gia cultural dos negros no Brasil, num jogo de re­sistência e acomodação. Luta com aparência de dança, dança que aparenta combate, fantasia de luta, vadiação, mandinga, a capoeira sobreviveu por ser jogo cultural. Um jogo de destreza e malí­cia, em que se finge lutar, e se finge tão bem que o conceito de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e — ai dele — do adversário desavisado.

Formas orientais e esporte

A face dupla do jogo (luta e dança) aproxima a capoeira das formas orientais de combate, como as do Wu-shu, conjunto das artes marciais da anti­ga China, que reunia os domínios do combate a mão armada e a mão livre (neste último multipli­cavam-se as escolas e as técnicas), a maioria das quais se perdeu com o tempo. Uma delas, a do Tien-Hsueh, consistia em acompanhar relaxadamente os gestos do adversário, envolvendo-o, até o instante em que se desferia um ataque fulminan­te a um ponto vital. Os fragmentos do Tien-Hsueh alimentavam a maior parte dos sistemas externos (Nei-chia) do combate, que são os estilos ditos "duros", voltados principalmente para o desenvol­vimento da potência muscular e baseados em mo­vimento de confronto direto com o oponente. Es­ses estilos parecem originar-se da forma Chiao-Ti-Shu (popular desde o segundo século A.C.) e são conhecidos sob nomes diversos como Shaolin, Kung-Fu, etc. Daí procedem as artes marciais japo­nesas e coreanas, como o jiu-jitsu, karatê, taekwendo, etc.

Diferentemente do Nei-chia, o sistema interno (Wai-Chia), conjunto de estilos ditos "brandos", busca desenvolver, por movimentos circulares, a força vital (chi). Alguns dos princípios desse sistema são evocados em escritos Taoístas, como o Tao-Te-King, de Lao-Tsé, onde se lê que o fraco termina sempre vencendo o forte e que o poder está no Wu-wei, ou seja, no não-agir ou "agir para o não-agir". O Wu-wei exorta a abandonar a eficácia como uma finalidade estrita, em favor de uma ação harmoniosa com o ritmo do universo, seja modelada pelos movimentos de animais, seja por plantas ou fenômenos atmosféricos. Este prin­cípio se aplica aos três métodos básicos (Pakua, Hsing-I e Tai-chi) do sistema interno, que procu­ram ensinar o corpo a descontrair-se, a fim de que o Chi, a força, possa circular livremente.

Na realidade, os dois sistemas interligavam-se na antiga China. Considerava-se o corpo humano como uma formação de cinco essências — espírito, ossos, músculos, força interna (Chi) e nervos — para cuja integração e equilíbrio, cada estilo daria uma resposta técnica particular. O estilo de cada mestre comportava aspectos esotéricos, com segredos e iniciações. Uma arte marcial implicava numa for­ma especial de vida, que incluía conhecimentos médicos, filosóficos e outros.

A "inatividade do movimento" em que impli­ca o Wu-wei, ainda é visível hoje nesta aparente "dança" do Tai-chi. Em meio a um silêncio abso­luto, os braços se esticam, cruzam-se, os punhos traçam no ar sugestivas parábolas em deslocamen­tos circulares. O círculo simboliza o Tai-chi. Por quê? Pretende-se que a melhor maneira de prote­ger o centro de gravidade (tronco e dorso), fonte de toda a energia, é torná-lo imóvel para gerar força estática. Produzindo uma corrente contínua de força em torno do centro, o Tai-chi lhe faz evitar todas as ofensivas. O círculo permite ao chi fluir de maneira quase igual, em forma fe­chada, sem deixar de se regenerar, pois é mantido por um movimento moderado, que nunca se esgo­ta. Autodefesa, ginástica ou relaxamento, método de harmonia e atenção, jogo de paciência, o Tai- chi confia o sentido de seus gestos à maturidade de cada praticante, que é medida pelo grau de equilí­brio entre as essências corpóreas, entre mente e corpo.

Encontramo-nos aqui na antípoda do que o Ocidente chama de esporte, noção bem mais pró­xima das artes marciais japonesas e coreanas (Judô, Karatê, etc.), explosivas, duras, articuladas em fun­ção do desenvolvimento da potência muscular, e portanto mais afins com a excitação nervosa do esporte ocidental.

Esporte, tal como hoje o concebemos, é in­venção do Ocidente. Na Europa, entre 1840 e 1870, a palavra sport designava qualquer passa­tempo aristocrático, desde o boxe às corridas de cavalos e bailes mundanos. Na década de 70, apa­recem os primeiros clubes ''esportivos" definidos por uma atividade de exercício corporal. A partir de 1880, o termo adquire o significado moderno, passando a designar principalmente exercícios ingleses praticados ao ar livre, tais como futebol, o atletismo, rugby.

Havia toda uma doutrina pedagógica, de ins­piração inglesa, com base no movimento do espor­te. Na França do final do século, por exemplo, o esporte inglês era defendido por pedagogos e médicos como um instrumento de renovação edu­cativa — para tornar menos pesada a vigilância do docente e favorecer o desenvolvimento da esponta­neidade dos jovens — oposto à ginástica, codifica­da e controlada pelos militares. Além disso, a dou­trina esportiva inglesa oferecia bons argumentos aos temas de suposta degenerescência da raça francesa e da fadiga corporal pelo uso excessivo do cérebro, muitas vezes debatidos pela Academia de Medicina de Paris.

A modernidade ideológica de doutrina espor­tiva estava na pregação dos sentimentos de obe­diência e comando aliados ao gosto do individua­lismo e da competição. Esta última é fundamental no esporte. Em lugar de ginástica que, autoritaria­mente, regulava os movimentos do aluno, a compe­tição esportiva oferecia ao indivíduo a oportunida­de de medir suas próprias forças no livre afronta­mento dos corpos. Ao corpo dócil buscado pela ginástica, acrescentava-se a autonomia individual propiciada pela competição esportiva. Livre compe­tição empresarial do domínio económico, livre competição de corpos na esfera biológica eram prescrições que, darwinianamente, reafirmavam a luta seletiva como motor de existência. O esporte representava a via moderna de introdução dos cor­pos adolescentes na pedagogia de luta competitiva. E embora inicialmente destinados às elites (juven­tude inglesa e aristocrática dos liceus), as diferen­tes modalidades esportivas não tardaram a ser assimiladas pelas camadas populares.

O esporte consolidava, entretanto, o pensamen­to de separação entre corpo e espírito, característico, no início da Modernidade, de filósofos como Descartes e Malebranche. Estes souberam bem exprimir a concepção da natureza humana — ancora­da em Aristóteles — que comparava o corpo a uma máquina (res extensa) habitada e controlada por um espírito (res cogitans). Tal espírito nunca foi mais do que uma fantasia da razão. Em primeiro plano sempre esteve a harmonia intelectual, à qual devia submeter-se o corpo, objeto de desprezo (Pascal: "nosso corpo, esse trapo") ou objeto de um treinamento, com finalidades: progresso das qualidades físicas (ginástica), livre competição (esporte), etc. O espírito ficava do lado do sério, da cultura, enquanto o corpo se situava como o superficial, o simples jogo.

Mas cultura (paideia) e iogo (paidia) são palavras que têm em grego a mesma raiz[2]. Platão procurava em A república e em Leis estabelecer a diferença — à qual se apegariam os modernos — entre uma e outra, isto é, entre a seriedade da cultura e a superficialidade do jogo. Essa distinção, desenvolvida por Aristóteles em sua Ética, perma­nece hoje nas concepções ocidentais de cultura.

Na concepção Zenista (representativa do anti­go Oriente), o jogo não se entende, porém, como mero passatempo, nem se confunde com o ludismo, mas como um meio de contornar a rígida serie­dade na percepção do mundo, de levar à ilumina­ção individual. Esta concepção abole a dicotomia cultura/jogo, assim como a do corpo/espírito.

O jogo Zenista é uma prática de aprendizagem. Aprende se a superar os condicionamentos do ego, da consciência pessoal, através da espontaneidade de ação. O verdadeiro conhecimento se autoproduz e sempre de modo inteiramente diferente. Se no Ocidente, o ego se elabora em função de uma finalidade, de um objetivo, o Oriente Zenista pre­coniza o abandono dessa atitude preconcebida em favor de uma atenção silenciosa e descomprometida, que possibilita a apreensão, de modo sem­pre novo, do conteúdo de cada novo instante. A doutrina do esporte — fundado nos objetivos da vitória do espírito sobre o corpo, ou do corpo de um competidor sobre o do outro — está na antí­poda da concepção oriental.

A capoeira dos sofistas

No entanto, pode-se encontrar, na história do pensamento ocidental, posturas próximas das concepções orientais e, mesmo, daquelas que pre­sidem ao jogo da capoeira — é o caso dos sofistas. Veja-se, por exemplo, Gorgias, para quem a virtu­de não consiste em seguir rigidamente as normas, mas em discernir as circunstâncias próprias de um fenômeno. A excelência consistiria em perce­ber o que é oportuno e o que não é, num movi­mento que se chamaria "moral de ocasião". Esta é, ao mesmo tempo, uma moral de "inspiração": se não há normas universais, não haverá ensinamento expresso da virtude que, como a força ou como a agilidade, é um dom dos deuses. Homem excelente é o que, dotado de virtude (divina), é capaz de bem avaliar as circunstâncias.

Veja-se agora a capoeira: o mestre capoeirista negro não ensina a seu discípulo — pelo menos de maneira como a pedagogia ocidental entende o verbo ensinar, ou seja, o mestre não verbaliza nem conceitua o seu saber para doá-lo metodicamente ao aluno. Também não interroga, nem decifra. Ele inicia: cria as condições de aprendizagem, (forman­do a roda de capoeira) e assiste a elas. É um proces­so sem qualquer intelectualização, em que se busca um reflexo corporal comandado, não pelo cérebro, mas por algo indeterminado resultante dessa inicia­ção do corpo.

A capoeira negra é um jogo sem leis — logo, sem método — para que cada novo instante seja preenchido por um novo gesto. O golpe eficaz tem de ser inesperado. Embora o repertório gestual seja finito, sua combinatória é absolutamente aber­ta. O capoeirista, senhor de seu corpo, improvisa sempre e, como o artista, cria.

Na arte-jogo da capoeira, malícia (ou mandin­ga) é uma palavra-chave, por indicar com precisão a capacidade negra de contornar a ideologia ociden­tal do corpo, — expressa nas prescrições que obri­gam a um determinado uso do corpo, nas represen­tações fixas, nos hábitos adquiridos e consolida­dos — e adotar, em questão de segundos, uma ati­tude nova. Solto em seu movimento, seduzido pelo seu próprio ritmo, o corpo encontra instin­tivamente o seu caminho, a medida da ocasião ou o Kairós.

Bem antes de Gongias, Anaxarchos refletia (em seu único fragmento conhecido): "É preciso conhecer a medida da ocasião. Esta é, com efeito, a marca da sabedoria". E Gorgias, no fragmento do Discurso fúnebre, onde elogiava os guerreiros mortos por Atenas, oporia ao formalismo da forma o exame do caso particular: " (...) e exercendo as duas coisas que importam antes de mais nada, sua inteligência e sua energia, uma na deliberação, outra na ação, servos dos que sofrem injustamente, mas reprimindo os que são injustamente prósperos (...) violentos para com os violentos, moderados para com os moderados, intrépidos diante dos in­trépidos, terríveis nos casos terríveis"3.

O corpo negro

Resta saber que corpo é este que faz se reen­contrarem no jogo de combate e "vadiação" ele­mentos do pensamento sofístico com a sabedoria africana. Seria tentador afirmar que é um corpo rebelde às consequências físicas da colonização baseada numa economia exportadora-escravista. De fato, no jogo da capoeira, acha-se presente uma das singularidades da tática de combate dos negros em Palmares, a que se deu o nome de "guerra-do-mato" e que desarvorava as expedições repressivas — tática em que os negros raramente aceitavam combate, mantendo quando muito encontros rá­pidos e desconcertantes seguidos de fuga para o mato4 ou para a "capoeira". Faziam ali algo se­melhante às táticas da rainha de Matamba na guerra congolesa contra a invasão portuguesa e que provocaram de um padre comentário que po­deria ser subscrito por Lao-Tse: "A grande arte na condução da guerra consiste em evitar o inimi­go"5.

Por mais tentadora que seja, a explicação da permanência da capoeira por uma tendência à rebelião do corpo (motivada por forma ligada a um suposto substrato cultural negro-brasileiro) não se apoia no conhecimento que se tem da vi­vência das capoeiristas. O que há mesmo na capoei­ra é um envolvimento emocional, um sentimento de raiz e tradição, ausentes do esporte puro e simples. Isto permite dizer que a capoeira é mais a afirmação de um corpo orgulhoso de sua vitali­dade e ciente dos seus segredos, de sua mandinga. E foi também o caminho de afirmação de um esti­lo "individual", de uma catarse corporal, em face das desavenças ou da dança, assim como o grito, nos primórdios do jazz, identificava o negro rural norte-americano.

Avulta, assim, a hipótese de um corpo defini­do pela plasticidade necessária aos herdeiros de uma cultura em movimento de autopreservação e continuidade. O corpo do capoeirista negro ajus­ta sinergias neuromusculares com imperativos de resistência cultural. É um corpo — assim como aquele que "recebe” o orixá, estabelecendo a comunicação direta entre o sagrado e o profano — sempre aberto enquanto estrutura, capaz de incor­porar a dispositivos marciais a alegria da dança e do ritmo.

O júbilo propiciado pelo corpo — ao mesmo tempo aberto e fechado, estável e instável, firme e escorregadiço, sólido e impalpável — do capoei­rista é que faz do jogo da capoeira uma extraordi­nária diferença cultural. No instante em que se joga, em que se brinca a capoeira, os movimentos do indivíduo se libertam de qualquer causa exter­na, de qualquer justificativa racional outorgada por um Outro, possibilitando um desfrute instantâneo do real. Nesse aqui e agora do corpo, contorna-se a pretensa eternidade (metafísica) dos axiomas de realidade e faz-se aflorar o amoroso sentimento de existir. O ritmo do berimbau põe em jogo, in­tegrados, corpo e alma do negro.

(In: SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida, 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988, p. 202-214).

Notas

[1] O Código Penal de 1890 previa desterro e castigos corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos célebres de desterro: Manduca da Praia. Juca Reis. mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos cor­porais: as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polícia do Rio de Janeiro, no início do século XIX.

[2] Jaeger, Werner. Paideia, Herder, p. 868.

[3] Dupréel. E. Les sophistes. Griffon, Neuchatel, 1948, p. 88. 

[4] Freitas, Décio. Palmares, a guerra dos escravos. Graal, p. 85.

[5] Ibidem, p. 86.

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