A multidão é, sempre, um ser acéfalo.

Age, levada pela onda de entusiasmo, ou de ódio, de alegria, cujo movimento tem princípio numa voz que, sempre, encontra eco

Essa voz atua de repente e se transmite e domina a multidão, como se cada indivíduo fosse o elo de uma grande cadeia, junto do qual houvesse passado uma centelha.

Todo sentimento humano, quando transmitido ao povo, com a voz do coração, invade-lhe a alma, como o vento em casa de janelas escancaradas.

Reunidos pela curiosidade, os homens se agitam ao sabor das falas dos que vibram por um sentimento qualquer, e se tornam água do mesmo mar, raios oriundos de um só foco, iluminando ou destruindo segundo as vibrações do foco, donde emanam.

E essas falas eletrizantes, possuídas de um entusiasmo gritante e comunicativo, arrastam a massa e fazem-na espoucar em gargalhadas ou vaias, bater palmas ou atirar pedradas.

E cada um desses homens, capaz de se tornar incendiário, capaz dos maiores absurdos, é, isolado, um ser pacato que teme, as mais das vezes, um gesto desabrido, uma palavra menos polida.

Ninguém resiste ao horrível contágio das multidões.

E, por isto, tão somente por isto, não se lhe pode crer nem no ódio que lhe arma o braço, nem na alegria que lhe rebenta em palmas e chuva de flores.

 

Maria da Ilha

(Folha Académica, 01 ago. 1929. Crônica inédita em livro)

 

Assim, seria um grande passo progressista, se conseguíssemos a alfabetização integral do país, mas não seria tudo.

É necessário dar aos que roubarmos das trevas luz anímica, para que vislumbrem, vejam o lodo oculto, sob águas azulíneas. É necessário apontar-lhes, com sinceridade, o edifício carcomido da nossa civilização, para que sigam, conscientemente, vejam conscientemente e conscientemente, individualmente, se alistem entre os obreiros da grande cruzada - a cruzada do Bem.

É necessário que o fiat seja integral, a fim de que se alcance o objetivo da instrução fazer de cada criatura um indivíduo, arquiteto da sua individualidade, senhor dos seus direitos e dos seus deveres.

 

(Farrapos de ideias, p. 187-3. ed.)

CAVALEIRO NOTÍVAGO

Bahia, 1973

 

Cavaleiro andante,

errante, galopante.

Dentro da noite

negrume, negrume

e negra cor desafiante

dos seus rivais,

severos, cruéis, infiéis.

Cavaleiro andante,

de negra cor desafiante.

Estonteia a todos

e quantos chibantes,

tentam seguir

seus passos firmes,

seguros, alegres, certos.

Passos fortes, retos

e mirabolantes.

Confiantes em si: o futuro.

 

Cavaleiro notívago,

Avance!

Nos seus sussurros,

risos e suspiros.

Siga seus passos negros,

firmes dentro da prata do luar.

das negras noites baianas.

Não precisa mais luar.

Está firme na noite,

seu valor e seu aprumo,

função e seu negrume.

É notívago. É negro.

É já um vagalume.

 

(Cantos, encantos e desencantos d’alma, p. 107).

 

Africanos Afro-brasileiros

Salvador, 20/5/75

 

Meus irmãos que de longe vieram

em barcos infectos e imundos

tangidos por ventos que a natureza criou

Açoitados como quaisquer animais,

vis, tristes, selvagens e irracionais.

Vocês, meus irmãos pretos velhos

que da África chegaram,

traziam a sina de ser escravos,

viver sob o signo do infortúnio –

– a Escravidão.

 

Chegados, aclimatados, aculturados. Açoitados.

Agricultores, serventes de casas ricas,

cresceram na tristeza da terra que

longe ficou.

Veio o canto,

surgiu a música.

A dança,

pra sufocar o pranto.

Misturou-se tudo.

Surgiu o carnaval

que é a coisa mais original

implantada em terras distantes

pra sufocar a dor, a angústia

e esquecer o falso amor.

 

Meus irmãos africanos,

de ontem, de hoje e de amanhã

Aqui estamos pra lhes render louvor,

a um povo antigo

pleno de mitos,

história de luta e sofrimentos.

Merecem, irmãos, os elogios,

os lauréis que a história

à raça negra

e irmãos africanos,

sempre negou.

(Cantos, encantos e desencantos d’alma, p.109 - 111)

 

EGO SUM
Ife. Nigeria, 1979.

 

Eu

quem do Nordeste veio

terra de amor e tradição.

Eu

quem da pobreza veio

nasceu humilde, morrerá assim.

Eu

que da Bahia vim,

terras nordestinas

de amor e tradição,

de bonitas meninas

enfeitadas de jasmim

colhidas em seculares jardins.

Eu

da terra da beleza,

riqueza,

pobreza,

até miséria.

Terra d'amor

e discriminação,

de maldade,

tristeza

e bondade.

Eu

que assim nasci

morrerei assim,

pois assim eu sou:

Senhor

dono dos meus atos,

cabeça rica em fatos.

Eu

negro.

Eu

de fato.

Eu

com injustiças

estupefato!

Eu

tentando ser eu mesmo

negro de fato.

Eu

parte dos grãos calcados aos pés

de brancos

(nas Américas, é um fato).

Eu

germem que morre banhando

a terra em suor e sangue

para que nasça uma.

Nova Era,

para que frutifique

a Nova Geração

forte e sadia.

Medre a Nova Civilização

– a do Homem Total.

Integral.

Eu

negro de fato.

Eu

um ser humano normal.

 

(Cantares d’África, p.39 – 40)