Abdias Nascimento

Mãe

(Em memória de minha mãe Josina
Georgina Ferreira do Nascimento)

Quero navegar Franca tuas Campinas
onde ao roçar teu capim mimoso
as siriemas de alongadas pernas
me devolvem aos ouvidos
cansados de tanto ouvir
o eco do seu canto metálico
martelando espasmódico teus
horizontes de fugitivas miragens

Navego teus cafezais
(outros navegaram canaviais)
à fresca lima transparente
refresco a febre ressecante
da minha ânsia adolescente

Não navego ainda
(conforme deveria)
as águas primordiais de Olokum
pois
temerário navegador das águas secas
remando vou a terra roxa
da qual o joão-de-barro
incessante
constrói sua morada

Nado braçadas de léguas
léguas dos teus cafezais
que infinitam em verde
este escuro olhar
gerado ao tempero cheiroso do marmelo
ao caldo suculento do mocotó
à pasta fervente da goiaba
escarificando nos
reluzentes braços de minha mãe
buquês de queimaduras e cicatrizes

Navego o sangue de tua terra
arroxeada ao sangue pisado
no plantio das árvores
na colheita rubro-negra do
"melhor café do mundo"

Mergulhador do sangue nasci
de nascença sei que pouco importa
ao sangue a
peripécia sofrida
quando o próprio sangue
o teu mãe
nos ensina ao coração
que desfalece e renasce
de tua bondade humana
de teu amor valente
jamais enfraquecido
na queixa ou na lágrima

Navego teu leite
perfume da flor de laranjeira
mergulho teu seio materno
que me devolve à boca
o leite primal de Isis
irmãe
amantesposa
Isis que me pariu
em seus negros seios
leite negro me nutriu

Navegador do sangue
navegador do leite
sei dos que vieram
e se foram antes de mim
pois no sangue deles flutuo

Navego a santificação
do seu martírio de escravos
celebro seus quilombos levantados
suas Áfricas
enfurecidas em minhas veias
plenas de eguns antepassados

Navegador de auroras e desastres
um sabiá canta no meu sangue
esta gota rubra trazida pela manhã
ao gotejar dos meus crispados olhos

O bisturi da madrugada
revolve as feridas enquanto
o sonho mal sonhado
intensifica a pulsação dorida
deste navegar de morte e vida
protoplasma do meu leite
                  do meu sangue
viagem sem volta
                  só de ida

Piloto das tempestades
com Efrain e Gerardo
navego o absurdo
as piranhas da peripécia
neste navegar aos pegos e pagos
a caminho em Villaguay descerei
no sorriso angélico
del hombre verde
uma ardente orquídea plantarei
em Ipueiras um presente
do africano Apolo
(disfarçado em grego)
entregarei
bacamarte chapéu de couro
alpercata de rastreador ao
poeta do rastro dos Mourões
tripulantes da irmandade
Raul Bó Godo Napoleão
no rastro da liberdade
desde o prata ao solimões
navegamos a maldição
deste navegar de solidões

Mergulho a doçura da mãe
adoçada no amargo doce
ígneo algoz queimador da
beleza dos teus braços

Braços vigorosos nos quais
navego teus abraços
nesses braços que são teus
traço a ternura dos lábios meus
à flor borbulhante do sangue
que chamusca tua pele escura
no tacho da tua existência
tão curta de alegria
tão sofrida de vivência
raiz fincada na terra
ao infinito de tua compaixão
unicamente partilhada
à graça pura da doação

Navego os que virão
e nem semente ainda são
no espelho refletida
esta rubra gota tua
me vejo e me reconheço
membro da raça daqueles
esculpidos de rochas e troncos
de cujo vinho junto a
Ogum nos embebedaremos e
à direita e à esquerda
à frente e atrás
deceparemos cabeças
neste atlântico sanguinolento
aos gemidos do sangue maldito
navegaremos
do mar de orelhas cortadas
ao mar do sangue vindicado
navegando nossas armas da liberdade

Navego o pus e o luto
que rutilam a gota do teu sangue
profanado
jorrando em mim
séculos de gritos
milénios de ritos 

Esta terra roxa
terra francana
principio da navegação
não te enterrou
mãe
não foi tua amarração
esta terra se alimentou
                  do teu suor
                  dos teus ossos
                  da tua carne
golpeada pela necessidade
mas
a verdade de ti mesma escapou
da cova aberta neste chão 

Soluçando meu pranto
navego minha alegria
na gota infinita da tua presença
nutrindo os bagos vermelhos da romã
infundindo delicadeza ao ramo da avenca
afinando o gorgeio dos pássaros

Navego tua gota em mim
espessa gota nos
bagos do meu pai José
não o carpinteiro
mas o sapateiro
José Ferreira do Nascimento
em tua gota navegante
nos bagos de José
vieram o Benedito e o Rubens
também chamado coronel Café
o José Filho alcunhado Dedé
depois o Oliveira metalúrgico
António o doador de coragem e alegria
iluminado dos Orixás 

e da materna valentia
perdido vim eu
o navegador sem bússola
da mesma gota tua
fertilizante dos óvulos
da maninha Ismênia
frágil mãe adolescendo
nos doces olhos contritos
protegendo a criança
fundida a seu corpo
num corpo único
sem costura nem conflito
lentamente submergindo
a juventude dos seus gritos
no inocente silêncio
da correnteza dos aflitos

Gotejando vermelha gota
arroxeando a terra dos espaços
arrochando os espaços do tempo
do Egito antigo a Oshogbo a Franca
tua é a gota miraculosa
a gotejar as águas prístinas
dos mares e oceanos de Olokum
nestas águas escuras
todos nós
à proteção dos girassóis de Xangô
os que vieram ontem
os de hoje
os que virão amanhã
enia dudu de sangue imperecível
nadaremos nosso mar de sangue
mergulharemos nosso oceano de leite
varando os cabos de tormentas
náufragos do sonho
bêbedos da esperança
bebedores do sangue e
das águas da
liberdade
na fonte do
teu ventre
                          mãe

                                     Búfalo, 1977

(In: Axés do sangue e da esperança, p. 16-23)

 


LIVROS E LIVROS

Ficção

Cristiane Sobral-Caixa Preta literária
Em palestra proferida na Universidade de Belgrano, Argentina, em 24 de maio de 1978, o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) sublinhou sua admiração pelo universo dos livros: Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura. Outra forma de felicidade – menor – é a criação poética, ou que chamamos de criação, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson coincide com Montaigne quanto ao fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem que ser uma forma de felicidade...

Poesia

Marcos Fabrício Lopes da Silva - Aberto pra gente brincar de balanço
Ler a poesia e a prosa poética de Marcos Fabrício Lopes da Silva é sempre um prazer e foi um privilégio receber o convite do autor para discorrer estas breves linhas sobre o seu novo livro, Aberto pra gente brincar de balanço, cujas letras e textualidades nos levam para lugares, sensações e reflexões bem distintas. Os versos de Marcos Fabrício são cheios de encantamentos de ordem diversa, uma letra rápida, “improvisada” – no melhor sentido da palavra – fazendo a sua textualidade flertar com as linguagens do rap e do slam, no...

Ensaio

Cidinha da Silva - Canções de amor e dengo
“ Traz de volta as asas” é o verso que encerra “Thelêmica”, um dos poemas de amor e de dengo de Cidinha da Silva. Aliás, penso mesmo que o par que ilustra o título seja bem conseguido: são a síntese do resgate do afeto, cada vez mais raro na poesia brasileira mais contemporânea. Poderia ainda me referir nesse prefácio de que há neste conjunto de poemas um certo aceno para a lírica amorosa, esta, sim, completamente démodé em tempos como os nossos. Atenta que é, Cidinha, como tantas outras pessoas que sente...

Infantojuvenil

Elio Ferreira - A rolinha e a raposa
A rolinha e a raposa, de autoria de Elio Ferreira, com belíssima ilustração de Antonio Amaral, livro muito bem elaborado, com um projeto gráfico bem cuidado e perfeita sintonia entre o verbal e o não verbal, é uma obra que tem como destinatário preferencial o leitor criança.   Trata-se, portanto, de literatura infantil com interface na cultura popular ou folclore.   Na realidade, é um reconto, como o próprio autor informa em texto de abertura do livro que diz assim: “A rolinha  e a raposa é uma entre muitas histór...

Memória

Aline A. Arruda, Iara C. S. Barroca, Luana Tolentino, Maria I. Marreco (Org.) - Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de JesusCarolina Maria de Jesus na Academia   Constância Lima Duarte*       15 DE JULHO DE 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice.Eu pretendia comprarum par de sapatos para ela.Mas o custodos gêneros alimentíciosnos impedea realização de nossos desejos.Atualmente somos escravosdo custo de vida.Eu achei um par de sapatosno lixo,lavei, e remendeipara ela calçar.  Eu não tinha um tostãopara comprar pão.Então eu lavei 3 litrose troquei com o Arnaldo.Ele ficou com os litrose deu-me pão.Fui receber o dinheiro do papel.Recebi 65 cruzeiros.Comprei 20 de carne,1 quilo de toucinhoe 1 quilo de açúcare s...

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