Castro, ouves a poesia negra?

                                                                                                                                                                                                           Luiz Silva *

 

Resumo

Há uma relação estreita entre a obra do poeta Castro Alves e a poesia dos negros brasileiros, pela temática, bem como por seus apelos à oralidade. A necessidade de mobilização social gerou muitos poemas próprios para a declamação. Deu-se uma identidade ideológica e, ao mesmo tempo, formal. O maior poeta abolicionista do Brasil, apesar de  branco, tornou-se um símbolo de luta. Daí a profunda influência de sua obra. Entretanto, a visão do mundo e o engajamento contra o racismo permitiram aos afro-descentes criar uma poesia  visceral que, no diálogo crítico com o Poeta dos Escravos, revela uma subjetividade singular nascida da experiência vivida. Luiz Gama, que escreveu sua obra antes de Castro Alves, Cruz e Sousa, Solano Trindade e os poetas contemporâneos Carlos de Assumpção, Oswaldo de Camargo e Éle Semog são os autores escolhidos para esta aproximação textual, escrita em um estilo epistolar.

 

Vivo, presente em nosso tempo, tens ocupado muitas falas e textos. Ninguém duvida dos teus 150 anos de idade, apesar de um óbito registrado aos 24 apenas.
Se vivo está, carece de ouvir, com os ouvidos possíveis, que te são garantidos pela eternidade.

Em que pesem os anos, a arte traspassa-os com a leveza dos passos, ainda que leve consigo velhos conflitos mal solucionados. E, entre tantos destes, aquele, que contemplou o afro-exilado pela força bruta, ainda carece de elucidação profunda. E tu já havias percebido um dos símbolos mais expressivos para a nossa complexa identidade de povo: Palmares. A este quilombo fizeste tua “Saudação”:

Salve! Região dos valentes
Onde os ecos estridentes
Mandam aos plainos trementes
Os gritos do caçador!
E ao longe os latidos soam,
E as trompas da caça atroam...
E os corvos negros revoam
Sobre o campo abrasador!...”

Foi acertado, meu caro Secéu. Permita-me a intimidade. O Quilombo Maior foi recuperado na figura de Zumbi, que renasceu da invisibilidade em que foi mantido durante muito tempo. Sabias do abismo que te separava da senzala. Mas ele não impedia que chegasses, com as asas de teu condor, a outra margem da saga brasileira, a mais dura e difícil, que desde muito cedo, a tua imaginação foi meio para desvendar.

De África, a tua visão incluía basicamente leões e os areais de onde vinham os acorrentados, viemos, vim. O que reduzia, drasticamente,  aquela dimensão continental. Mas, que importa o que depois se descobre? Afinal, estamos presos ao nosso tempo, enquanto vamos tecendo, com os saberes possíveis, a nossa eternidade.

Os gemidos devem ter te incomodado profundamente. Certamente porque convergiam para os de Leopoldina, a tua babá. Ouviste, sem dúvida, que juntos com ela moravam versos trazidos de longe e transmitidos das seivas dos lábios para o veludo escuro do ouvido, como  herança. Embora estranhos à dicção dominante - aquela cheirando, principalmente, perfume francês e revolução - afetividades noturnas de uma África mais íntima já te haviam impregnado de histórias a infância.

E, ainda hoje, aquele mesmo fio continua. Só que, agora, também tua poesia a ele está intimamente trançada. E os tons são vários. E de todos os pontos do mundo chegam outros que se associam. E há mesmo os que dialogam contigo. E dizem coisas diversas. Que o tempo ensinou muita coisa. Outras tantas africanias que não propuseste, mas algumas que intuíste. Quando a doença bateu na tua porta, sonhavas com uma epopéia a partir da experiência da República de Palmares  , assim como, mais tarde o romancista Lima Barreto projetaria um “Germinal Negro” , o que também não redundou em obra. Outros mais tarde se aventurariam, pois a saga afro-brasileira é repleta de dor, mas também de heroísmos e mistérios.

Não foste o poeta para os escravizados, mas foste o poeta sobre os escravizados, como só poderia ser, na tua condição de branco, escrevendo num tempo de profundo desdém dirigido à humanidade dos africanos e afro-descendentes no País. Um tempo em que aprender a ler, para os mais sofridos, era crime ou petulância, passíveis de punição. Escrever então!.. Acaso houve algum de teus recitais na senzala ou talvez em algum quilombo? E teria dado certo? Mas, os escravizados tiverem filhos, e seus filhos outros filhos, outros filhos... Por essa via chegaste ao quilombo de dentro do peito. E o brilho genuíno da dor e  revolta, passou a se refletir em letra e voz, mais intimamente.

Poemas de ontem conversam com poemas de hoje e conversarão com os de amanhã, os que ainda habitam o limbo. Assuntos prediletos, tons, visões do mundo, estilos, opções estéticas, contrariedades. São várias e múltiplas as aproximações. Não há poeta que não dialogue suas intimidades com outras tantas.

Castro Alves, de tantos diálogos havidos, ouves, por acaso, este  que tua obra entabula com os filhos, netos, bisnetos e tataranetos dos escravizados de teu tempo?

Mesmo antes de teu nascimento, em 1830, um teu conterrâneo, filho da guerreira Luiza Mahin, fora vendido pelo pai, branco este, aos dez anos de idade. Mas ainda assim, libertou-se e chegou, satiricamente, às letras com a tintura da afro-história-brasileira. E constatava:

[...]

Mordendo na sola,
Empunha o martelo,
Não queiras com brancas
Meter-te a tarelo.

[...]

Que o branco é mordaz
Tem sangue azulado;
Se boles com ele
Estás embirado.

[...]

Ciências e letras
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente aqui

[...]

Desculpa, meu amigo
Eu nada te posso dar;
Na terra que rege o branco
Nos privam té de pensar!
Ao pêso do cativeiro
Perdemos razão e tino,
Sofrendo barbaridades
Em nome do ser divino!!

Tinhas, meu caro Antônio, apenas 12 anos, quando o poeta satírico e abolicionista Luís Gama publicou, em São Paulo, seu único livro, as Trovas Burlescas de Getulino (1859). Já era o “eu” diferenciado, que tanto te esforçaste para captar, dando voz a teus personagens negros, como em “Máter Dolorosa”, “Canção do Africano”, “Tragédia no Lar”, “Bandido Negro” e outros poemas. A tua voz de branco, e livresca, é verdade. Mas também a tua arte de se imaginar o “outro”, como o fizeste em “Vozes d’África”, sendo esta concebida por ti em primeira pessoa. Àqueles - salvo exceções como a do “Orfeu da Carapinha”   - cujo silêncio imposto era uma das piores correntes, imaginá-los falando em verso e transmitindo suas dores e revoltas ao teu público, foi algo de suma importância, sem que, certamente, os prisioneiros da escravização o soubessem e os escravistas te levassem a sério.

E veio um filho de escravizados conquistar um lugar no painel das letras nacionais. Também untou-se de noite, e com as tintas mais trágicas e as ironias mais incandescentes. Este não foi vendido. Mas espezinhado pelo racismo até o desespero. Foi um teu admirador confesso. Amou teus versos na juventude. Quando do teu nascimento para a eternidade, em 1871, ele contava apenas 9 anos de vida.   Por uns tempos, emprestou de ti, e de tuas fontes estrangeiras, o tom oratório. Afinal

O século XIX brasileiro é caracterizado por quatro tônicas: Nacionalismo, Liberalismo, Retórica e Revolução, não se podendo com toda a certeza precisar onde termina a primeira para dar lugar à segunda e onde a terceira fronteia a última, pois que o espírito que exacerba o nacionalismo vive de liberdade e esta se exprime sob a forma de discurso ou de tiro de canhão

Mas, aquele que ficou conhecido como o maior simbolista brasileiro, Cruz e Sousa, levou ao extremo a visão do emparedamento que tu procuraste denunciar. A dor que tu cantavas, ele era esta dor. Por isso, podia expor seus dilaceramentos interiores - contava com a história pessoal - e, também, dirigir-se à África com a intimidade de filho, para apontar-lhe o suplício ao qual a submetiam:

O que canta Réquiem eterno e soluça e ulula, grita e ri risadas bufas e mortais no teu sangue, cálix sinistro dos calvários do teu corpo, é a Miséria humana, acorrentando-te a grilhões e metendo-te ferros em brasa pelo ventre, esmagando-te com o duro coturno egoístico das Civilizações, em nome, no nome falso e mascarado de uma ridícula  e rôta liberdade, e metendo-te ferro em brasa pela boca e metendo-te ferros em brasa pelos olhos e dançando e saltando macabramente sobre o lodo argiloso dos cemitérios do teu Sonho.

Foi um grande “eu” poético negro, que, em uma idade decisiva para a formação cultural, encontrou em tuas ousadias artísticas e ideológicas algumas direções de caminhos. Os “eus” de personagens postados eretos em teus poemas, brandindo dignidade e, para alcançá-la, fazendo uso até mesmo do suicídio ou da vingança, foram um grande legado.

Depois da virada do século, a afro-descendência encontrou em teus poemas abolicionistas um dos instrumentos para a redescoberta de si mesma, para o seu posicionamento na História, reescrevendo-a. A indignação e a saga, irmanadas em tua literatura social, aproximam-te da Poesia Negra. Castro, ouves?

PROTESTO

Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar
Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar
Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da Pátria
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é
E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vítima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do país
O que sofrera mil torturas
O que chora inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
Sou eu meu irmão aquele
Que viveu na prisão
Que trabalhou na prisão
Que sofreu na prisão
Para que fosse construído
O alicerce da nação
O alicerce da nação
Tem as pedras dos meus braços
Tem a cal das minhas lágrimas
Por isso a nação é triste
É muito grande mas triste
E entre tanta gente triste
Irmão sou eu o mais triste
A minha história é contada
Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava
Para uma prisão mais ampla
Foi um cavalo de Tróia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria
Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade
Irmão sou eu quem grita
Eu tenho fortes razões
Irmão sou eu quem grita
Tenho mais necessidade
De gritar que de respirar
Mas irmão fica sabendo
Piedade não é o que eu quero
Piedade não me interessa
Os fracos pedem piedade
Eu quero coisa melhor
Eu não quero mais viver
No porão da sociedade
Não quero ser marginal
Quero entrar em toda parte
Quero ser bem recebido
Basta de humilhações
Minha alma já está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Quero a vida que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me fazer calar

(Carlos de Assumpção)

Ainda a direção aponta para um leitor ideal privilegiado, similar aos teus: “Senhores”, “Irmão”. Brancos, sem dúvida. No entanto, o porão do navio é o “porão da sociedade”. E já não se insiste com aquela tua busca de comiseração divina, como em “Vozes d’África”, ou humana, com em “Canção do Africano” e tantos outros poemas. Carlos de Assumpção é enfático: “Piedade não é o que eu quero / Piedade não me interessa”. Mas, daquele teu primeiro poema e de “Tragédia no Lar”   podem ter viajado no tempo os “Bastas!” Lembras?

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão para os crimes meus!
Há dous mil anos eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!..

[...]

- Senhores! basta a desgraça
De não ter pátria nem lar,
De ter honra e ser vendida,
De ter alma e nunca amar!
Deixai à noite que  chora
Que espere ao menos a aurora,
Ao ramo seco uma flor;
Deixai o pássaro ao ninho,
Deixai à mãe o filhinho,
Deixai à desgraça o amor.

Ao “Basta!” de Assumpção segue um “Eu quero”. E é este querer negro que define a autonomia dos novos tempos. A libertação dos escravizados foi um sucesso. Para os brancos. Como “a justiça não chegou” e os abolicionistas deram por encerrada sua tarefa, coube aos afro-descendentes continuar “seu” projeto de liberdade. Do “Protesto”, de Carlos de Assumpção, ao “Atitude”, de Oswaldo de Camargo, pode-se perceber outro passo fundamental: o “eu” poético concebe um “nós”, o qual vai constituir com o destinatário ideal do discurso. A saga continua, porém a sua singularização vai situar-se no nível da elaboração estética. E nela, tu, meu caro Antônio, será intertextualizado. Ouves?

ATITUDE

Eu tenho a alma e o peito descobertos
à sorte de ser homem, homem negro,
primeiro imitador da noite e seus mistérios.
Triste entre os mais tristes, útil
como um animal de rosto manso.
Muita agonia bóia nos meus olhos,
Inspiro poesia ao vate branco:
“... Stamos em pleno mar...”
Estamos em plena angústia!
Angústia, o Signo do Espanto
pousado na nossa nuca!
Por isso, a rastro, ensaiamos
andanças desaprendidas,
calcando os pés na paisagem
escura, seca, estranha.
Não seja o vento barreira
à nossa ida à montanha...
Anoitecidos já dentro,
tentamos criar um riso,
não riso para o senhor
não riso para a senhora,
mas negro riso que suje
a rósea boca da aurora
e espalhe-se pelo mundo
sem arremedo ou moldagem,
e force os lábios tão finos
da senhorita igualdade!
Estamos com a cara preta
rasgando a treva e a paisagem
minada de precipícios
velhos, jamais arredados!
Enforcaram-nos, irmãos,
com os laços de mil enganos!
Despidos, as mãos atadas,
nós fomos ver a cidade;
chegamos, então, sem chave,
sem prestante ferramenta,
nem madeira para escada...
A festa, vimos de longe,
sorvemos tragos de nada!
Falaram-nos da Esperança...
Perguntamos: é casada,
o que come, com quem dorme,
conhece a face de um negro?
E, se conhece, então fica
com ele, e, assim sendo, finca
alicerces de começos?
Falaram-nos da Esperança...
Chegamos com nossa escada,
a chave e a ligeireza
para atingir muitos cumes...
Abraçamo-nos à noite,
trajamos os seus negrumes,
esperamos a Esperança...
Mostrou-nos um rosto falso,
nas mãos... um futuro torto,
aleijado, de dar pena!
Então é chegado o tempo
do amanho, a poda e a safra
do trigo na nossa testa
do grão estourando no peito.
Então é chegado o tempo
de torcer o mundo ao jeito
da semeadura que estala
e nasce em arroubo de força
e cobre os campos da terra
com os verdes do escuro peito!
Eu tenho a alma e o peito descobertos
à sorte de ser homem, homem negro,
primeiro imitador da noite e seus mistérios.
Triste entre os mais tristes, útil
como um animal de rosto manso.
Muita agonia bóia nos meus olhos,
Inspiro poesia ao vate branco:
“... Stamos em pleno mar...”
Estamos em plena angústia!
Negro, ó negro, pedaço de noite,
pedaço de mundo ergue-te!
Deixa essa mansidão nos olhos,
tua delicadeza,
e o fácil riso jovial.
Sê duro, ó negro, duro,
como o poste em que mil vezes te chicotearam.
Sê negro, negro, negro,
maravilhosamente negro!

Oswaldo de Camargo

Depois de mais de um século do início da publicação de tua obra, meu querido Frederico, o poeta Oswaldo de Camargo, irmanado a tantos outros, expõe os movimentos de uma subjetividade que, ao propor uma solidariedade entre negros, cria, em face da ideologia da “democracia racial”, a estranhamento. Em seu poema, negro é a fonte, a sede e o ato de beber. Não mais o “negro tema”, mas o “negro vida”  . Poema como causa existencial, libertação dos “grilhões e correntes / que no presente são invisíveis”, como sinalizou Carlos de Assumpção no “Protesto”. Dessa subjetividade singular deriva a ousadia de permitir, no texto, que o legítimo ressentimento e rancor - o ódio santo de que falava Cruz e Sousa -, superando os pudores ideológico-moralistas dos cânones literários, também fossem passíveis de poesia.  Ainda aqui, a tua familiaridade. Em outro nível, hoje, é assumida a postura do teu

BANDIDO NEGRO

[...]

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

[...]

Trema o vale, o rochedo escarpado,
Trema o céu de trovões carregado,
Ao passar da rajada de heróis,
Que nas éguas fatais desgrenhadas
Vão brandindo essas brancas espadas,
Que se amolam nas campas de avós.

Mas, veja, há um outro desejo de vingança, mais amplo, que Éle Semog traz na primeira parte de seu poema O Arco-Íris Negro, intitulada “Odisséia”:

Tragam as flores do campo
E os guerreiros mortos
Tragam o silêncio
E a mão de ferro do rei inimigo
Tragam o grito de pavor de seu filho
E tragam também sua alma acorrentada.
Hoje é dia de vitória e vingança!
Tragam suas mullheres amordaçadas
E tragam os tesouros da corte
Tragam tudo o que for visível
Para jogar numa imensa fogueira
Tragam rosas, jasmins, lírios
Para enfeitar nossa bonança
Acordem nossos antepassados
E mais, todos os homens
Que foram escravos e suas almas vagantes
Tragam o chicote e o mourão
Tragam a faca e os grilhões
Pois a justiça não há de escapar de nossas  mãos.
Tragam a cruz cristã
Para que ela não nos deixe mentir.
Tragam o coração do rei
Para que eu possa comê-lo
E ensanguentar os meus dentes tão valiosos
Tragam as flores do campo
Para que sejam regadas com as lágrimas do  inimigo
Pois até hoje
Elas eram regadas com  o nosso sangue,
Com a seiva de nossas ambições de gente.
Éle Semog

O “rei inimigo” demonstra o sentido da crítica social ampla.

Podemos mesmo dizer que, através do tempo, Prometeu que foste, pudeste aportar para a atualidade a labareda singular da paixão, com a qual estabeleceste correspondências profundas com a Poesia Negra contemporânea, não aquela voltada para o folclore, para um ufanismo cultural daquilo que há de amorfo na tradição, mas a que nasce de um compromisso visceral com a vida humana. Depois de várias iconoclastias literárias - algumas que aboliram das palavras, quase por completo, o sentimento e a empatia com o outro - continuas a instigar quantos se acovardam diante da vida e diante da necessidade de se transformar o mundo para melhor, em todas as suas dimensões.

De banzos marcados pela perda da terra original, que muito sinalizaste na trajetória dos escravizados, chegou-se, nos dias de hoje, ao lugar distante do “si mesmo”, do ser-pessoa-cultura-identidade. A afirmação da Poesia Negra reconhece a necessidade desta busca. “Eu sou” é expressão que atravessa inúmeros poemas negros. É a expressão para reduzir a distância de si próprio, e reconstruir a visibilidade individual e coletiva. O afro-gaúcho Oliveira Silveira, traça um paralelo entre o ontem e o amanhã, com seu poema “Sou”:

Sou a palavra cacimba
pra sede de todo mundo
e tenho assim minha alma:
água limpa e céu no fundo.
Já fui remo, fui enxada
e pedra de construção;
trilho de estrada-de-ferro,
lavoura, semente, grão.
Já fui a palavra canga,
sou hoje a palavra basta.
E vou refugando a manga
num atropelo de aspa.
Meu canto é faca de charque
voltada contra o feitor,
dizendo que minha carne
não é de nenhum senhor.
Sou o samba das escolas
em todos os carnavais.
Sou o samba da cidade
e lá dos confins rurais.
Sou quicumbi e maçambique
no compasso do tambor.
Sou um toque de batuque
em casa gege-nagô.
Sou a bombacha de santo,
sou o churrasco de Ogum.
Entre os filhos desta terra
naturalmente sou um.
Sou o trabalho e a luta,
suor e sangue de quem
nas entranhas desta terra
nutre raízes também.

Oliveira Silveira

Há um ponto final. Vou preferir as reticências... Nelas cabem o mar, o céu e o amor. E eu sei que a tudo isso insuflaste o fogo interior dos homens, seus anseios, sofrimentos, conflitos. Meu prezado Libertário, a ti as vozes negras de tantos poetas reconstruindo a dignidade dizendo sim e não, pois, com o adendo do poeta Solano Trindade:

“Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!.”

 

Newsletter

Cadastre aqui seu e-mail para receber periodicamente nossa newsletter e ficar sempre ciente das novidades.

 

Instagram

 

YouTube