Haussá: 1815 – rememorando o passado a partir da ação

Adélcio de Sousa Cruz*

“O mundo do tráfico de escravos é idêntico ao mundo da caça, da captura, da colheita, da compra e venda. É o mundo da extração bruta. O capitalismo racial é o equivalente a uma vasta necrópole”. Achille Mbembe (2014, p. 234).

Ao narrar uma história cada pessoa trata de escolher o modo como irá contá-la. O romance Haussá: 1815 – Comarca de Alagoas (2016), traz em seu bojo a estratégia do narrador personagem, tecendo as suas desventuras e vitórias durante a longa jornada de sua vida, com traços parodísticos ao que é denominado “romance de formação”. Bomani possui a voz que levará o leitor durante doze capítulos, organizados com o foco a partir da ação, lembrando a estrutura bem típica do romance inglês dos séculos XVIII, a exemplo de Robson Crusoé e do romance francês do século XIX, a exemplo de Os três mosqueteiros. O livro escrito por Júlio César Farias de Andrade foi um dos cinco trabalhos agraciados com a publicação, a partir do Prêmio Oliveira Silveira, referente ao ano de 2015, concurso literário a cargo da Fundação Palmares, com sede em Brasília-DF. O autor é natural do estado de Alagoas, trabalha com pesquisas na área de biotecnologia – doutorado na Rede Nordeste de Biotecnologia – é ainda capoeirista angoleiro e Mestre de Maracatu do Baque Virado, também em Alagoas. A multiplicidade de áreas de atuação de Júlio César Andrade parece ser transposta para a personagem central de seu romance: Bomani, que nasce na cidade de Kano, ao norte da Nigéria, no início do século XIX, possui diversas habilidades que se desenvolvem no decorrer do enredo, e dele será a voz que tece todos os acontecimentos de uma trajetória que começa em África e passa pelo nordeste brasileiro, mais especificamente nos estados de Alagoas e Bahia.

A palavra haussá no título do romance indica a denominação de um dos grupos étnicos do norte da Nigéria que adotaram a religião islâmica. É exatamente parte desse grupo que foi responsável pela Revolta dos Malês, na cidade de Salvador, no ano de 1835. Outro dado importante, trazido para o público brasileiro, é que houve outra tentativa anterior à rebelião na capital baiana, no ano de 1815, no estado de Alagoas na região próxima à foz do rio São Francisco, na então Vila de Penedo.

Não podemos deixar de mencionar a semelhança da história de Bomani com a trajetória de outra personagem ficcional africana/afro-brasileira do séc. XIX, que se torna uma das mais importantes para o que podemos classificar como romance histórico afro-brasileiro: Kehinde, criada pela escritora mineira Ana Maria Gonçalves em seu romance Um defeito de cor (2006). Também como ocorre no texto de Gonçalves, o público leitor terá oportunidade de retomar acontecimentos históricos em relação ao passado escravagista do Brasil colônia, além de conhecer mais um pouco sobre a cultura islâmica a partir da personagem Bomani. As semelhanças entre as duas narrativas não terminam nesses pontos apenas. Entretanto, uma das tarefas mais difíceis de toda resenha é evitar o que, para o cinema, denominamos spoiler, e antecipar para o público pontos essenciais da trama de ficção, “roubando” dele a surpresa de descobrir, por si só, o desenrolar de cada clímax proposto na narrativa. Portanto, devemos parar aqui e não ampliar a comparação entre os dois textos!

Retomaremos agora a epígrafe de Achille Mbembe, pois um dos temas centrais de toda narrativa histórica afro-brasileira é a questão do sistema escravista e as “cenas primordiais da violência” (POLAR, 2000) que ele imprimiu em nosso passado e cujas marcas persistem de maneira negativa para a comunidade negra/afro-brasileira – e devemos mencionar ainda para a parcela dos povos nativos. A sociedade brasileira teima em não prestar contas às vítimas das mais nefastas consequências do “mundo da extração bruta”, representado ora por nosso passado escravagista, ora por nossa racista e nada cordial contemporaneidade. O romance de Andrade aponta para uma das violências cruciais do antigo sistema e que, até hoje, parece ecoar: no passado, o sistema colonial português impediu com eficiência mortal o acesso à escrita por parte dos africanos escravizados e dos povos nativos, bem como dos demais colonos. No presente, mesmo tendo-se criado e ampliado o direito à educação formal e à escrita, tal acesso continua a sofrer restrições, especialmente para aqueles grupos étnicos que, atualmente, pertencem ao que denominamos de “classes populares”. Vejamos trecho referente a um dos diálogos de Bomani:

– Não gosto de vir para este lado do império. Comentei com Enitan.

– Sei disso Bomani, mas temos um trabalho a fazer, designado diretamente pelo Alaafin Maku. Respondeu Enitan, calmamente, enquanto cavalgávamos em direção ao Leste do Império de Oyo, acompanhados por alguns guerreiros Yorùbás. – Também sei o motivo. Foi nesta rota, vinda do Norte, que você foi capturado pelos Fulanis e transportado, impiedosamente, até Oyo. Continuou Enitan, olhando para mim.

– Sim, você tem razão. Foi uma experiência negativa e tento não lembrar; porém não acredito que seja apenas isto. Disse, olhando a estrada à frente.

– Como assim? Arguiu Enitan.

– Mais do que minhas dolorosas lembranças, o que me incomoda nesta região é a presença dos comerciantes de prisioneiros que agora margeiam a rota dos mercadores caravaneiros. Pelo que contam, e pelo que vejo no mercado de Oyo, são verdadeiras aves de rapina buscando presas, sem escrúpulos, sem humanidade. Aproveitam-se de prisioneiros de guerras que não são as deles e os transportam como mercadoria para outras terras, que pouco sabemos como são! Respondi indignado. – Um comércio espúrio, ambicioso, que vem contaminando todos que por aqui negociam, inclusive aqueles que vêm da própria cidade de Oyo. Falei, virando a cabeça para fitar Enitan.

– O comércio de prisioneiros de guerra é antigo, Bomani, e você sabe disto. Respondeu Enitan, parecendo ainda mais calmo.

– Claro que sei. No entanto esta negociação acontecia, na maioria das vezes como forma de pagamento de dívidas, onde os prisioneiros de guerra, ou até mesmo membros da família devedora, eram fornecidos como trabalhadores até que as dívidas fossem pagas. E estas pessoas recebiam um tratamento muitas vezes similar aos da família receptora e podiam até chegar a exercer funções importantes dentro da sociedade que, a princípio, os aprisionou. Eu sou uma prova do que estou falando! Exclamei, batendo no peito.

Desta vez Enitan não respondeu. Pareceu pensar no assunto, como se aquilo estivesse sendo analisado pela primeira vez.

(ANDRADE, 2016, p. 155).

Há neste romance outros elementos centrais para a sobrevivência de sua personagem principal: a memória e a capacidade de Bomani de, constantemente, re-significar seu passado ou, ainda, ser obrigado a fazê-lo, como está representado pelos diálogos anteriormente citados. Como salientamos no início, o texto possui foco na ação, mas isto não exclui o crescimento psicológico da personagem, representado talvez por sua enorme capacidade de resiliência: superar os obstáculos impostos pela violência da primeira “necrópole” do capitalismo: a escravidão com bases raciais/étnicas. Por isso, nossa escolha pelos trechos do diálogo entre Bomani e Enitan, nos quais se revela, aos poucos, o que Orlando Patterson (1982) ao estudar comparativamente os sistemas escravagistas denomina de “morte social”: o sujeito capturado e tornado escravo é, simultaneamente, transformado em “coisa”, é objetificado, transmudado em mera “mercadoria”. E por extensão do diálogo citado, apontamos os ecos da relação de nosso presente com o passado colonial: “todo camburão”, bem como uma área essencial para o capitalismo – o setor de Recursos Humanos – também “tem um pouco de navio-negreiro” (YUKA, 1994).

Referências

ANDRADE, Júlio César Faria de. Haussá: 1815 – Comarca das Alagoas. Brasília-DF: Fundação Cultural Palmares, 2016.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MBEMBE, Achille. Réquiem para o escravo. In: MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014. p. 223-252.

PATTERSON, Orlando. Slavery and social death – a comparative study. Harvard University Press; Cambridge, Massachusetts and London, 1982.

POLAR, Antonio Cornejo. O condor voa: Literatura e cultura Latino-Americanas. Trad. Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2000.

YUKA, Marcelo. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. In: O Rappa. Rio de Janeiro: Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 15.

* Doutor em Literatura Comparada e Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, é professor de Teoria da Literatura e Literatura brasileira do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Também é licenciado em Letras – Língua Inglesa – pela UFMG. Ademais, é pesquisador dos núcleos NEIA e NELAP da Faculdade de Letras da UFMG. Atualmente, coordena o projeto de pesquisa “Literatura contemporânea brasileira: diálogos e desafios”, vinculado à linha de pesquisa “Literatura, cultura e sociedade” do Departamento de Letras da UFV.

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