Clara dos Anjos

 Lima Barreto

A Andrade Muricy

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmente como outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangos e acompanhamentos para modinhas.

Aprendera a “artinha” musical na terra de seu nascimento, nos arredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não saía daí.

Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito à aposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguira aquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo.

Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha no local de seu nascimento e adquirir aquela casita de subúrbio, por preço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o resto pagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava de plena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a um terço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadito que era a cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado.

A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os lados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia até uma grande chácara de outros tempos com aquela casa característica de velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé-direito, um tanto feia, é

fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvores que, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.

Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as “bíblias”. Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora, enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles, porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo, querem dinheiro.

Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloquência bíblica que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, os quais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.

Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado da chácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. As cerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticos divinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias, adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura com um certo ar de acampamento militar.

Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto, muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp.

Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!

Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia, ainda menos.

Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.

Na tez, a filha puxava ao pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura, ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava a média, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que não acontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha, a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia de vapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.

Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por ela grandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de “seu” Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela [sic]. Não que a venda de “seu” Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoas que lá faziam “ponto” eram de todo o respeito. O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem-comportado.

Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, não possuindo – é preciso saber – nenhuma.

Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons, desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quando saía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecer bebericando ou lendo os jornais do senhor Nascimento. Silencioso quase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem o tratava por Seu Mister.

Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, que se tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as coisas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvas e abundantes.

Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramente poeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, se ainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dez volumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia uma conversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabia bem quem ele era; chamava-o muito simplesmente – o poeta.

Um outro frequentador da venda era o velho Valentim, um português dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvado para diante, devido ao hábito contraído no seu ofício de chacareiro que já devia exercer há mais de quarenta. Contava “casos” e anedotas de sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do mais saboroso pitoresco.

Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, em alguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavam em casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.

Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo do tamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e aí, sem dar uma vista d’olhos sobre as montanhas circundantes, nuas, empedrouçadas, deixavam-se ficar até à hora do “ajantarado” que a mulher e a filha preparavam.

Só depois deste é que as cantorias começavam.

Certo dia, um dos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença para trazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz de sua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas. Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenas denunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente com um apuro muito suburbano, sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão. A sua entrada foi um sucesso.

Todas as moças das mais diferentes cores que, aí, a pobreza harmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, no Vaticano, causaria tanta emoção.

Afirmavam umas para as outras:

– É ele! É ele, sim!

Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e, entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galante do cantor de modinhas.

Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olhar guloso que deitou para os seios empinados de Clara.

O baile começou com a música de um “terno” de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.

Num intervalo Joaquim convidou:

– Por que não canta, “seu” Júlio?

– Estou sem voz, respondeu ele.

Até ali, ele tinha tomado parte no “remo”; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris de Clarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz, animou-se a fazê-lo também:

– Por que não canta, “seu” Júlio? Dizem que o senhor canta tão bem...

Esse “tão bem” foi alongado maciamente. O cantador acudiu logo:

– Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...

Consertou a “pastinha” com as duas mãos, enquanto Clara dizia:

– Cante! Vá!

– Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.

Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:

– Amor e sonho.

E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha, para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor, sibilando os “ss”, carregando os “rr” das metáforas horrendas de que estava cheia a cantoria. A coisa era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e só Clarinha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou...

Dias depois, vindo à janela por acaso – era de tarde – sem grande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na coisa, tanto assim que disse candidamente à mãe:

– Mamãe, sabe quem passou aí?

– Quem?

– “Seu” Júlio.

– Que Júlio?

– Aquele que cantou nos “anos” de papai.

A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca com o Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal, acompanhadas de copitos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardou que se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famoso modinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor de trovas.

Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos os quatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidas de bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-se pela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seios empinados, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram só olhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes, quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo; depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas, para, afinal, vir a fatídica carta.

Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz da vela, medrosa e palpitante. A carta era a coisa mais fantástica, no que diz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha, porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, era original. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem de Clara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma coisa de novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabia bem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai; as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia de ser toda a vida assim como um cão sem dono... Os pais viriam a morrer e ela não podia ficar pelo mundo desamparada... Uma dúvida lhe veio: ele era branco; ela, mulata...

Mas que tinha isso? Tinham-se visto tantos casos... Lembrou-se de alguns...

Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros estouravam de virgindade e de ansiedade de amar... Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costa tornaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãe desconfiou e perguntou à filha:

– Você está namorando “seu” Júlio, Clarinha?

– Eu, mamãe! Nem penso nisso...

– Está, sim! Então não vejo?

A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara, logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança, uma carta ao modinheiro, relatando o fato.

Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família era bem superior à da sua namorada. O seu pai tinha um emprego regular na prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério, ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capaz de admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulher não tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos e hábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e “novidades” da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão íntima de ser grande coisa, de uma grande família.

Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.

Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo da família; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes, Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam de nenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelos seus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa.

Pequeno-burguesas, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situação do pai e a terem frequentado escolas de certa importância, elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir.

Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-se dizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficando talvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, como não podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga pobríssima.

Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficiente para ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, a sua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas, recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica, sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seus olhos o ato sexual.

Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa de defloramento e seduções de menores.

O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de rogos, de choro, de apelo – para a pureza de sangue da família –, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasse influenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha de dezesseis anos, a quem o Júlio “tinha feito mal”.

Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto à estreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração que agasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso, deixou-o por aí, à toa, pelo mundo...

O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não se viam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara onde tinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústria e o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.

Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas; e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava, vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo do vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros bairros do Rio de Janeiro.

A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes de contas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dos seus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-o nos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, sem dizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo, por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:


Queridinha confesso-te que ontem quando recebi a tua carta minha mãe viu e fiquei tão louco que confessei tudo a mamãe que lhe amava muito e fazia por você as maiores violências, ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te que preze bem o meu sofrimento.

Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha.

Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido. O teu Júlio.

Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seu namorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução era insuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda por cima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade crítica que pudesse ter. A carta produziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos, esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados – tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amor por ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhas do violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela do quarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanha quase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.

Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambos não havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma coisa de estranho no ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele.

Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...

O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer a miúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez.

A mãe, porém, com auxílio de certas intimidades próprias de mãe para filha, desconfiou e pô-la em confissão. Clara não pôde esconder, disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadas diante do irremediável... A filha teve uma ideia:

– Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe?

A velha meditou e aceitou o alvitre:

– Vai!

Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.

– Mas o que é que você quer que eu faça?

– Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.

– Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele não amarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga!

Ora já se viu! Vá!

Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior? Por quê?

Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar à coisa mais simples a que todas as moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.

Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando.

A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:

– Mamãe, eu não sou nada nesta vida.

(In: Contos completos de Lima Barreto, p. 246-255)

Clara dos Anjos

(fragmentos do romance)

 Lima Barreto

Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias que tinha terras, para as bandas de S. Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo de nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.

Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.

Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos que, ainda bastardos, se compraziam, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuas que viam a luz do dia pela primeira vez, em sua casa. As senhoras então eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças – tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos.

(In: Clara dos anjos, p. 83-84)

****

Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa tomou a correspondência a distribuir e lá correu para os escritórios, casas de comércio, entregando cartas e pacotes.

Vinha tudo isto com nomes arrevesados; franceses, ingleses, alemães, italianos, etc; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até as cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições de correspondência.

Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí, pelas cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa.

(In: Clara dos Anjos, p. 142)

Maio*

Lima Barreto 

Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz, se misturam recordações da minha meninice.

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.

Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas...

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.

Houve missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a "Primeira Missa", de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estrados para bailes populares; houve desfile de batalhões escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.

Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado à traseira.

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.

Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado.

A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!

Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: "Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?"

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se "Princesa e Mãe" e ainda tenho de memória um dos versos:

"Houve um tempo, senhora, há muito já passado..."

São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo.

Oh! O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão da Morte, vai ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, e só nos deixa na alma essa saudade do passado às vezes composta de coisas fúteis, cujo relembrar, porém, traz sempre prazer.

Quanta ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: com os dias e as horas e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a amanuense; depois são os do Amor - oh! como se desce nesses! Os de saber, de erudição, vão caindo até ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens... Oh! As viagens! Ficamos a fazê-las nos nossos pobres quartos, com auxílio do Baedecker e outros livros complacentes.

Obras, satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um "Mal das Vinhas" qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando... o quê? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois. Esperando os milagres do tempo e olhando o céu vazio de Deus ou deuses, mas sempre olhando para ele, como o filósofo Guyau.

Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?

E maio volta... Há pelo ar blandícias e afagos; as coisas ligeiras têm mais poesia; os pássaros como que cantam melhor; o verde das encostas é mais macio; um forte flux de vida percorre e anima tudo...

O mês augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente à marcha da Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados - os sonhos, enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de pelúcia, reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem, antes mesmo de chegar o tórrido dezembro.

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados...

 

(In: Toda crônica, vol. 1, p. 77-79)


* Crônica publicada na Gazeta da Tarde em 04/05/1911.

Macaquitos*

 

Lima Barreto

Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma équipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos.

A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha.

A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.

Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é!

Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco.

Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.

A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno?

A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem.

Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.

(In: Toda crônica, vol. 2, p. 224)


* Crônica publicada na revista Careta, em 23/10/1920.

Recordações do escrivão Isaías Caminha

(fragmentos)

Lima Barreto 

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que estorciam no meu cérebro.

O flanco que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado...

Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos...

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 23)

 

****

 

O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café o bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como demorassem a trazer-me o troco, reclamei: “Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!” Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapaz alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação.

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 26)

 

****

 

O ruído de uma fanfarra militar, enchendo a rua, veio agitar a multidão que passava. As janelas povoaram-se e os grupos arrimaram-se às paredes e às portas das lojas. São os fuzileiros, disse alguém que ouvi. O batalhão começou a passar: na frente os pequenos garotos; depois a música estrugindo a todo pulmão um dobrado canalha. Logo em seguida o comandante, mal disfarçando o azedume que lhe causava aquela inocente exibição militar. Veio por fim o batalhão. Os oficiais muito cheios de si, arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de castigo. Os oficiais pareceram-me de um país e as praças de outro. Era como se fosse um batalhão de cipaios ou de atiradores senegaleses.

Era a primeira vez que eu vi a força armada do meu país. Dela, só tinha até então vagas notícias. Uma, quando encontrei, num portal de uma venda, semi-embriagado, vestido escandalosamente de uma maneira hibridamente civil e militar, um velho soldado; a outra, quando vi a viúva do General Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto de pensões a vários títulos, que lhe deixara o marido, um plácido general que envelhecera em várias comissões pacíficas e bem retribuídas...

O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira que passara, me deixou perfeitamente indiferente...

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 68-69)