Um coral de vozes amefricanas

 

Maria Nazareth Soares Fonseca*

 

nada acalma
nada alma,
nada.
calma.
não há reza que cesse essa aflição.
Não há
 há?
Mel Adún
2021

 

O segundo volume da coletânea Quilombellas amefricanas abre-se, como o primeiro, com epígrafes de bell hooks e Lélia Gonzalez e retoma o texto “as organizadoras”, de autoria de Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún, com nomes e sobrenomes escritos com inicial minúscula1 como também se faz no volume 1. Também se mantém, neste volume, o texto “apresentação”, de autoria de Silvia Regina de Lima Silva e Iya Bunmy.

São, no entanto, diferentes os textos que funcionam como uma espécie de prefácio para cada volume. No volume I, Sara Laisse evoca, no título “as quilombellas nunca mais “lavarão os pratos”, isso está escrito!”, a inspiração dada pelo poema “Não vou mais lavar os pratos”, de Cristiane Sobral, para aludir aos indicadores de resistência que perpassam a maioria dos poemas. Essa estratégia também se mostra no texto “convocação!”(p. 19–21), de Mariana Andrade, no volume 2, no qual são diagnosticados sintomas de rebeldias, insurreições e de processos de conscientização, bem como de expressões de amor e sonhos que perpassam os poemas das quilombellas amefricanas conclamadas

No volume 2, a presença de poetisas estrangeiras é bem mais significativa que no volume 1. Dentre as onze vozes femininas presentes, sete são estrangeiras. As brasileiras Luedji Luna, Luz Ribeiro, Mel Adún e Rita Santana trazem em suas criações experiências e sentimentos perscrutados em marcas deixadas pela ausência de afeto, sinteticamente demonstrada no realista poema “romance” (p. 46), de autoria de Luedji Luna. Declarações de amor, expressões de desejos e encantamentos compõem alguns dos poemas das poetisas brasileiras que registram a convivência com a solidão e com amores não compartilhados, como se encena no poema “sobre a moça mais bonita da cidade” (p. 64-65), de Luz Ribeiro. A constatação da pouca valia do corpo de negras e negros induz a poetisa Mel Adún a destacar o “padecimento bordado com arame farpado/ no corpo da mulher negra” (p. 90) que sabe do destino cruel de seus filhos e dos filhos de outras mulheres negras sobre os quais paira a certeza de que “a vida negra não vale nada”, como diz verso da última estrofe do poema “há?“ (p. 90-91). Memórias sufocadas afloram no longo poema “carta do engenho de Santana” (p. 116 – 123), de Rita Santana, em que o eu-poético afirma sua condição de mulher e, ao erguer o seu “olhar de Poeta / sobre os homens, as gentes e os cárceres” (p. 117), escava memórias e histórias revisitadas por um eu feminino que, “nas plantações e moendas”, disseminou o “cultivo de rebeldias” e insurreições, como anunciam versos do longo poema.

Que motivações poéticas se anunciam nos poemas das mulheres-poetisas estrangeiras presentes no volume?

Goretti Pina, nascida em São Tomé e Príncipe e residente em Portugal, em alguns de seus poemas, explora elementos da paisagem das ilhas do africano país-arquipélago para cantar o amor que se revigora com “o sal, a rocha e a espuma” de corpos enamorados descritos em poema da p. 24. Em outros, as ilhas são evocadas como cenário de afetos, carícias e saudades. “Marta Quiñónez, da Colômbia, traz nos versos do poema indicado pelo número 1 (p. 70 -72) traços que bordejam as muitas histórias de filhas geradas pelo “maldito sêmen / que fecundou a memória esquecida / do óvulo” materno. (p. 71). Em outros poemas, Marta Quiñónez se apropria de referências identitárias que remetem aos “beduínos do deserto” e ao vulcão de Karthala, situado no arquipélago de Comores, no Oceano Índico, referido no último verso do poema “13” (p. 80). A moçambicana Mel Matsinhe compõe os poemas “tiku langa” (p. 96) e “contradições” (p. 97) com palavras da língua changana de Moçambique. A esperança de ver o seu país, a Guiné-Bissau, “soerguer-se / correr contra o vento” (p. 105) estende-se pelos versos do poema “chão de papel”, de Odete Costa Semedo, da Guiné-Bissau. A experimentação de um amor proibido revolve as memórias literárias e históricas e conclama o poema “Namoro”, do angolano Viriato da Cruz, referido em versos do poema “liberdade?” (p 112) que, sutilmente, indica as turbulências políticas de que foi vítima o famoso poeta e militante angolano.

Sapphire, nome artístico da escritora norte-americana Ramona Lofton, autora do romance Pusch, traduzido no Brasil por Preciosa, em 2010 denuncia a violência contra a mulher, expondo suas artimanhas no poema “conto de fadas 1 (ou chapeuzinho vermelho revisitado)”, (p. 126 – 127), sobretudo ao indicar abusos e explorações do corpo de meninas e mulheres. O questionamento dessa violência está indicado pelas várias indagações que o eu-poético faz à ficcional personagem para adverti-la de que “a vida que você leva será aquela que/ você trincha” (p. 126). Em poemas como “deixe as luzes acesas” (p. 129), “califórnia” (p. 130) e “crentes” (p. 132-133), o cotidiano de mulheres afro-americanas é apresentado em cenas delineadas por palavras que remetem a “um ato, um gesto de coragem” (p. 129) e, poeticamente, registram os desejos da carne, mas também a dor que motiva “cantar de algum jeito como Billie/ Holliday (p. 135).

Os poemas escolhidos da obra de Shirley Campbell, da Costa Rita, voltam-se a temas relacionados às guerras que não terminam e recrudescem em seu país, como se mostra no poema “lamento” (p. 146 – 148). Motivos relacionados a preconceitos e interdições surgem no poema “quis” (p. 149). No poema “o cabelo de illari”, são poeticamente trançados aprendizados que passam por diferentes gerações de mulheres, por “ritos e lendas / sincretismos e avós” que cuidam de cabelos crespos, fazendo-os dançar como obras de arte. Os versos do poema tecem ensinamentos sobre a tradição de mulheres que trançam/adornam o cabelo crespo e anunciam as “boas-novas / pra todas as meninas/ que / carregam esse cabelo extraordinário, como registram os versos do poema.

A antologia se fecha com os poemas da cantora, poetisa e compositora moçambicana, Tânia Tomé. Celebrações de afetos escorem pela escrita de quem diz “Eu sei-me Moçambique” (p. 161), porque nas palavras de sua escrita apaixonada pulsam os sons dos tambores, a musicalidade das timbilas, o justo passo “no xigubo terrestre dos pés descalços”, identificados no poema “meu Moçambique” (p. 161) como um canto de amor ao país evocado por lembranças da “paisagem / macua da infância”, como se anuncia no poema “humus” (p. 159).

O coral de vozes conclamadas de lugares próximos e distantes reitera a proposta das organizadoras de “dar de ler a quem tem fome de saber” (p. 11). Os poemas coletados percorrem os vastos campos da poesia de autoria negra feminina oriunda de diferentes países para integrar o quilombo de palavras e as várias motivações que elas tecem. Lançando mão de interessantes estratégias, a antologia apresenta textos poéticos que instigam as leitoras, os leitores a percorrer os caminhos trilhados neste volume que abriga poemas de quilombellas amefricanas e suas poéticas dicções. Todas as autoras sabem, de forma magistral, transformar a palavra poética em instrumento de uma rebelião que explode em sensualidade, sexualidade, paixão, desejo, sem deixar de sacudir os muros da intolerância e do preconceito.

Belo Horizonte, agosto de 2021

Nota
¹ Nos volumes da coletânea, os títulos de textos e de poemas, assim como o nome das autoras, são escritos com inicial minúscula. Neste texto, só estão grafados com inicial minúscula os títulos dos textos introdutórios e os dos poemas

Referência

ADÚN, Mel, SANTIAGO, Ana Rita, SANTOS, Claudia (Org.). Quilombellas, vol. 2. Salvador: Ogum’s Toques Editora, 2021.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada da UFMG e Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo de Estéticas Diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

 

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