Abdias Nascimento

Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo

Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo é uma peça de teatro, cujo cenário é um bosque no alto do morro, onde são realizados rituais afro-brasileiros. O recorte de tempo se passa numa noite em que Emanuel, um negro, assassina sua mulher, que era branca. Atormentado pela ideia de ser encontrado pela polícia, ele foge para o morro e, sem desconfiar, é atraído para o local onde seu destino seria cumprido por intervenção de divindades do culto. A cena retirada é o ápice da peça; quando o trabalho é realizado e Emanuel se dá conta da realidade que criara para si a partir dos moldes de civilização do branco:

EMANUEL

São eles. Vêm subindo. Me levaram as duas: a esposa e a mulher amada. Me roubaram tudo. Melhor. Muito melhor assim. (gritos de triunfo, intercalados com riso alto até o momento em que entra no pegi) Agora me libertei. Para sempre. Sou negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês. Levem também esses molambos civilizados, brancos. (enquanto fala, tira a camisa, as calças, fica só de tanga. Vai atirando tudo pela ribanceira abaixo). Tomem seus troços! Com estas e outras malícias vocês abaixam a cabeça dos negros... Esmagam o orgulho deles. Lincham os coitados por dentro. E eles ficam domésticos... castrados... bonzinhos... de alma branca... Comigo se enganaram. Nada de mordaça na minha boca. Imitando vocês que nem macacos amestrados. Até hoje fingi que respeitava vocês... que acreditava em vocês. Margarida muito convencida que eu estava fascinado pela brancura dela! Uma honra para mim ser chifrado por uma loura. Branca azeda idiota. Tanta presunção e nem percebia que eu simulava... procedia como pessoa educada, ouviu? Como mulher você nunca significou nada para mim. Olha: que, tinha nojo era eu. Aquelas coxas amarelecidas que nem círio de velório me reviravam o estômago. Seu cheiro? Horrível! O pior: teus seios mortos de carne de peixe. E o nosso filho... lembra-se? Outro equívoco... novo engano de sua parte. Você o matou para se desforrar da minha cor, não foi? Mas ele era também seu sangue. Isto você deixou de levar em conta. Que eu não poderia amar uma criatura que tinha a marca de tudo aquilo que me humilhou... me renegou. Desejei um filho de face bem negra. Escuridão de noite profunda... olhos parecendo um universo sem estrelas... Cabelos duros, indomáveis... Pernas talhadas em bronze... punhos de aço... para esmagar a hipocrisia do mundo branco...


FILHA I

Aniquilar os falsos sonhos da brancura.

EMANUEL 

Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo

FILHA II 

Erradicar o ódio do mundo branco

EMANUEL 

Está ouvindo, Deus do céu?

FILHA III 

Obliterar o poder destrutivo do mundo branco.

EMANUEL

Eu quero que todos ouçam!

FILHA II

Apagar o ódio do mundo branco!

EMANUEL 

Venham todos, venham!

FILHA I 

Da terra. 

FILHA II  

Do céu. 

FILHA III

Do inferno.

(In: Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo, p. 121-123)

 


LIVROS E LIVROS

Ficção

Cidinha da Silva-A tradição e o rastro em Exuzilhar
Exuzilhar é a mais recente coletânea de crônicas publicada por Cidinha da Silva. São 39 crônicas curtas, mas de uma intensidade rara. Aliás, a capacidade de síntese e profundidade não é novidade nos textos da autora mineira. A escrita potente e densa acompanha Cidinha desde as primeiras publicações, não foi à toa que Um Exu em Nova York (2018) foi coroado pela Biblioteca Nacional. A cronista e a historiadora se fundem entre os curtos textos que dialogam com a religiosidade africana, como um rizoma que se entrelaça a...

Poesia

Ana Rita Santiago, Claudia Santos, Mel Adún (Org.) Quilombellas amefricanas, vol. 2
nada acalmanada alma,nada.calma.não há reza que cesse essa aflição.Não há há? Mel Adún 2021   O segundo volume da coletânea Quilombellas amefricanas abre-se, como o primeiro, com epígrafes de bell hooks e Lélia Gonzalez e retoma o texto “as organizadoras”, de autoria de Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún, com nomes e sobrenomes escritos com inicial minúscula1 como também se faz no volume 1. Também se mantém, neste volume, o texto “apresentação”, de autoria de Silvia Regina de Lima Silva e Iya Bunmy. São, no entanto, ...

Ensaio

Maria Nazareth Soares Fonseca-Apresentação
Os textos que compõem o livro Olhares sobre a literatura afro-brasileira, de Florentina Sousa, apresentam diferentes percepções de questões específicas da literatura produzida por escritores e escritoras que assumem pontos de vista identificados com a afrodescendência. O título dado ao livro deixa evidente que a autora quer lançar, sobre o material cultural e literário que investiga, olhares capazes de apreender os traçados da escrita literária e da abordagem critica produzida por afrodescendentes. Com esse propósito, o livro ressalta a obra l...

Infantojuvenil

Jorge Dikamba - Amaní
Mais de trezentos anos de escravidão marcam a história de um país. E isso se reflete na maneira como nós, da outra extremidade do Atlântico, enxergamos a África. Em geral, a vislumbramos a partir do exotismo, fruto de nosso desconhecimento e das imagens estereotipadas difundidas no Ocidente. Mesmo nas escolas, o continente africano só passa a “existir” após a chegada dos europeus. De certa forma, é outra a África representada em Amani. Historiador e pesquisador da cultur...

Memória

Lázaro Ramos - Na minha pele Reflexões de um jovem escritor sobre as relações raciais no Brasil Glauciane Santos*   O ator e dramaturgo baiano Lázaro Ramos nos últimos anos têm experimentado as múltiplas possibilidades da escrita literária: publicou os livros infantis A velha sentada (2010), Cadernos de Rimas do João (2015) e agora o livro de memórias e reflexões intitulado Na Minha Pele (2017). Sua mais nova obra não é propriamente uma autobiografia, ainda que ressoe para alguns como traços íntimos de sua vivência. A temática pungente da narrativa são as relações raciais no Brasil, especificamente o olhar crítico do p...

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