Além de Um Relato, Entre-encruzilhadas de Saberes: Vivências Negras na Escrita Acadêmica
Beyond a Report, Among Crossroads of Knowledge: Black Experiences in Academic Writing
Janaina de Lima Ferreira
Doutoranda em Letras, Estudos Africanos e Afro-brasileiros, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. https://orcid.org/0000-0001-6092-7914
Resumo
A proposta deste artigo[1] é construir uma reflexão sobre os caminhos teóricos, literários e minhas próprias experiências, individuais e coletivas, compartilhadas com toda a comunidade negra diaspórica. O objetivo central é tecer um relato de experiência entrelaçando teoria, literatura e minhas memórias, enquanto reflito sobre as encruzilhadas que adentrei para fundamentar minha dissertação. Espero, assim, inspirar outros(as) pesquisadores(as) a se aventurarem pelos desafios da casa racial e a desvendarem, nos rastros ancestrais, rotas alternativas para a suplantação do trauma escravocrata ou, pelo menos, para construir mecanismos que nos permitam dialogar com ele. Essa perspectiva aspira à reconstrução de um mundo onde possamos viver em harmonia com os outros e com a Terra.
Palavras-chave: Casa racial; Suplantação do trauma; Experiência; Literatura Negra.
Abstract
The objective of this article is to build a reflection on theoretical, literary paths and my own experiences, individual and collective, shared with the entire black diasporic Community. The central objective is to weave an experience report intertwining theory, literature and my memories, while at the same time reflecting on the crossroads I entered to support my dissertation. I hope, therefore, to inspire other researchers to venture into the challenges of the racial house and to unveil, in the ancestral traces, alternative routes to overcome the trauma of slavery or, at least, to build mechanisms that allow us to dialogue with him. This perspective aspires to rebuild a world where we can live in harmony with others and the Earth.
Keywords: Racial house; Trauma Supplantation; Experience; Black Literature.
Uma breve apresentação: Entrecruzamentos Teóricos na Literatura Negra de Conceição Evaristo e Miriam Alves
O que há de estrangeiro em nós? O que há de África em nossas almas? O que há de Brasil em nosso corpo? O que significa viver entre/dentro da (ou na) Diáspora Negra transatlântica? O que há em nós que os espaços geográficos, ou melhor, geopolíticos não cartográficam? Afinal, o que temos de ausente em nossos corpos e almas? São essas perguntas que marcaram o início do meu esforço acadêmico em investigar antigas e novas maneiras de entender os conflitos inter/transculturais, escreviventes e transescritos do ser negro diaspórico na literatura.
Antes de continuar este relato, acho necessário frisar que não se trata especificamente de um estudo teórico-crítico. As reinterpretações, problematizações e aproximações teóricas mencionadas aqui estão contempladas na minha dissertação intitulada: Transescrita das Escrevivências Literárias de Conceição Evaristo e Miriam Alves: vozes negras suplantando o trauma escravocrata, defendida este ano no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do Professor Dr. Roland Walter. O intuito aqui é refletir sobre as escolhas teóricas e como elas são afetadas pelas minhas vivências enquanto mulher negra na Diáspora. Além disso, essa experiência subsidia espaços epistemológicos entreabertos, ao mesmo tempo que se abre para uma espécie de “trânsito rizomático”, utilizando as palavras de Roland Walter (2008).
O objetivo era (e ainda é) investigar, por meio da “transescrita[2]” e da “escrevivência”, de Roland Walter (2008) e Conceição Evaristo (2020), a literatura negra como ferramenta para a (re)elaboração do trauma escravocrata e como possibilidade de regressar às “Portas do Não Retorno” (Brand, 2022). A importância equivale analisar, mediante as performances vividas por essas comunidades transescritas na literatura negra, o enfrentamento às amarras neocoloniais. Outra contribuição, e a meu ver a mais significativa, trata-se de analisar como essas produções trabalham a cura do trauma escravocrata, ainda vivido, à medida que produzem a suplantação das barreiras da casa racial.
À vista desse objetivo, a escolha do corpus de análise, Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo e Maréia de Miriam Alves, justificou-se por serem narrativas que trabalham a formação das identidades negras por meio do retorno às origens ancestrais (africanas ou não). Esse retorno que julguei (e julgo) ser diferente dos estereótipos propagados pelos meios de comunicação de massa, os quais atuam na reprodução dos poderes neocoloniais. Assim, a defesa fundamenta-se em compreender a literatura negra como uma produção formada distante das generalizações universalizantes do corpo negro da Diáspora.
Dessa forma, analisei a “transescrita das escrevivências[3]” das personagens com base nas seguintes indagações: o povo negro diaspórico está preso à casa racial? As autoras, Conceição Evaristo e Miriam Alves, ao narrarem posicionam-se sobre essa casa racial? Esse retorno às memórias de um passado-presente tem relação com o que Dionne Brand descreve no livro Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento? O que (ou como) esse retorno implica na formação das identidades negras diaspóricas? Afinal, qual linguagem (ou quais linguagens) constitui a escrita literária negra? Essa escrita é marcada por uma espécie de crioulização da linguagem, conforme o pensamento crioulo de Édouard Glissant (1992)?
Para tanto, utilizei a “transescrita” de Roland Walter (2009) e a “escrevivência” de Conceição Evaristo (2020) como caminho metodológico. Escrevivência, termo cunhado para explicar o processo coletivo e vivo da literatura negra diaspórica. Ao passo que a transescrita explica a formação da literatura negra das Américas como possibilidade de cura para o trauma. Aproximei os dois conceitos através da proposta de mudança e transformação do espaço pela inscrição do corpo-terra-memória que enxergo na noção de escrevivência, interpretação que soma com as demais discussões acerca do termo.
Além do mais, escrevivência porque não pretendia (e não quero) separar inteiramente minhas experiências enquanto mulher negra na Diáspora do meu eu acadêmico. Acredito que isso contribuirá na formação/reflexão de outros caminhos epistemológicos. No entanto, ressalvo que minha pesquisa não é menos acadêmica por partir de um conflito íntimo. Ao contrário, em virtude desse conflito particular, porém comum a todos da Diáspora Negra, acredito que ela fornecerá moldes alternativos dentro de uma lógica de liberdade ou pelo menos não autoritária.
Nessa lógica, o importante foi analisar como as narrativas em tempos e modos distintos estão conectadas. Podendo assim, ser uma possibilidade de pensar a casa racial para além de uma estrutura fechada e limitada à etnicidade. Construindo caminhos e conexões de dentro de seus grilhões raciais, os quais podem dialogar e se aproximar no trabalho da (re)elaboração do trauma. Logo, minha preocupação consistiu na atividade de reformular caminhos capazes de enxergar e descrever outras formas de viver dentro (e entre) da Diáspora Negra.
Além disso, problematizei e (re)interpretei a Diáspora Negra como um espaço traduzido e um agente dessa tradução, por meio da “copresença” de Mary Pratt (2008) e da interpretação de Stuart Hall (2023). Ou seja, à medida que é traduzida pelo sujeito também o traduz. Para muitos(as) pesquisadores(as), viver na Diáspora implica possuir um lugar para retornar. Contudo, conforme Dionne Brand (2022), viver na Diáspora Negra é precisamente existir no vazio do não pertencimento. Isso deveria ser um ponto bastante discutido, que a meu ver foi deixado de lado ou sucumbido pelas representações neocoloniais. Representações projetadas e dominadas pelas grandes ferramentas da globalização e modernização. Ou seja, uma propagação de uma fetichização exótica do continente africano como lar para milhares de negros diaspóricos que nunca ouviram verdadeiramente quase nada do continente africano (Canclini, 2008).
As perguntas que permearam a discussão acerca da Diáspora negra foram: o que significa viver na diáspora negra? Ela, necessariamente, significa retorno ao lar? E o que (e como) seria esse retorno, essa volta? Essas perguntas foram discutidas em diálogo com Stuart Hall (2023), Roland Walter (2008), Avtar Brah (2005), Carole Daives (2003), Dionne Brand (2022) dentre outros. Desse modo, constatei que, ao entendermos esse retorno, estaríamos um passo à frente para o árduo trabalho da (re)elaboração do trauma. No entanto, ressalvo que esse retorno não necessariamente significará a reconexão de todos os negros da Diáspora com a arte, a dança e a cultura de África[4]. Mas sim, um retorno para um passado-presente a fim de restabelecer conexões, avaliar os destroços e nomear para renomear, construir para reconstruir.
Por essa razão, entender o retorno às origens africanas apagadas durante a escravidão, longe da lógica capitalista eurocentrada e generalizante é, na minha opinião, cada vez mais urgente e necessário. Por isso, com base em Conceição Evaristo e Miriam Alves, compreendi as narrativas construídas pelas vozes silenciadas ao longo da história como caminho que me possibilita outros olhares. Nessa lógica, a literatura negra-brasileira é um grande ponto de partida servindo como um grande museu ambulante que guarda as memórias vivas dos povos e constrói pontes ao mesmo tempo que produz rupturas. Para Miriam Alves (2010, p. 186), “os textos destas escritoras afrodescendentes revelam vários contornos de uma face-mulher ocultada, e a visibilidade dos rostos-vida é desenhada nas falas da existência”. Semelhantemente, para Conceição Evaristo (2008, p. 12), “ao reconstruir a história, sob o ponto de vista dos afro-brasileiros, o escritor busca edificar uma épica em que os heróis e os feitos estão relacionados à história do negro”.
Autoras e Obras: vozes transescritas de Conceição Evaristo à Miriam Alves em Ponciá Vicêncio e Maréia
Ao longo de algumas disciplinas que cursei durante o primeiro ano do mestrado, especificamente as disciplinas “Teorias da Colonialidade” e “Estudos Dirigidos”, ministradas pelo Professor Dr. Roland Walter, orientador da minha pesquisa e influência para meus posicionamentos e reinterpretações das teorias aqui problematizadas, escolhi com muito zelo como corpus de pesquisa duas obras que me contaminaram. Leituras dolorosas, angustiantes e tristes, mas também apaixonantes, delirantes, loucas, venenosas e sagazes. Obras que aglomeraram muitas vidas, vidas distantes e próximas, passadas e futuras, vozes que ecoaram e ecoam na formação de uma literatura negra-brasileira/americana viva.
São nas vozes e nas escritas de Conceição Evaristo[5] e Miriam Alves[6] que investiguei as redes de tensões, de afeto e de cura. Essa busca, deu-se em meio as lágrimas e nós na garganta que se formavam durante a leitura das obras: Ponciá Vicêncio e Maréia[7]. Nós, que persistem em continuar e que marcam minha escrita acadêmica. Minha pesquisa, até o momento, é um exercício mais angustiante e incômodo que travei ao longo das encruzilhadas que persisti adentrar. Pois foi necessária uma volta às lembranças que evitei por muito tempo recordar. Ouvir novamente as histórias de infância foi como se eu estivesse tornando-as reais dentro de mim, travando uma guerra com os sentimentos tristes que invadiam minha alma a cada informação extra que minha avó julgava ser necessária. Ouvir ela contar que sua “vó” foi pega no mato, uma cabocla brava feito bicho, fez brotar disfarçadas lágrimas e oceanos temerosos em mim. Essas informações ainda me causam arrepios e, às vezes, misturam-se às palavras de Ponciá e Maréia.
Conceição Evaristo tem sua escrita associada à escrevivência, termo teórico criado pela autora, capaz de subsidiar uma experiência coletiva, instrumento de resistência da memória ancestral e de identidades. Suas obras refletem uma escrevivência a partir da ficcionalização da oralidade e de vivências reais compartilhadas pelos povos negros da Diáspora. A autora defende que a ideia de “escrevivência significa contar histórias a partir das experiências particulares, mas que rementem diversas outras realidades coletivas” (Evaristo, 2009, p. 21). Em todas as obras da autora a ancestralidade, a memória, a identidade e a vivência coletiva dos povos negros diaspóricos ganham enredo de forma poética. Conceição Evaristo reafirma a afrodescendência a partir do intimismo, da violência e da ternura, revelando ao leitor um mundo distante dos fetiches e das generalizações criadas pela “supremacia branca” (hooks, 2022, p.237).
Miriam Alves destaca que “a literatura negra, numa manifestação coletiva, surge da necessidade de escritores negros e escritoras negras serem autores e sujeitos da história” (Alves, 2017, p. 291). E diante disso, essa escrita ganha corpo e forma numa perspectiva de libertação. Na voz da autora, “liberta não só eu que escrevo, mas também os leitores negros e brancos”. No entanto, para Miriam Alves, as teorias ainda não subsidiam essa produção e nem esse sujeito negro produtor enquanto possibilidade teórica de análise. É um desafio que precisa ser enfrentado e que começou a existir apenas pela coragem e enfrentamento de escritores(as) negros(as) que confrontam diariamente o sistema excludente e se refazem como “escritores, poetas, ficcionistas, ensaístas negros a partir da trajetória que percorremos” (Alves, 2017, p. 293).
Em Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo narra as escrevivências de uma família vivendo em condições análogas à escravidão. Sobretudo, narra os caminhos percorridos pela personagem protagonista, Ponciá. Silêncio e morte sempre rondaram a vida da garotinha que miniaturava o mundo no barro. Esse barro-memória desvelava os segredos e as histórias silenciadas de seu povo. E se concretiza como herança da oralidade e memória africana que enraizou nos corpos e na terra negra das Américas. Essa marca nos remonta a Nanã, um dos Orixás mais antigos. Conforme Saraceni (2002), ela possui o poder de modelar a terra em lama e dá a essência e forma precisa para a criação do ser humano. Nanã é o início, o fim e o recomeço, que guia todos os seus filhos pela passagem da vida. Verger (2002) explica que uma das origens de “Nanã Buruquê” seria em Mahi, no ex-Daomé, onde é chamado Dan.
Em Maréia, Miriam Alves interliga duas famílias e duas histórias pelas memórias da escravidão, que cruzam o tempo-espaço no entremeio do passado-presente. Uma obra fundamentada na religião de matrizes africanas. São histórias e destinos que, mesmo depois de séculos, parecem carregar em suas entranhas os grilhões coloniais. Um está pronto para matar, e o outro, pronto para sobreviver. Esses destinos, em determinado momento da narrativa, dialogam mesmo que com poucas palavras. O diálogo mestre veio do corpo, da herança devolvida à Maréia, que marcou o regresso à porta do não retorno e persistia em reformular nossa história nos sonhos de Dona Déia e de Maréia.
É essa herança de uma memória do passado incrustada no corpo negro que analisei nas duas obras. Afinal, como essas heranças ancestrais são construídas na literatura negra-brasileira? Percebe-se que, em muitas obras dessa produção, a presença do invisível e do passado está sempre à espreita por meio da ligação entre a religião de matrizes africanas e as memórias que constroem narrativas profundamente marcadas no corpo negro. Assim, pesquisei a “transescrita” na literatura negra-brasileira de Conceição Evaristo e Miriam Alves como forma de (re)elaborar o trauma escravocrata, expresso pelas (e nas) “escrevivências” do povo negro para superar essa dor ou, ao menos, compreender outras formas de se relacionar com o mundo.
A partir disso, noto que Conceição Evaristo narra o desejo de sair da condição do corpo escravo em Ponciá Vicêncio, à medida que (re)elabora o desejo de retorno ao lugar que lhe possibilitou a modelagem do barro, da vida e do amor, como uma volta para dentro de si. Alguns podem compreender esse retorno como uma característica fechada e limitada. No entanto, percebo como uma outra forma de viver diante dos grilhões neocoloniais, muitas vezes não compreendida e rotulada como atraso civilizatório. Já Miriam Alves constrói uma narrativa que, conectada ao passado e voltada para o futuro, narra os regressos necessários das personagens. É uma forma de voltar-se aos destroços da própria memória e, assim, reconstruir-se perante o que sobrou e o que pode ser reconstruído. A música, por exemplo, é um elemento presente. Maréia lê nas memórias do avô rastros que compõem novas encruzilhadas a adentrar. A autora narra uma menina-mulher quebrando os grilhões coloniais e, assim, renavegando novos e antigos mares. Corpo-alma, unidos na composição de músicas, ressignificam um passado ora triste, ora alegre, de todos os seus ancestrais. Com a performance do novo-velho imbricado no corpo e no violoncelo de Mareia, Miriam Alves reescreve parte da história e cria um futuro possível através de rastros rememorados.
De acordo com Eduardo Duarte (2020, p. 307), “essas histórias surgem desgarradas umas das outras, [...] formam, todavia, uma rede discursiva pela qual se recupera a memória de uma dor que é física e moral, individual e coletiva”. Aqui no sertão de Pernambuco, durante algumas estações do ano, assistimos os homens de nossa família partirem para o sul com o coração a transbordar de sonhos e desejos de mudar um destino cruel. Mas também assistimos, na maioria das vezes, seu regresso triste e solitário ao se deparar com um mundo distante do seu imaginário. Isso, nas palavras de Darcy Ribeiro (2015), é o sujeito negro brasileiro transladando-se.
Ponciá Vicêncio, Doroteia e Maréia rompem com as barreiras do tempo e reconstroem, em suas memórias, um passado que as possibilita transcender e compreender o presente na construção de um futuro melhor. A ancestralidade em Maréia encontra-se no mar. Desde a profecia do ‘nla ooni’ até a recriação do trauma presente nas composições, escolhas e vida de Maréia. Em Ponciá Vicêncio, a ancestralidade é firmada pelo barro e água. Além do barro, Ponciá carrega essa ancestralidade como herança no corpo. Assim como Maréia traduz as melodias do mar no violoncelo, Ponciá transforma o barro em vida.
Desse modo, Maréia e Ponciá Vicêncio, romances nascidos por entre tempos-espaços do passado-presente e do futuro, nutrem a família, o amor e o retorno ao que se pode chamar de lar na possibilidade da (re)elaboração do trauma e na ampliação das rotas e descobertas de novas encruzilhadas. Encruzilhadas no tempo e no espaço, na palavra e no som, nas águas e no barro e, mais importante, nas performances vivas da vida. Ao entrelaçar, na transescritas, as escrevivências de Maréia e de Ponciá Vicêncio, percebo (ou produzimos uma outra concepção de) um negro na e para além da escravidão. No Brasil, quando se volta às formas de colonização e escravização que os povos indígenas e africanos foram submetidos, percebe-se desde já a ideia da casa racial para a exploração com a formação dos “criatórios de gente” (Ribeiro, 2015, p. 96).
Essa “nova gente” forçadas a produzir identidades ambíguas, que as investiguei ao longo da minha pesquisa por meio das “tensões culturais” produzidas na “copresença” (Pratt, 2008; Hall, 2023). Quer dizer, é esse ser no processo de refazimento do ser-sendo, do ser-fazendo, do ser-existindo, do ser-escrevivendo, ou melhor, do ser transescrito nas escrevivências que compreendo (enxergo) na literatura negra-brasileira. Nas palavras de Ailton Krenak (2020, p. 28) “manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos”. São essas manobras perpetuadas na escrita, que constitui uma literatura negra, enraizada na terra e na memória, a qual (re)escreve novos caminhos abertos sob a benção dos nossos ancestrais cantando cantigas velhas e novas a formar novos destinos.
(Re)escrevendo Escrevivências Minhas e de Vô João: conto publicado no livro Estórias ao redor do fogo, organizado por Tânia Lima e Izabel Nascimento
Tudo que interessa à palavra
interessa ao olhar
para precisar melhor os silêncios
apreendo o desconhecer
ouço a intuição pelo cheiro
liberto os sentidos usando as cores
dialeto meu terceiro olho
deixo a dor me seguir até sair pelo tornozelo
reinvento a solidão usando a lírica
faço poema com palhetas de violoncelos
faço verso como quem brinca
ama dança voa medita
não fujo de um verso nem dormindo
(Lima, 2015, p. 35).
Um dia de chuva, angu e estórias
Da noite rasgada
os sons do mundo
sonorizam
a vinda da chuva!
Águas a combinar
lama cinzenta terra salgada
rio de dor
Estrondo de vida-morte
olhos pequenos
embriagados de beleza
uma beleza mestra
que dança canta e ri
arqueia e ginga
na água-lama
dá vida
Terra e chuva
aromatiza o angu
cozido à lenha!
Pingos cintilantes
a avivar faces tão nuas
lágrimas negras brancas
encarnando
noites-luas
O aguaceiro doce
a ressoar perdão
mistura-se à terra ressequida
formando correntes de retorno:
espelho do mundo!
(Ferreira, 2023, grifo meu).[8]
Após pensar um pouco acerca do meu próprio processo investigativo enquanto pesquisadora, das autoras e das obras (meu corpus de pesquisa), escrevo um pouco das minhas memórias, uma vez que são motivações para as escolhas que tomei ao longo das minhas escrevivências acadêmicas ou não, mas que estavam sempre postas em relação, em diálogo. Para justificar a relevância do meu relato, gostaria de pensar a partir de minhas próprias experiências enquanto pertencente a esse povo diasporizado. Por isso, a importância de iniciar perguntando “se determinados termos correspondem” a minha “[...] perspectiva, se não são somente reflexos do preconceito, repetidos automaticamente sem nenhuma preocupação crítica” (Nascimento, 2021, p. 53). Por essa razão, alicerço-me na escrevivência, concepção que me permite fazer a seguinte pergunta: por que minhas vivências são aspectos importantes a serem considerados ao longo deste trabalho? Considero relevante porque as angústias e outros sentimentos provocados pelas redes de tensões identitárias do viver na Diáspora nascem da exclusão, do silenciamento, da miscigenação etc. vividos por toda a comunidade.
Diante dessa indagação, reflito sobre o conto que reescrevi como subtópico para minha dissertação. O conto, intitulado “Memórias Escritas”, foi publicado no livro “Estórias ao redor do fogo”, organizado por Tânia Lima e Izabel Nascimento, a convite da professora Tânia Lima, membro da minha banca de qualificação. Por isso, gostaria de retomá-lo de alguma forma e refletir sobre algumas questões que foram pontos de partida para diversas problematizações que surgem ao longo deste trabalho.
Atento, neste momento, para o fato de que não apenas esse conto, mas outros foram inspirações e caminhos que me conduziram ao longo das afirmações, reinterpretações, análises, leituras e escritas. Também acredito que as estórias que ouvi de Vô João, e que agora narro, tecem encontros sensíveis e precisos entre as obras analisadas e as bases teóricas. As memórias narradas, ou melhor, transescritas, são recordações de um tempo responsável por moldar grande parte da forma que enxergo o mundo e da maneira como me relaciono com ele: pessoas, espaços, memórias, vozes entrelaçadas nas lembranças de Vô João, um bom e velho Griô, o qual rememorava um passado próximo que enfrentava ainda de forma intensa: a escravidão.
No conto, eu narro as minhas experiências marcadas pelo conflito entre as duas famílias, o qual persiste até hoje. A herança que os meus ancestrais trouxeram para o Bambá, um sertão na fronteira entre Pernambuco e Paraíba, ainda é forte. Todos aqui em casa carregam sentimentos de rancor, mágoa e traumas. Uma prova disso é como eu me refiro aos meus parentes maternos: a mãe de mãe, pai de mãe, o irmão de mãe, a irmã de mãe. É como se eu perpetuasse a barreira racial que foi estabelecida pelos colonizadores desde a época da escravidão.
Essa história começa no momento em que um parente da minha mãe se mudou da Bahia para o Bambá. Nesta área remota e sem controle do Estado, eles mantiveram a dominação sobre os negros. Então, minha mãe viveu em um contexto em que a opressão escravagista ainda era abertamente lucrativa, sem véus. E essas pessoas escravizadas são minhas ancestrais. No conto, relato a história de amor de meus pais: uma mulher branca no Brasil e um homem negro, que vivia ainda a escravidão dia após dia. Eles precisaram se casar às pressas, desafiando suas famílias. Como resultado, minha mãe perdeu contato com seus parentes, e meu pai, juntamente com sua família, teve que deixar as pequenas e pobres casas que moravam. No entanto, apesar de todo esse conflito e tensão, penso que, ao me referir aos parentes de minha mãe, percebo que ainda há uma barreira racial que não consigo superar, a qual é alimentada constantemente. Às vezes, tento mudar a maneira como me refiro a eles, mas sinto um vazio enorme ao chamá-los de tia, tio, avó e avô, e esse sentimento dura por dias.
Aqui, nos sertões pernambucanos, temos o hábito de nos referirmos às pessoas conhecidas ou até mesmo desconhecidas usando termos que indicam algum tipo de parentesco. Por exemplo, muitas vezes me pegava pedindo a bênção a Dona Judite, uma senhora que faleceu este ano e que é madrinha de um dos meus irmãos. Em todas as ocasiões em que a via, corria e pedia a bênção: “beça, tia Judite”. Pode até parecer uma ação simples e corriqueira. Afinal, quem, aqui no Brasil, não tem uma história semelhante a essa para contar? Bom, essa semelhança não é nenhuma novidade; compartilhamos memórias, costumes e crenças com toda a comunidade.
O que me intriga e deveria interessar aos leitores deste relato é o estranhamento que sinto ao imaginar proferindo as mesmas palavras que reproduzimos por hábito e costumes aos meus parentes maternos. Embora eu goste muito da madrinha do meu irmão, nunca tive um vínculo afetuoso ou uma lembrança carinhosa específica em relação a ela. Esse gesto de pedir a bênção nasceu do respeito mantido pelos mais velhos. Sentia-me na obrigação de também pedir a bênção sempre que meu irmão o fazia à sua madrinha. Como tínhamos quase a mesma idade, eu estava frequentemente perto dele. Desde pequena, eu sabia que ela não era minha tia nem minha madrinha, mas sentia vergonha de sair sem demonstrar o devido respeito que os mais velhos mereciam. Em casa, aprendemos que desobedecer às ordens ou ensinamentos resultava em punição.
Ainda, mais especificamente, esse estranhamento não se trata de nenhuma memória de violência deles diretamente comigo. Mesmo com a minha mãe, era uma violência muito camuflada que levou um tempo para que eu compreendesse. Mas também não se trata de uma reação a essas violências, porque se fosse somente isso, eu teria esse estranhamento ao chamar minha avó paterna de “vó” e a pedir a bênção, já que tenho memórias bastante vivas de minha mãe e eu sofrendo alguma violência de tempos em tempos de vó (paterna).
Acredito que esse estranhamento surge de algumas histórias que Vô João me contava e de memórias que ele compartilhou comigo. Em suas narrativas, havia a presença de brancos matando pessoas da minha cor, explorando a terra e separando mães de filhos. O chicote e o tronco eram elementos constantes, e pessoas como nós frequentemente tinham as costas dilaceradas, semelhantes à terra recém-arada. Do outro lado, segurando o chicote, estavam sempre pessoas muito parecidas com os parentes de minha mãe. Eu sentia que chamá-los de tio, tia, vó ou vô seria trair aqueles que permaneciam em minha memória, amarrados aos troncos. Seus sangues formavam poças na terra, e enquanto ouvia essas histórias, eu misturava terra e água. Esse sentimento de infância foi se dissipando à medida que eu crescia.
Durante minha pesquisa de mestrado, me peguei pensando por que ainda não os chamo por esses termos, mesmo agora que minha mãe tem um bom relacionamento com sua família. A irmã de minha mãe, antes de eu viajar para estudar, me deu uma bolsa de costas para ajudar com as bagagens. Por que ainda soa estranho chamá-la de tia? Mesmo tendo esquecido por um longo tempo, em meu corpo e em minha memória, eles ainda permanecem do outro lado segurando o chicote. Descobri isso aos 26 anos, e foi um choque. Minha respiração ficou pesada, e passei bons minutos refletindo sobre muitos dos meus comportamentos inconscientes. Vi-me acorrentada não apenas pelas correntes que prenderam os meus antepassados, mas também por correntes que eu mesma criei. As palavras de Toni Morrison (2020) ecoaram em mim: eu era tão racial quanto a casa que me criou.
Assim, o conto que escrevi mostra os conflitos que podem ser os motivos para esse estranhamento. Porém, para além disso, o conto “Memórias Escritas” traz as estórias de esperança, conforto, amor e saudade de alguém que foi o responsável por remodelar o rancor e a dor que senti desde os meus primeiros pensamentos com lógica: Vô João. Ele me contava uma história a cada dia e eu, como uma boa ouvinte, ouvia e guardava todas em minha memória mais íntima. Suas narrativas, naquela época, eram o que me confortavam e a força que precisava para construir um caminho diferente daqueles que o mundo já havia reservado antecipadamente para a minha família e para mim.
A voz calma de Vô João era a única coisa que me dava esperança diante de uma casa pequena, quase caindo de tão velha, de um esgoto a céu aberto como lembrete da nossa indignidade, da barriga vazia ao anoitecer e ao acordar, e do pão que eu recebia às vezes pela manhã, às escondidas da minha professora, uma esquina antes de chegar à escola. Foi também, concomitantemente e de forma ambígua, a voz de Vô que me fez acreditar que eu podia escrever esse outro lado da história: um lado bonito, íntimo, de conquistas, das belezas que trazíamos de uma Terra farta e preta.
O velhinho negro de barba branca me ajudou a trilhar outro caminho e escolher perante as encruzilhadas da vida. Com suas histórias, me refazia em meio ao caos e à desumanidade, confirmando que sempre há de brotar água nos lajeiros. Foram tantas as estórias que me contou que, em determinado tempo, eu me perdia nelas e delas. Também as recusei, as escrevi e rasguei como se fosse possível arrancá-las de mim. Durante minha pesquisa, explorei muitas das histórias que ele me contava sobre a terra do sertão onde ele vivia e outras histórias das terras onde ainda resido, compartilhando a vida com meus pais. Nessa tentativa de me encontrar com algumas estórias perdidas, com detalhes que a vida me fez esquecer, fui em busca de Vó, anciã do tempo, da memória e das rezas. Nem a velhice, mãe de todos nós, é capaz de arrancar a sabedoria da vida de uma boa rezadeira.
Encontrei-me com muitos detalhes que minha memória falha havia esquecido. Uns bons, outros que talvez não quisesse reviver. Nessa busca, constatei que Vô não apenas recontava estórias, ele as construía. No seu remodelar de vida, reconstruía em palavras os momentos de loucura e caos que os perseguiram a vida inteira. Nessa volta ao passado, contei a Vó uma recordação que Vô me contou. Na minha memória estava tudo confuso. Lembrava que a história era sobre águas mágicas de um poço que havia perto da minha casa, na baixa em frente. Eu e outras crianças rodeávamos esse poço durante as brincadeiras e apanhávamos muito quando uma de nossas mães nos pegava rodeando os perigos das águas paradas.
Eu acreditava que as águas do poço eram mágicas e, por muito tempo, guardei um potinho com um pouco da água. Todas as noites, fazia uma dezena de pedidos. Recordava, de forma opaca, que Vô me contou que aquelas águas eram passagem para uma vida diferente, boa e farta. Essa vida seria livre de sofrimento, dor e fome, e só aqueles que já viveram muito e experimentaram o mundo de tal forma teriam a oportunidade de atravessá-la. Caso alguém jovem ou uma criança arriscasse atravessar aquelas águas, ficaria preso e boiaria sobre elas. Ele me contou que um dia, quando sentisse que já vivera tudo o que o mundo queria que ele vivesse, atravessaria as águas para essa vida, boa e farta. E olharia por nós de lá, assim como estava fazendo há muito tempo.
Essa foi a recordação que minha memória guardou. Quando contei a Vó, esperando que ela soubesse mais história sobre aquele poço, seu rosto estava coberto de lágrimas. Eu a fiz recordar uma lembrança que ela enterrou no fundo de suas memórias: o dia em que Vô saltou no poço, buscando um fim, mas com desejo de encontrar um novo começo. Meu pai estava trabalhando a poucas braçadas de distância quando escutou o barulho que corpo e água fizeram ao se chocar: vida e morte. Correu, pulou no poço e tirou de lá o próprio pai com vida. Quando ela terminou de falar, lembrei no instante que, no dia em que Vô me contou essa história, ele estava com as botas molhadas. Estava chegando da escola e o encontrei sentado na ribanceira de terra no lado de baixo da minha casa. Joguei os cadernos no sofá, corri e me sentei ao lado dele. Tomei a bênção e percebi que suas botas estavam a pingar água. Perguntei o porquê e ele começou a história do poço das águas mágicas. Essa foi uma das memórias que desenterrei do coração de Vó. Depois disso, preferi investigar com meu pai, um homem de poucas palavras que, às vezes, se empolga entre uma memória e outra e me conta as amarguras de uma vida preta.
Pontuo essas memórias como o primeiro caminho que percorri para a construção da minha pesquisa de mestrado. Enxergar-me nas escrevivências de Conceição Evaristo e Miriam Alves, bem como reconhecer partes da vida de Vô João em suas personagens, é uma condição singular, mas também coletiva da Diáspora Negra, que orienta todo o meu trabalho. Gostaria de registrar um pequeno trecho do primeiro conto que escrevi: “Memórias Escritas”. Essa história, em grande parte, inspirou-me a me desafiar nas palavras de Toni Morrison (2020), por entre, dentro e por vias da casa racial. Quebrar os grilhões dessa casa que me direcionava (e continua a tentar me direcionar) para apenas uma rota, uma narrativa: da dor da escravidão, da dor de ser preto, do trauma escravocrata que se personifica nos nossos corpos e almas é uma das atividades mais urgentes que precisamos fazer:
Ao proferir as palavras, o homem pediu à lua que o levasse de volta à terra que pertenceu à sua família, que protegesse seu filho na Bahia e que, quando morresse, fosse dono da calada da noite. Queria ser o caminho de volta para seus irmãos pretos, quando estivessem perdidos, assim como ele estava esse tempo todo naquela terra. A lua admirou aquele homem da escuridão. Era lindo, um guerreiro da noite. Então, concedeu-lhe seus três desejos. Com vontade de conversar mais com o guerreiro, pediu ao sol que demorasse mais um pouco para vir. Assim, aquela noite se duplicou, transformando-se em duas, e o homem da escuridão passou horas conversando com a lua, contando as histórias que ouviu ainda pequeno e conhecendo todos os caminhos da noite. Desde aquele dia, a lua prometeu-lhe que concederia três desejos a toda sua geração que conseguisse chegar até ela. O guerreiro encontrou seu caminho de volta para casa e, quando morreu, transformou-se na calada da noite. Agora guia os seus pelas matas. Desvia as balas na escuridão do morro e ilumina o caminho das encruzilhadas da vida. Muitos dizem que ele mora na lua, por isso age à noite refazendo o caminho e as moradas dos nossos. Ouvi de vó que nossa família pertencia à geração do guerreiro da noite. Sua Bisavó, macumbeira, tinha a proteção do guerreiro, suas duas rezas mais poderosas foram dadas por ele. Era a reza do retorno e a reza que os protegia das balas. Um dia, quando eu crescesse, poderia pegar essas rezas e guardá-las na carteira, assim sempre encontraria o caminho de volta (Kemet) e estaria protegida dos perigos da noite. Quando parei de olhar a lua e desviei meu olhar para vô, vi o seu rosto coberto de lágrimas. Naquele momento, decidi que construiria uma escada com ele e faria os meus três pedidos. Nesse dia, ele me deu um lápis de pedreiro que tenho até hoje. Não conseguimos fazer a escada. Ele partiu bem depois desse dia e dessa história. Continuo aqui a insistir nas memórias que partilhou comigo e no amor que me ensinou (Ferreira, 2023, p. 148-149).
Partindo da minha história, dos meus conflitos identitários, do meu mundo dividido em preto e branco, investiguei rotas, caminhos e outras possibilidades de enfrentamento à casa racial que nos persegue. Essa casa, que resulta em traumas e perdas, medos e descrenças, solidão e temores que assombram a vida dupla, tripla, as múltiplas vidas negras diaspóricas. Busquei entre os nossos e em diálogo com os outros, a possibilidade de cura, uma cura escrita, transescrita, uma cura escrevivente na pele, no corpo, na alma e, por fim, no papel. Escritas que possibilitam a luta e a construção de outros caminhos, escritas que aglomeraram dentro de cada negro(a) diaspórico(a). Recordações íntimas que vejo espelhadas nas escrevivências das personagens das obras Maréia e Ponciá Vicêncio, a figura do griô é um exemplo. Essas vozes sábias podem reescrever nossas histórias, rompendo com o silenciamento imposto durante séculos. Além disso, elas refazem caminhos, aprendem a escolher perante as encruzilhadas e nos ensinam a nos encontrar no nosso e no outro rosto, um refletido no outro, um reconhecendo o outro à medida que se reconhece a si próprio.
Movimento Circular: Algumas Considerações
Finalizo este artigo, com uma reflexão a uma fala do teórico, quilombola, ativista, poeta Nêgo Bispo[9] (2020, p. 3): “falo tagarelando, escrevo mal ortografado, canto desafinando, danço descompassado, so sei pintar borrando. Esse é o meu jeito. Não me mandem fazer direito. Eu não sou colonizado”. Evoco as palavras dele para destacar a preocupação compartilhada por muitos(as) pesquisadores(as) negros(as). Essa angústia, que ressurge como um vestígio da colonização moderna, que impõe normas às produções acadêmicas centradas em sua própria visão científica. No entanto, reconheço a necessidade de subverter esse sistema para ampliar o acesso àqueles historicamente excluídos. Entendo a relevância de nos apropriarmos dessas normas para que seja possível reestabelecer conexões de encontro e diálogo. Dessa forma, seremos capazes de fornecer meios que facilitem o estudo das diversas camadas e interação sob distintas perspectivas e experiências. Destaco que a responsabilidade de criar essas ferramentas e produções não é exclusivamente nossa, mas de todos que já participam desse espaço.
Ainda, aludindo à citação de Nêgo Bispo, entendo que minha escrita carrega meu corpo, minha memória, meus movimentos desajeitados e o ‘linguajar’ que aprendi com meu avô, mãe, pai e comunidade. Ela traz vestígios das linguagens africanas, como Lélia Gonzalez aponta, incorporações de um “pretuguês”. Mesmo que eu tentasse, não poderia apagar essas marcas: os plurais mal falados, os “r” trocados e, às vezes, a separação ‘incorreta’ de sujeito e predicado. Esses moldes e expressões constituem meu modo de existir. São elementos que não posso (e não quero) apagar, pois surgem inconscientemente para me recordar de minhas origens. Essas formas e expressões não me incomodam, pois são parte das muitas identidades que me reinventam. Com isso, o intuito principal deste artigo foi desconstruir as rotas, caminhos, perspectivas, ideias, moldes e visões que são centralizados numa lógica única do pensamento dominante, universal e branco-europeu. E por isso, finalizo esta experiência refletindo sobre uma fala do Nêgo Bispo, escritor negro quilombola, ativista, um escritor da vida em convergência com o espírito da natureza.
Referências
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[1] Este artigo é fruto da introdução e do primeiro capítulo da minha pesquisa de mestrado, fomentada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que desenvolvi no programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do Prof. Dr. Roland Walter. Sou grata por tê-lo como meu mentor e professor, e agora, alguém a quem tenho grande carinho. Sua escrita me instigou a desafiar-me por novas rotas na literatura negra americana.
[2] Para compreender o significado da concepção “transescritas”, recomendo o trabalho do autor e pesquisador do conceito, o Professor Dr. Roland Walter. Em particular, destaco o livro Afro-América: diálogos literários na Diáspora negra das Américas, escrito por ele, além de vários artigos publicados ao longo de suas pesquisas acadêmicas.
[3] Ainda, para compreender teoricamente a relação ‘transescrita das escrevivências’, que pesquisei durante o mestrado, indico a leitura do artigo fruto do segundo capítulo da minha dissertação, intitulado: Transescrita das Escrevivências Literárias de Conceição Evaristo e Miriam Alves. Também sugiro a leitura da minha dissertação realizada sob a orientação do Prof. Dr. Roland Walter, PPGL-UFPE, intitulada: Transescrita das Escrevivências Literárias de Conceição Evaristo e Miriam Alves: vozes negras suplantando o trauma escravocrata.
[4] Em vários momentos, faço uso da expressão ‘África’ para me referir à experiência do Atlântico Negro. No entanto, ressalto que esse uso não pretende resumir o continente africano como um único país, lugar ou território. Pelo contrário, a intenção é aludir ao emaranhado de experiências, culturas, línguas, costumes, cosmologias e cosmogonias que foram destruídas durante séculos de escravização da terra e do corpo negro africano.
[5] Conceição Evaristo, romancista, poeta e pesquisadora, assume uma posição crítica frente a diversos problemas sociais que marcam toda a população negra do Brasil. Em uma participação no I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em Belo Horizonte (MG) no ano de 2009, a autora afirma: “Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei. Aproveitei a imagem de uma velha Rita que eu havia conhecido um dia. E ainda desses mesmos becos, posso ter tirado de lá Ana Davenga” (Evaristo, 2009, p. 16).
[6] Miriam Alves trabalha em sua escrita a memória esquecida de seus antepassados. Por um olhar crítico e preocupado, pensa a literatura afro-brasileira como uma produção ainda em construção. Em uma entrevista, concebida a Graziele Frederico, Lúcia Mollo e Paula Dutra (2017, p. 290), Miriam Alves declara: “escrevo porque não dá para não escrever. É algo que está em mim”.
[7] Mareia é o nome da personagem protagonista e o título da obra. Para diferenciar os dois usos, escrevo o nome da personagem sem itálico e o título da obra com itálico.
[8] Escrevi esses versos como se evocasse um lugar de memória, um lugar que parecia aglomerar a tristeza negra do mundo, mas que agora se torna um lugar a amalgamar as raízes de dor em rizomas de memórias. O fixo e o movediço a reconstruir lembranças minhas de dor ao amor, do ódio ao perdão, da saudade à reinvenção da vida-escrita. Um lugar que se refaz nos meus locais de memória.
[9] Utilizo o nome Nêgo Bispo, pois é a forma pela qual Antônio Bispo dos Santos é popularmente conhecido. Faço esse uso por acreditar que esse é o modo pelo qual consigo expressar todo o seu trabalho e esforço em adentrar espaços hegemônicos nos moldes de uma contracolonização.