Quase dois irmãos: diferenças não sutis ou a memória da violência vai ao cinema.

Adélcio de Sousa Cruz

So it is that after the poisoned gift of independence,
radical African writers like Ousmane, or like ‘Ngugi in
Kenya, find themselves back in the dilemma of Lu Xun,
bearing a passion for change and social regeneration
which has not found yet its agents.

Frederic Jameson

O argumento central do roteiro de Quase dois irmãos é extremamente simples e direto: a ditadura militar e a inabilidade da esquerda em lidar com o povo que habita o país criaram o crime organizado que desfila de AR-15 em punho pela periferia e morros da “Cidade maravilhosa”, e pelo existencialismo bélico presente em todos os grandes centros urbanos do Brasil e América Latina. A antiga direita faz como sempre, ignora as arestas deixadas por suas ações varrendo a realidade para debaixo do tapete. A antiga esquerda, a partir desta película, terá que retomar velho costume da autocrítica: a obra expõe a dificuldade daquela esquerda em tratar da etnicidade, das várias culturas que compõem o “povo”. Naquela época, a ala “direita” não tinha a mínima dúvida quanto à questão étnica: chamava logo a polícia.

Não há mais, como nos “anos de chumbo” da “Guerra Fria”, aquilo que era chamado de “arte engajada”, pois naqueles dias ou o indivíduo se posicionava contra ou a favor da ditadura, do capitalismo, do socialismo... Então, tomarei de empréstimo a frase preferida do personagem Jorginho quando chegaram ao presídio de Ilha Grande, em levas cada vez maiores, os presos “comuns”: “as coisas mudaram por aqui”. A delinquência (Foucault, 1979) será utilizada mais uma vez em favor das elites e contra as massas. A ironia se confirma no “recrutamento” quase involuntário de pessoas transformadas em delinquentes advindas justamente do seio do grupo que a “revolução socialista” deveria libertar.

Mais do que apenas chacoalhar o sossego dos “prisioneiros políticos” a insistente observação daquele filho de sambista sentenciava a razão pela qual a guerrilha urbana fora finalmente desmantelada. O isolamento dos presos (isso graças também ao território “gigante pela própria natureza”) ampliou em proporções inimagináveis a distância entre os revolucionários da esquerda e o “povo” ao qual desejavam libertar do jugo imperialista. O filme de Lúcia Murat – que divide o roteiro com Paulo Lins – nos dá ainda boa base para esclarecer o processo desencadeado a partir do convívio entre os presos “classe média”, “universitários” e, é claro, “brancos” e aquele criminoso “negro ou mulato – como queiram” proveniente dos morros cariocas. A democracia racial tem suas vestes e máscaras defenestradas da “cela forte”. Os “brancos” podiam fumar um baseado nas universidades e paradoxalmente posavam de moralistas dentro da cadeia. E fica decretado: guerrilha, luta armada são coisas de “macho”, nada de “pederastia”. A estrutura senhorial do latifúndio ecoando nas paredes do inferno em Ilha Grande. Naquela situação quase indescritível, alguém continuava decidindo a melhor maneira de serem todos iguais: os brancos.

O filme é apenas isso: os negros e mulatos discriminados se tornaram a Falange Vermelha – e mais tarde Comando Vermelho, Terceiro Comando e a versão paulistana PCC – enquanto os brancos se elegeram deputados e residiam num antigo casarão em Santa Teresa? A marca que entretanto não se deleta das relações entre os personagens Jorginho – diminutivo de São Jorge – e do guerrilheiro Miguel – referência ao “anjo da ordem superior”? – é o elo da cultura representado pela batida não policial do samba. A questão étnica deixa de ser aquela “angústia vaga” a que se referiu o filósofo e intelectual francês Jean Paul Sartre (1994): agora não mais permanece sob a superfície da “cordialidade” e se apresenta com todo seu vigor ao lado das questões de classe e de gênero. E a batida cultural a que nos referimos não equaciona isto.

O melting pot da Ilha Grande entornou…

A narrativa de Quase dois irmãos alterna cenas do passado recente e de uma contemporaneidade incerta. A amizade de dois garotos é ingrediente das imagens iniciais: um deles é branco, classe média, filho de “doutor”; o outro – negro – filho de um sambista que habita um dos vários morros cariocas. O samba era a senha que abria o portal invisível daquela “cidade cindida” (Pellegrini, 2004). Estranhamente, era aquela manifestação cultural que tornava brasileira às duas famílias. Contudo, a brasilidade findava com o último acorde do samba, mesmo que àquele tempo, o violão ainda não fora substituído por siglas como AR-15, AK-47 ou HK (conhecidas marcas de fuzis automáticos e de uma metralhadora). O filho do “doutor” cresce e vai para a universidade. O filho do “sambista” dança conforme a música da exclusão não apenas social, pois os não-brancos são os alvos preferidos de tal processo. Os ingredientes que seriam somados no caldeirão da Ilha Grande começam aqui a tomar forma e ganhar as primeiras características explosivas. A “linha de cor” (Du Bois, 1903) cumprira seu papel, mais uma vez.

Infelizmente, é neste ponto também que os filmes O que é isso, Companheiro? (1997), Casa de areia (2005), Cidade de Deus (2002) se igualam à Quase dois irmãos. Ambos sofrem com a impossibilidade de representação do “outro”, repetindo o “lugar-comum” já reservado, pela maioria das obras da literatura canônica brasileira, para as personagens negras ou afro-descendentes. Estas personagens – da forma como são apresentadas – parecem não possuir cultura própria e muito menos uma identidade étnica ou de gênero. Elas são, no máximo, os pobres que a “civilização ocidental” ou as revoluções iriam salvar. Ora os negros são representados como os produtores de uma “alegria sem dia seguinte”, ora são os rancorosos e traiçoeiros que partem na calada da noite, como pensava a personagem Jacobina, no conto “O espelho” de Machado de Assis (1992).

A divisão que demarca as fronteiras da cidade se repete na prisão da Ilha Grande, no qual se reencontram Miguel, o guerrilheiro e prisioneiro político, e Jorginho, um “preso comum”. A irmandade selada pelo samba seria quebrada nas dependências daquele presídio à medida que para lá fosse transferida uma quantidade cada vez maior de detentos como o “filho do sambista”. Aqueles que lutaram do lado de fora por uma sociedade mais justa reproduziam dentro daquelas paredes a desigualdade garantida pela questão étnica. A “linha de cor”, aqui no Brasil especialmente, mantém-se confortavelmente dissimulada por uma alinhada de valor inestimável: a questão de classe. Assim, como demonstra o filme de Lúcia Murat, são raras às vezes que a discriminação étnica põe seus dentes à mostra, porque desse modo pode garantir sua melhor eficácia. As perguntas disparadas por Jorginho – que até a chegada dos “presos comuns” se mantivera “subalterno” a dois tipos de normas: a do presídio e àquelas criadas pelos “presos políticos” – permanecem sem resposta diante do rosto atônito de Miguel. Eram indagações simples e diretas sobre as diferenças intocadas entre ambos em relação ao acesso à educação, à saúde, à moradia... Miguel tenta balbuciar algo sobre a “revolução”, mas fica apenas num esboço de tentativa. Enquanto os “brancos” brasileiros residem em “espaços” (Tuan, apud Nouzeilles, 2004), os “negros” e outros “não- brancos” devem se contentar com “lugares”, estes últimos delimitados não pelas experiências humanas dos excluídos e sim daqueles que os excluem: os integrantes da elite “branca” brasileira que nunca se autodenomina.

O mal-estar da personagem Miguel só não é menor do que aquele causado a algumas pessoas na plateia. Os comentários logo ao final da exibição, à saída do cinema, podem ser resumidos na seguinte frase: “o filme é interessante, mas a ideia de que a esquerda também era racista é um absurdo, a gente queria libertar o país que se encontrava sob uma ditadura”. O problema está exatamente aí, nessa ideia parcial de libertação. As mudanças promovidas no Brasil por este tipo de prática por parte da elite, terminaram como a abolição do trabalho escravo: a sequência foi uma política – não assumida até hoje – de “limpeza étnica”, embranquecer o país era a condição de torná-lo civilizado (Munanga, 1999). O que o dono da frase citada e o “companheiro” e amigo de infância de Jorginho começam a compreender, não sem alguma dificuldade, é este incômodo componente de nossa sociedade: a discriminação étnica.

Outro aspecto diferenciado no trato das identidades pelo filme diz respeito à questão de gênero. A exemplo da questão étnica, a esquerda dos “anos de chumbo” é declaradamente machista como a sociedade brasileira àquela época. Um tema a mais para a “auto-crítica” dos herdeiros dos movimentos que combateram a ditadura em nosso país. As personagens femininas da trama não parecem fugir aos estereótipos que se encontram também em parte considerável das produções da literatura brasileira. Suas caracterizações oscilam dicotomicamente entre a de namorada/esposa, mãe/avó, filha “santa” e a “filha da p.”... O desagravo à classe média, no entanto, não termina por aí. A filha da personagem Miguel é apaixonada por um traficante que comanda um dos morros cariocas. O código de “ética” da Ilha Grande, ex-prisão política, não escapa do machismo que contamina os ex-guerrilheiros urbanos. O filme retrata uma situação que é comum nas comunidades de periferia dos grandes centros urbanos: o fascínio exercido pelo poder derivado do tráfico de drogas sobre adolescentes de todas as “cores” e classes. A representação fílmica tenta ser fiel à realidade, mas a filha de Miguel sobrevive a um estupro promovido pelo novo “dono do pedaço”. Tais experiências desafiam qualquer tentativa conceitual e a palavra perplexidade parece imperar como naqueles dias em que as dicotomias pareciam solucionar todas as questões. Dias em que a “esquerda” combatia a “ditadura” que representava o “imperialismo”…

Entretanto, a frase de Jorginho retorna como um refrão fantasmagórico – “as coisas mudaram por aqui” – expondo cada vez mais as diferenças não sutis que compõem “espaços”, “lugares” e a todas as pessoas que neles transitam.

A memória da violência tão frequente no cinema hollywoodiano parece despontar no cinema nacional, sem, no entanto, deixar de mostrar sua ligação com a literatura brasileira contemporânea e a literatura de testemunho. É curiosa e não acidental, contudo, a prática de representar a violência sempre distante: no passado ditatorial, na periferia e nos corpos de vítimas bem demarcadas por uma pseudo-cordialidade. Sintomática é a intenção do diretor Fernando Meireles estampada no site do filme Cidade de Deus:

Decidi fazer um filme que fosse fiel ao partido do livro: filmado de dentro para fora da favela. Um filme sem cenários e sem técnicas de interpretação, aliás sem atores profissionais, mas com garotos que vivem aquela realidade, e que podem nos trazer ao menos a sensação do que é viver à margem. Por sorte consegui encontrar outros malucos que mergulharam no projeto com a mesma paixão. Fizemos o filme na raça, movidos a entusiasmo. (grifo meu) 1

A tentativa de ser “fiel ao partido do livro” e filmá-lo “de dentro para fora da favela” esbarra num obstáculo a tal representação: o narrador-fotógrafo e sua fala/olho câmera que, não inocentemente, transpõe o foco da enunciação para o campo da imprensa e do jornalismo policial, aliados ainda ao modo de narrar do cinema hollywoodiano no tocante aos “filmes de ação”. Quanto à afirmação que é um “filme sem cenários e sem técnicas de interpretação” parece haver um deslize ao desconsiderar a inteligência do expectador, mesmo que a história não tenha sido interpretada, exclusivamente, por atores profissionais. A questão a sair sob o tapete da cordialidade deveria ser outra: onde encontrar tantos atores “negros” (ou não-brancos) para atuarem naquela tão premiada produção? Talvez assim, o argumento de “nos trazer ao menos a sensação do que é viver a margem” passasse a fazer algum sentido…

À guisa de arremate recorremos à epígrafe que iniciou esse texto. A “paixão por mudanças e regeneração social” parece estar fadada aos caprichos das diferenças não sutis, já citadas anteriormente. O caldo ácido de nossos diversos melting pots continuará a deixar cicatrizes. O que assombra, contudo, é que a maioria delas permanece sendo tratada como se ocorresse sobre uma tênue e não sutil pele de areia. O “quase” ao início do título do filme dirigido por 

Lúcia Murat poderia ser lido apenas como um eco de nossa teimosa cordialidade em não curar as feridas que permanecem como vivas cicatrizes, tanto na memória quanto no cotidiano. A narrativa e a realidade que nos assaltam fazem papel adverso: sacudir expectadores antes que a próxima duna seja redesenhada pelos ventos e lançada sobre carros nas ruas de alguma metrópole distante.

 

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. O espelho. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

DU BOIS, William E. B. The souls of black folk. Avon Books; New York, 1903.

FOUCAULT, Michel. Sobre a prisão. In Microfísica do poder. 20 ed. Rio de Janeiro; Graal, 1979.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil — identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ : Vozes, 1999.

NOUZEILLES, Gabriela. Heterotopías em el desierto: Callois y Saint-Exúpery em Patagonia. In Margens, márgenes – Revista de cultura. N° 5. Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar del Plata, Salvador: UFMG, jul-dez 2004.

PELLEGRINI, Tânia. No fio da navalha. In Estudos de literatura brasileira contemporânea – literatura nas margens. N° 24. Brasília: UnB, julho/dezembro 2004.

SARTRE, Jean Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.

Filmes:

BARRETO, Bruno (direção); SERRAN, Leopoldo (roteiro). O que é isso, Companheiro?. Brasil; EUA, 1997.

MEIRELES, Fernando (direção); LUND, Kátia (co-direção). MANTOVANI, Bráulio (roteiro). Cidade de Deus. Brasil, 2002.

MURAT, Lúcia (direção). Roteiro: LINS, Paulo. MURAT, Lúcia. Quase dois irmãos. Brasil, 2004.

WADDINGTON, Andrucha (direção e produção); SOÁREZ, Elena (roteiro). Casa de areia. Brasil, 2005.

_________________________
1 http://cidadededeus.globo.com/diretor_01.htm , acesso em outubro de 2008.

Texto para download