A Nossa Senhora

Segue com a pele preta aveludada,
pintando seu cachimbo. Olhando as horas se desfazendo
em fumaça.
Passa os olhos semifechados em seu antigo testamento,
nos escritos, na linha do tempo. Observa as tantas vezes
em que esteve no fio da navalha, pendurada por
fio obscuro de esperança. Certifica-se de nesses anos
quase nada mudou. O novo testamento continua
por fazer: a única coisa abolida foi a chibata.
Essa não existe mais, mas o teto e a ternura também não.
Segue sem medo, com a altivez de quem muito cedo
se tornou ciente da solidão implacável e visceral,
predestinada aqueles cuja liberdade não é um direito
mas uma concessão do caridoso algoz.
Fala com voz firme, com tom de quem nunca titubeou
nem murchou diante de situações impactantes.
Vai serena, de missão cumprida. Ensinou seus
descendentes a não deixarem levar por ilusões:
nesta Nação, mesmo sendo letrado, somente vence
aquele que antes colocar os pés para fora do
terreiro, for-lhe explicado quem ele é.
“Aquele que enfrentar o mundo de cabeça feita
não vai se tornar corcunda”, dizia ela.
Segue com opulência renascentista na sua consistência:
Mineral, Magnética, Férrea, Gusa incandescente, vai
arrematando a última ponta de vida, adentrar o infinito,
compartilhar da intimidade dos seus antepassados.

                                                  (Mulheres q’rezam, p. 123)

 

Com santa não se brinca

Hoje fui chamada de santinha.
E aí eu protestei, gritei,
chutei o pau da bandeira
e disse:
Santinha não – Santa.

Esse povo tem mania de querer me quebrar,
pra depois juntar os cacos,
me ver paralítica,
sem função,
serva. 

Alguém já viu alguma santinha
em lugares nobres?
Ou num estandarte,
conduzindo multidões!

Depois dizem que é força do hábito.
Pois tirem o Hábito.

Já fui apedrejada na escola, na igreja,
trabalhei sempre mais que os outros.

Sempre me quiseram na periferia.

Sambista sim, eu podia ser,
até sangrar meus pés
no asfalto quente,
para diverti-los
e depois dizerem:
Você samba direitinho... 

Ai de mim,
se não fosse Santa.

                             (E... Feito de Luz, p. 15)

 

Coração Tição

Quero me lambuzar nos mares negros
para não me perder,
conseguir chegar no meu destino.

Não quero ser parda, mulata
Sou afro-brasileira-mineira.
Bisneta
de uma princesa de Benguela. 

Não serei refém de valores
que não me pertencem.
Quero sentir sempre meu coração
como um tição.

Não vou deixar que o mito
do fogo entre as pernas iluda e desvie
homens e mulheres
daqui por diante.

                       (E... Feito de Luz, p. 31)

 

Cuidado, não vai esquecer a lição...

Nasci filha de seu Zé que muito pouco tinha de José
carpinteiro de Nazaré, a não ser
a determinação e o gosto pelo trabalho
Seu Zé, conhecido popularmente como marido de
D. Margarida,
uma flor que descansa plena, em outra dimensão,
isso porque sempre foi justa nunca abusou da sua
autoridade.
Precavida, desde cedo nos ensinou a detestar a
escravidão,
por conta disso, nossa primeira lição de casa foi:
nunca sair de canelas russas e nem esconder cabelos
por debaixo dos panos
e ouvidos bem apurados.
Quilombola que se presa não ri à toa
não aceita provocação e olha firme
no fundo dos olhos daqueles que possuem
nariz arrebitado e andam sempre aprumados.
Já dizia meu avô!

                                    (Mulheres q’rezam, p. 125)

 

No toque do tempo

Batida do tambor
marcando o tempo

Sentir os acontecimentos
entre a batida e
outra, um meio tempo
preparando um outro tempo.

tempo de deixar no ponto
corpo pro Santo descer
para luz acender amparar
com cuidado a criança,
que vai nascer.

tempo que assenta sentimentos
fazendo a gente sentir que sente.
sentindo a sinergia da barca
lotada que vai e vem
atravessando a baia.

tempo da cigarra prever o tempo
e morrer.

Tempo do artista encontrar
suas suaves cores vivas. 

Tempo pro Ser compreender
Suas emoções,
Se alforriar
E cessar.

   (Com perdão da palavra, p. 69)


LIVROS E LIVROS

Ficção

Machado de Assis - Pai contra mãe
Não é um acaso que, entre os 200 contos de Machado de Assis, o miúdo “Pai contra mãe” acabe de ser contemplado com uma edição só para ele, lançada pela Cobogó. Até hoje, vale lembrar, que esta distinção foi reservada a poucas histórias curtas do escritor. Publicado originalmente em 1906 dentro da coletânea Relíquias da Casa Velha, o texto traz à tona um Machado de Assis mais frontal e...

Poesia

Lande Onawale - Pretices e milongas
SAUDAÇÃO AO ORIQuem carrega um nomeSaúda a honra à cabeçado homem- cabaça -em toda toda p-arte.   Em Kalunga: poemas de um mar sem fim (2011), Lande Onawale já anunciava sua poesia como uma escrita "incansável que come com as mãos" (2011, p.35), e, mais que isso, "letra que dorme em esteira e, como a própria noite, é povoada de ancestres" (Idem). De acordo com Fu-Kiau1, para os bakongos a Kalunga pode ser pensada como força completa em si mesma que tem a capacidade de transformar a Terra e transmutar-se depois no Oceano, s...

Ensaio

Dejair Dionísio - Ancestralidade Bantu na Literatura Afro-brasileira: reflexões sobre o romance Ponciá Vicêncio
Menosprezado pelos primeiros pesquisadores que se debruçaram nos estudos das etnias africanas, o povo banto1 foi considerado por muito tempo como uma etnia inferior aos outros povos integrantes da diáspora negra nas Américas. Contudo, esse grupo legou um vasto repertório cultural que traz consigo as marcas de uma tática de resistência construída no campo do inimigo. Como se pode notar em festejos como o Congado2 e o C...

Infantojuvenil

Itamar Vieira Junior – Chupim
Em agosto de 2024, Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado (2019) e do mais recente ganhador de Jabuti, Salvar o Fogo (2023), publica sua primeira obra dedicada às infâncias. Chupim segue a história e vida de Julim, uma criança como muitas outras de sua comunidade que ajudam seus pais na plantação de arroz, espantando os chupins que se alimentariam desse grão: “ ‘Menino, menino’, a voz do pai chamou / pela casa antes do sol nascer. / Era um convite para o despertar.” (p. 4). Assim começa os dias de Juli...

Memória

Oswaldo de Camargo - Raiz de um Negro Brasileiro  Por que fui ao Oswaldo de Camargo  Mário Augusto Medeiros da Silva*   “Negros têm um péssimo hábito: morrem cedo e não deixam memórias”. Em 2007, em entrevista concedida a mim, Oswaldo de Camargo assinalou a frase com que abro este prefácio. Tratava-se de uma reflexão acerca do que ele se recordava de alguns companheiros de militância intelectual no associativismo político e cultural negro paulistano. O sumiço, desaparecimento, como rastros sulcados na areia, de diferentes personagens daquela história, confirmavam aquela afirmação. Que sabemos hoje de suas passagens pelo mundo, de seus av...

Newsletter

Cadastre aqui seu e-mail para receber periodicamente nossa newsletter e ficar sempre ciente das novidades.

 

Instagram

 

YouTube