Qual a cor do negro nos livros de literatura infantil?i
Cristiane Veloso de Araujo Pestana*
Introdução
Este estudo faz parte de minhas pesquisas iniciais no doutorado. Trata-se de uma questão que ainda deve ser melhor analisada e, assim, apresentar uma hipótese consistente. No entanto, proponho aqui algumas observações, indagações e possíveis respostas com base nos aportes teóricos selecionados. Apresentarei nestas linhas iniciais um breve histórico de como se deu todo o percurso que nos trouxe até a referida pesquisa.
Após lecionar 15 anos para crianças entre 5 e 9 anos em escolas públicas da periferia, pude perceber dois aspectos marcantes relacionados a Literatura Negra Infantil. O primeiro era a escassez de livros com personagens negros, situação esta amenizada em parte, pela lei 10.639/03[ii] que estimulou o mercado editorial e possibilitou a publicação de vários livros com temática étnico-racial, inclusive, trazendo crianças negras como personagens principais das narrativas. O segundo ponto observado era ver alunos e alunas negros ou mestiços envergonhados de sua cor. Ao se depararem com personagens ou temáticas negras ou africanas, se encolhiam, abaixavam a cabeça e evitavam comentar qualquer coisa durante ou após a contação das histórias, numa tentativa clara de se manter invisível.
Inicialmente não conseguia entender tal fato, porém a inquietação era tão intensa que decidi estudar o assunto e procurar mais informações sobre o que poderia causar tal estranhamento e repulsa por parte das crianças.
A partir de um curso de especialização em Literatura e Cultura afro-brasileira vários de meus questionamentos foram respondidos e o assunto me motivou tanto que decidi estendê-lo ao mestrado e, agora, ao doutorado.
Neste percurso cheguei a algumas conclusões: as imagens dos negros sempre estiveram atreladas ao processo de escravidão e, portanto, era desta maneira que se davam suas representações na literatura, inclusive nos livros didáticos. Somente alguns anos depois da promulgação da lei 10.639/03 é que começaram a surgir alterações significativas nos materiais didáticos e literários que circulam pelas escolas. O processo é recente e percebemos que ainda há um caminho longo a se percorrer para que seja possível solucionar todos os entraves que envolvem a questão da representatividade e da identidade fomentada através da literatura.
Dentro da minha proposta de tese para o doutorado, cujo tema é Representação Feminina Negra na Literatura Infantil, vários pontos foram observados e se tornaram alvo de investigação, muitos deles ainda sem uma hipótese fechada. Um destes pontos estudados trata das ilustrações. Como são pensadas e realizadas? Quão significativa é a participação do autor no processo de ilustração? Os aspectos artísticos e estéticos envolvidos no desenho? A relação do texto imagético em que, muitas vezes as imagens chegam antes do texto escrito (principalmente para crianças ainda não alfabetizadas) e, sobretudo, o que tais imagens provocam nos pequenos leitores?
Neste contexto das ilustrações, um fato observado se tornou intrigante e acabou se tornando pauta para o presente artigo: a cor dos negros nos livros de literatura infantil. Questão que será apresentada e discutida nos capítulos seguintes.
1 – A Literatura Infantil e a lei 10.639/03
Com o advento da criação e implementação da lei 10.639/03, o debate sobre as ações afirmativas se consolidou e ganhou maior visibilidade nos espaços educacionais. Foram criadas políticas públicas para a promoção da igualdade racial na sociedade brasileira, entre elas o sistema de cotas nas universidades e a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais(2003). Esta última teve seu texto original publicado e distribuído pelo Ministério da Educação MEC a todos os sistemas de ensino.
Além de várias outras ações promovidas a partir desta lei, está o projeto A Cor da Cultura (2005), criado em parceria com a Fundação Roberto Marinho, que trata-se de um kit com livros teóricos, destinados à formação docente, livros literários voltados ao público infantil e DVDs com informações adicionais e livros animados. Em 2009, foram distribuídos 18.750 kits às Secretarias de Educação Estaduais e Municipais de todo o Brasil.
Contudo, todo este empenho positivo em criar estratégias de valorização da cultura afro-brasileira e combater o racismo, estimulou e aqueceu o mercado editorial brasileiro.
Numa busca de atender a demanda do mercado, muitas editoras publicaram livros com temática racial, contemplando contextos envolvendo as africanidades e utilizando crianças negras como personagens centrais. Porém, notamos que nem todos os materiais publicados possuem alicerces essenciais para promoverem o que objetiva a lei, ou seja, o combate ao racismo e ao preconceito.
Muitos livros abordam as temáticas negras de forma rasa e sem embasamento teórico-crítico, muitos apresentam problemas graves relacionados às ilustrações, sendo estas muitas vezes caricatas, estereotipas e até, desumanizadas. Além destes pontos apresentados, podemos notar uma “morenização” dos personagens negros. Fato este que trataremos com mais profundidade nos capítulos seguintes.
Sobre o enfrentamento do racismo e dos preconceitos estabelecidos, entendemos a literatura como uma forte aliada, tendo em vista seu caráter lúdico, simbólico e reflexivo. Pensar na relação entre literatura infantil e negritude, é também, refletir sobre um contexto de ausências, afirma a pesquisadora Regina Dalcastagné. A pesquisa da autora é muito relevante para o cenário literário étnico, pois faz um estudo quantitativo sobre a falta de representação das personagens negras e sobre a representação estereotipada.
De acordo com a pesquisa e o mapeamento feito pela pesquisadora Eliane Debus, a visão etnocêntrica dos livros infantis, calou a voz dos negros, o que ocorreu através da ausência de personagens protagonistas negros e pela construção de um discurso hegemônico. Para a autora, o caráter simbólico da literatura pode contribuir para reflexões que rompam a visão construída através da desigualdade étnica e que possam ser repensadas através de uma visão que contemple a valorização da diversidade. “A identificação com narrativas próximas de sua realidade e com personagens que vivem problemáticas semelhantes as suas leva o leitor a re-elaborar e refletir sobre o seu papel social e contribui para a afirmação de uma identidade étnica” (DEBUS, 2007, p.1).
A literatura, de uma forma geral, auxilia na compreensão do mundo e das relações humanas através da exposição dos contextos sociais existentes. Ou seja, através do contato com uma realidade, por meio do texto literário, o indivíduo pode ser capaz de elaborar e reelaborar melhor suas questões a respeito de si, do outro, do mundo e da vida.
Portanto, é de suma importância que os livros infantis com temática étnico-racial prezem por uma qualidade estética, imagética e narrativa. Pois, ao contrário, poderá auxiliar na manutenção dos estereótipos e perpetuar o racismo entre a sociedade brasileira.
Conforme salienta a pesquisadora Maria Anória Oliveira (2015), o trabalho com a arte literária, seja no âmbito da produção, ou da seleção e difusão dos livros de literatura infantil sob a temática étnico-racial, requer um olhar crítico para não endossar o que se deseja desconstruir. Segundo ela, a escola pode multiplicar essas “nódoas emocionais” caso não haja as devidas intervenções.
2 – Literatura infantil e representação
Os personagens negros dentro da literatura infantil surgiram no final da década de 1920 e início da década de 1930, apresentados em situações de subalternidade, descreve a pesquisadora Andréa Lisboa de Sousa (2005). A partir de 1975 surge uma literatura comprometida com uma representação mais realista, porém ainda, em muitas vezes, estereotipada e discriminatória. Os conflitos apresentados não eram capazes de desconstruir as amarras sociais do racismo. Da década de 80 em diante, surgem alguns livros que rompem com as formas de representações, sobretudo das personagens femininas, assim como nos mostra sua pesquisa:
Primeiro, esses livros mostram a resistência da personagem negra para além do enfrentamento de preconceitos raciais, sociais e de gênero, uma vez que retomam sua representação associada a papeis e funções sociais diversificadas e de prestígio. Segundo, eles valorizam a mitologia e a religião de matriz afro, rompendo, assim, com o modelo de desqualificação das narrativas oriundas da tradição oral africana e propiciando uma re-significação da importância da figura ancestral em suas vidas. Terceiro, soma-se a isso, o fato de elas serem personagens femininas negras principais, cujas ilustrações se mostram mais diversificadas e menos estereotipadas. (SOUSA, 2005, p. 5)
Em vários livros observados, encontramos pontos positivos e negativos, levando em consideração a perspectiva de tentar promover o objetivo idealizado pelas políticas afirmativas, ou seja, o combate ao racismo e o preconceito racial no Brasil. No geral, percebemos que as personagens femininas são maioria entre os livros de literatura negra voltada para crianças, e, em sua maioria, abordam temas relacionados à identidade e ao cabelo. Poucos são os livros que não abordam a questão racial e apresentam as personagens em contextos diversos, narrando situações do cotidiano.
Um destaque positivo nesta perspectiva, de sair do contexto africano e racial, e trazer as narrativas para a contemporaneidade, seria a coleção Sara e sua Turma, onde a personagem Sara aparece em vários contextos distintos (escola, rua, família...), que no nosso modo de entender, se aproxima mais das crianças de hoje. Mesmo com tantos pontos positivos, a ilustração desta coleção nos chama atenção. A personagem Sara é a representação de uma menina real. Sara existe fora dos livros de literatura, que foram escritos por sua mãe Gisele Gama. Porém, nas imagens, Sara aparece mais clara do que é na realidade.
Fonte: Google imagens Sara e sua Turma
Sara é uma menina negra, de pele bem escura e com cabelos crespos. Nos livros pertencentes à coleção Sara e sua Turma, ela aparece mais clara e com cabelos cacheados. Os cachos são largos, o que é mais comum nas mulheres morenas, mais claras, do que nas negras retintas. Fica a questão: porque tal fato ocorreu? O que será que acontece na parte gráfica desses livros? Por que Sara teve seus traços modificados pelo desenho?
A maioria dos livros analisados numa pesquisa inicial para a escolha do corpus da tese (cerca de 35, todos publicados pós lei 10.639/03) apresentam personagens negros coloridos com a cor marrom. As personagens femininas, geralmente, apresentam questões identitárias envolvendo o cabelo, porém, em sua grande maioria são cabelos cacheados e não crespos.
É sabido que o negro brasileiro é fruto de uma miscigenação que envolveu a diáspora africana, a influência indígena e a cultura dos povos imigrantes, inclusive dos colonizadores. O que resultaria, pelo imaginário social, num ser híbrido (Glissant, 2005) e de pele mesclada, ou seja, de tom variado, em sua maioria marrom ou bege claro. Por outro lado, não podemos esquecer que há muitos negros de pele preta, os chamados negros retintos, que fazem parte deste mesmo povo brasileiro e que, por muitas vezes não se vê representado. De acordo com a pesquisadora Lília Moritz Schwarcz “definir a cor do outro ou a sua é mais do que um gesto aleatório; o ato vincula outros marcadores fundamentais para a conformação e o jogo das identidades” (2012. p. 102). Para a pensadora Nilma Lino Gomes, a identidade negra é construída com base na aceitação das características físicas como o cabelo e a cor da pele. Daí a relevância das representações dos negros, especialmente crianças negras, se darem de forma mais realista possível.
Fica aqui uma questão: substituir a cor preta pela marrom seria uma forma de racismo?
3 – A morenização dos personagens negros nas narrativas infantis
Como já mencionado, analisando os livros com temática étnico-racial com personagens negros, constatamos que a cor marrom é utilizada nas ilustrações para colorir meninos negros e meninas negras. Fato que descreveremos neste estudo como sendo uma “morenização”[iii] dos personagens.
Alguns destes personagens são descritos como negros e possuem características físicas de negros retintos, ou seja, negros de pele escura. Traços fenotípicos como cabelos crespos, lábios grossos e nariz alargado são mais predominantes nas pessoas de pele preta e não em mulatos ou morenos. Vejamos alguns exemplos:
A personagem Lulu e seu pai. Do livro Lulu adora histórias. (MC’QUINN, 2014, não paginado)
Nesta ilustração, retirada do livro Lulu adora histórias (2014), podemos perceber nitidamente, através dos traços físicos dos personagens que se tratam de pessoas de pele mais escura, o que contrapõe a cor utilizada na representação. O nariz, o cabelo, e até o penteado utilizado pela menina comprovam a ideia de que a cor de sua pele não corresponde à realidade.
Outro exemplo que nos causa estranhamento, está no livro O menino Nito (2011), em que todos os personagens são exatamente da mesma cor (pai, filho, mãe e o médico que vem atender o menino). Todos coloridos com o mesmo tom de marrom, sem que haja nenhuma variação sequer, o que seria na prática um fato quase impossível de acontecer.
Ilustração do livro O menino Nito. (ROSA, 2011, p. 5)
Um outro exemplo desse branqueamento dos personagens negros ocorre no livro O colecionador de pedras (2014), em que a mãe do personagem principal tem olhos azuis. Fenômeno genético que ocorre em algumas pessoas negras de pele preta, e não marrom.
Personagens do livro O colecionador de pedras. (AGUSTONI, 2014, p. 13)
É importante salientar que o objetivo deste estudo não é criticar a arte da ilustração, mas sim entender a recorrência do fato de branquearem a cor dos negros em quase todos os livros infantis, inclusive nos livros que retratam a África.
Não há, nos mais de 30 livros analisados, nenhuma representação de personagens africanos de pele preta. Todos são marrons.
Não é que todo negro africano deva ser preto, pelo contrário, é necessário desmistificarmos o continente africano e apresentar às crianças todas as Áfricas existentes. O que nos incomoda é o fato de não haver nenhuma representação africana colorida de preto.
Desta forma, observamos novamente o fenômeno da padronização, em que todos os personagens ilustrados, sejam da mesma família ou não, possuem o mesmo tom de pele. O mesmo tom de marrom. Vejamos: