Por uma história do homem negro -

Beatriz Nascimento

 

Lara Carvalho Cipriano*

  

Por uma história do homem negro” abre a coletânea de textos de Beatriz Nascimento, organizada por Alex Ratts, em seu livro Uma história feita por mãos negras (2021).

A coletânea é iniciada pelos questionamentos de Nascimento sobre os limites da História. Suas questões perpassam a inadequação desse campo do conhecimento aos parâmetros cientificistas, além de apresentar a constatação de que o tempo talvez não possa ser historicamente reduzido (p.38), “como se a história pudesse ser limitada no tempo espetacular, no tempo representado, e não o contrário: o tempo é que está dentro da história” (p.44).

A questão principal do seu texto, no entanto, diz respeito à abordagem fragmentada da história da população negra no Brasil, uma vez que o enfoque se dirige, principalmente, aos aspectos etnográficos, econômicos, sociais e religiosos, negligenciando a questão racial. Diante desse contexto, a autora sinaliza que se o enfoque racial não é devidamente considerado, então a discussão sobre a população negra se confunde com a discussão sobre classe social. Nesse caso, as pessoas pretas são confundidas com as brancas pobres, as nordestinas pobres, as indígenas e até com as judias. Sobre isso, Beatriz esclarece: “Historicamente, creio não haver nenhuma semelhança entre os dois povos [afrobrasileiros e judeus] (...) o judeu no Brasil é um branco” (p.39).

Nesse viés, a autora faz vacilar as bases da construção do saber científico sobre as pessoas negras, contestando a maneira com que elas são tomadas como objeto de estudo. Assim, Beatriz Nascimento mostra que, por um lado, a partir de um tom pejorativo, o povo negro é estudado como se fosse “primitivo” (p.39). Por outro lado, por meio de um tom aparentemente elogioso, mas, na verdade, generalizador, a população negra é tomada como “a expressão artística da sociedade brasileira” (p.39).

Nesse ponto, a crítica de Beatriz Nascimento é muito original, uma vez que ela mostra que essa perspectiva presumivelmente elogiosa não é necessariamente benevolente e nem menos taxativa que a outra. Sobre isso, a autora afirma que

ultimamente tem havido por parte dos intelectuais e artistas (...) uma nova mistificação, baseada em teoria contrária, mas que demonstra um preconceito racial ainda mais perigoso. (...) Os artistas e intelectuais e outros brancos, diante da crise do pensamento e da própria cultura do Ocidente, voltam-se para nós como se pudéssemos mais uma vez aguentar as suas frustrações históricas. É possível que agora, no terreno das ideias e das artes, continuemos a ser “os pés e as mãos” da sociedade ocidental? (p.42).

Com isso, Beatriz Nascimento questiona o racismo existente no ato dos brancos recorrerem às pessoas pretas e à cultura afro como se fossem a solução para uma crise, ignorando a independência dessas pessoas e tentando mobilizar a sua cultura a serviço de uma demanda branca. Primeiramente, isso foi feito a partir da escravização, sem a qual a Europa não teria enriquecido e a estrutura econômica das suas colônias jamais teria existido. Recentemente, essa objetificação adquiriu novas roupagens, visto que os brancos continuam voltando-se aos negros como se eles fossem uma solução para os seus problemas, mas dessa vez isso também é feito a partir do âmbito estético e cultural, não só econômico. Dada a aparente sofisticação intelectual dessa nova forma de objetificação, a autora destaca o caráter pernicioso do preconceito racial revestido de certa tolerância e intelectualismo (p.40), sinalizando que a África não pode ser considerada a salvação para as sociedades ocidentais de novo.

Caminhando para o final, no texto de abertura da coletânea, Beatriz Nascimento nos convida a pensar em uma representação das pessoas pretas que esteja além do “folclore”, dos cultos afro-brasileiros, do futebol, do samba e da culinária, afirmando que a história dos negros ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita (p.45). Discretamente, a autora mobiliza a psicanálise para convocar a libertação de todo o recalque de uma história ainda não escrita (p.44). Por fim, a autora conclui o seu texto com muita afetividade, citando o seu companheiro e fazendo referência a sua ancestralidade: “como me disse a pessoa que mais amo, um negro, meu marido, as coisas que reflito neste momento já existiam no ventre da minha mãe, num quilombo qualquer no Nordeste, na África (...).” (p.46).

 

Referência

NASCIMENTO, Beatriz. “Por uma história do homem negro”. In RATTS, Alex (Org). Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

 

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* Lara Carvalho Cipriano é mestranda em Filosofia na UFMG, onde também graduou-se em Filosofia. Na linha de estética, pesquisa os diálogos possíveis entre o filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser e os estudos decoloniais. Além disso, é graduanda em Psicologia na PUC-MG e integrante do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da alteridade e do literafro – Portal da literatura Afro-brasileira.

 

 

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