Rotas da dor, roteiros da resistência na poesia: 

Atlântica dor: poemas (1979-2014), de Abelardo Rodrigues

 Gustavo Tanus*

 

                                      Noite afora, noite adentro
                                    

                                     O grito
                                     em ressacas de mar
                                     e as vozes de sal
                                     emergidos

                                     das entranhas marítimas:
                                     são dores impronunciáveis
                                     adentrando meu coração

                                     A longa travessia
                                     trôpega de corpos
                                     despossuídos de si
                                     e
                                     nossos olhos
                                     Oh nossos olhos

                                     memórias
                                     estanques no mar

                                     Fogos-fátuos na neblina paulistana
                                                                 névoas em brasa
                                     queimando nossa retina ancestral:

                                     gritos e guerras
                                           de um poema novo
                                        dando voz de liberdade

                                     à nossa memória sufocada
                                                     nesta longa noite
                                     atlântica.
                                                                            (p. 68)

 

Neste ano, foi lançado o livro Atlântica dor: poemas 1979-2014, pela Série Pretoblack, da editora Córrego. Este que é o terceiro livro individual do poeta Abelardo Rodrigues, (Memória da noite, 1978; Memória da noite revisitada & outros poemas, 2012), reúne 189 poesias compostas nos 35 anos que a antologia alcança.

São cantos, poesias que retraçam a dor e a violência da escravidão (e seus efeitos negativos existentes ainda hoje), mas traçando um roteiro de uma resistência, que é calcada no reconhecimento de si, em um "corpo-texto-negro" cuja constituição é formada por sons e ritmos, e múltiplas imagens, inclusive da Diáspora negro-africana pelo oceano Atlântico.

De modo a compor sua poética, o livro divide-se em duas partes: "Poê... poemar", e "Fragmentos marítimos". Estes contêm 82 poemas, e a primeira parte 107. A diferença entre as partes está, grosso modo, na maneira como são tratados os eventos/as imagens, manipuladas, na primeira parte, anacronicamente (o que cremos contribuir para a desconstrução da ideia de progresso, e progressão), que a nos apontar diversas rotas da dor para a constituição da identidade; e, na segunda parte, encontram-se dispersas, em fragmentos, atuando como metonímias.

Na primeira seção, estão poesias que tratam mais da escritura − a metalinguagem como uma temática contemporânea − importante para destruição dos limites e posturas da voz. Destacamos os poemas iniciais, "Para um novo canto", "Reflexão", "Fazer um poema", "Poema" (em que é expressa sua tática), ou mesmo nos versos do "Poeta", em que a voz poética critica o som e ritmo sem lastro, os descompromissos de uma arte autônoma, ou o desperdiçado em vozes gratuitas, e mais, criticam-se os valores ideais da nação brasileira, calcada na branquitude, e no equívoco da democracia racial, por meio do (re)conhecimento das histórias que legitimam as diferenças. Nesse movimento, a fala poética constrói-se como uma "voz inaudível sem atabaques / despertada pelas mãos dos ogãs", em movimento da palavra, performatizada: "voz-lâmina / dançando com os espíritos" (p. 57, 58).

Disso, depreendemos também considerações sobre o problema estético, tratamento da técnica e do estilo, a partir do canto desse Atlântico da diáspora, desse oceano de dor, como em: "Poê... poemar", que antes de se constituir poema, é este mar, este Atlântico, turbilhão de acontecimentos, múltiplas formas, diferentes formatos textuais, diversas ações, muitos ritos:

(Rezas orações orikis adurás loas odes feitiços
a posse, a mais-valia a concupiscência da
carne branca, a mestiçaria, as revoltas, os
quilombos, − lança viva da nossa memória −; o
Mundo Novo se abrindo em suas gretas para
um novo homem a ser; uns, sendo a bota,
outros, assolados pelo ferro de marcar e seus
falsos mitos de indolência e barbárie para nos
colocarem aos pés dessa igualdade manca
Assim foi. Assim não será, mais)
                                                    (p. 46)

Na segunda seção, "Fragmentos marítimos", as poesias não se centram em reflexões metalinguísticas, sobre os modos e maneiras de realização, mas sim, trabalham com temas comuns, como o amor e as coisas do cotidiano. Assim, o que é a poesia, parece-nos, fragmento de uma poesia maior, que trata da revelação do epistemicídio, mais que isso, revela uma voz constituída e que não se esquece de tratar das condições do emparedamento, cujos cantos sugerem uma arquitetura poética afrocentrada, repleta de metonímias, algumas elaborações fractais, como grafismos em pano da costa. Cantam-se os sentimentos, os relacionamentos, os amores, em um jogo erótico, ora lascivo; entoam-se "ritmos / de tambores / e lança/chamas / de alegria // assombrando / os seus fantasmas / coloniais" (p. 207).

Pedimos atenção, aí, entre outras partes, no uso da metonímia das "literaturas" no lugar do humano, no poema "Fragmentos marítimos", que dá título à seção:

Entre mim e ti
África desnuda

a cruz
e naus tumbeiras

fantasmas perenes
num rio vermelho
de medo
Literaturas dolentes
boiando
numa garrafa de rum imaginária
pedindo socorro
em todas as línguas
do mundo

Nem o som dos atabaques
chamando pelos Orixás
e suas míticas lembranças

entrelaçam nossas vozes
e nossas consciências
a ver navios...

Ó mar de incertezas
messiânicas

Ó terra
ainda estranha
de mim!

− geografia de histórias
abortadas na
via-sacra marítima −

− Minha pele viva
minha alma viva
mescladas de todas as cores
do mundo!

Entre mim e ti
África-rainha

desnudada
de mim
sete mares de
histórias jamais
deletadas.
               (p. 237-238)

Os poemas do Atlântico dor... questionam os significados desse oceano que o branco ocidente crê como acumulado de líquido salgado, reino de Netuno, lugar de partida da velha terra para a nova, de empreendimento de conquista violenta da África, da invasão do Novo Mundo, como atravessamento de pontes que se erguem para o trânsito de mercadorias e despacho de corpos, braços e pernas para o trabalho. Ao contrário, o poeta (re)constrói esses significados, intenção de deslocamento da matéria poética, em representar esse mar como passagem, da dor, sim, impingida ao humano – as rotas da perversidade e violência do ocidente, caminhos traçados, ligação entre dois pontos, realizada pela memória, pela cultura. Assim, estes poemas nos atravessam por este mar − questionamentos da estética eurocentrada ("E a dor / dos velhos livros / empoeirados / de ranço colonial / só nos remete / ao inferno / do não ser", p. 203) − ao destino, que é movimento, ondas, rotas de dor − mágoas, pesares, aflições, e também compaixão, como conhecimento − em que perfilam poeticamente os roteiros de resistência: sua poesia.

Referências

ABELARDO RODRIGUES. In: literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/verAutor.asp?id=14>. Acesso em 27 ago. 2016.

RODRIGUES, Abelardo. Atlântica dor: poemas (1979-2014). São Paulo: Córrego, 2016. (Série Pretoblack).

* Gustavo Tanus é Licenciado em Letras/português, Bacharel em Edição, Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, doutorando em Letras, Literatura Comparada pela UFRN e pesquisador do NEIA/UFMG;

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