COMPOSIÇÕES E RITORNELOS:
Performances do corpo no tempo espiralar

 

Giovanna S. Pinheiro*

  


No âmbito das oralituras,
o gesto não é apenas uma representação mimética
de um aparato simbólico,
veiculado pela performance.
Ou, ainda, o gesto não é apenas
narrativo ou descritivo, mas,
fundamentalmente, performativo.
O gesto, como
poiesis do movimento
e como forma mínima,
pode suscitar os sentidos plenos.

O gesto esculpe, no espaço, as feições da memória,
não seu traço mnemônico de cópia especular
do real objetivo,
mas sua pujança de tempo em movimento.
Em África, assim como nas Américas,
“o bom dançarino é o que conversa com a música,
que claramente ouve e sente as batidas,
e é capaz de usar diferentes partes do corpo
para criar a visualização dos ritmos”.

Dançar a palavra, cantar o gesto,
fazer ressoar em todo movimento um desenho da voz,
um prisma de dicções,
uma caligrafia rítmica, uma cadência.
Assim se realiza a emissão da textualidade oral,
nos diversos dispositivos pelos quais
e nos quais se compõe.

Leda Maria Martins


2021

 

No tempo o corpo bailarina”. Qual sentido se pode extrair desse corpo-imagem que dança, gira em espiral? A qual tempo-cultura ele nos remete? Poderíamos pensar num tempo-território ancestre, em que, pela origem, as formas do presente se organizam? Dançar, para muitas culturas originárias, significa também incorporar, trazer de volta, repetir, atualizar memórias, culturas, no movimento do corpo em tempo espiralar: “um tempo que não elide as cronologias, mas que a subverte” (p. 42). Logo, a ideia de tempo que aqui se apresenta é outra, pois supera aquela circunscrita ao pensamento filosófico ocidental, em grande parte, associada às cronologias. Aqui, temporalidades são gestos, estéticos e políticos, do corpo-tela, da voz, da palavra, da memória ritual, do tempo que encena passado, presente e futuro, como nos indica Leda Maria Martins.

É a partir dessa relação em espiral – desse movimento constante e progressivo –, que se acessam os ensaios de Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela, da pesquisadora, ensaísta, dramaturga, rainha congadeira e poeta, Leda Maria Martins. O livro integra a coleção “Encruzilhada” da Editora Cobogó (RJ), cujo objetivo é possibilitar encontros críticos que contestem o sistema instituído e o pensamento logocêntrico ocidental. Organizado em sete capítulos (ou composições, como define a autora), estes são assim intitulados: 1) “Teosofias, tempos e teorias”, 2) “Os tempos curvos da memória”, 3) “Poéticas da oralitura”, 4) “O meu destino é cantar, a gesta mitopoética dos Reinados”, 5) “Lírica dos afetos, o canto-imagem Maxacali”, 6) “Um corpo-tela, uma poética vaga-lume” e 7) “Escrever o outro”. Além destes, tem-se ainda uma breve nota inicial (ritornelo) – que elucida os leitores sobre o modo como tal obra foi erigida –, e a reflexão final, intitulada “Ntunga: do tempo espiralar, condensações”. Para a autora, o livro:

[...] revisita e expande reflexões sobre o tempo como espirais que venho elaborando desde meados dos anos 90 do século XX, enoveladas agora em novas dicções, como ritornelos. As composições, como se fossem células-síntese das ideias ressurgentes, podem ser lidas em uma sintaxe consecutiva ou como condensações cumulativas e acumulativas complementares que, como nos responsos, mantêm o tema, mas com ele também improvisam, como o próprio tempo espiralar que as inspira. (p. 17).

Os ensaios parecem nos conduzir a uma proposta que está contida no modo como se articula a escrita (poética e crítica, ao mesmo tempo) e que, embora crivada por um denso aporte teórico – ocidental e não-ocidental – sobre tempo, memória, corpo e voz, constrói-se também a partir de pesquisas autorais, de experiências e experimentos dos quais participam o próprio corpo e a voz antropológicos daquela que escreve e produz conhecimento. No repertório dialógico de Leda Martins, mencionam-se pensadores de tradições diversas, como Muniz Sodré, Alfredo Bosi, Mestre Didi, Juana Elbein dos Santos, Didi-Huberman, Paul Zumthor, Patrícia Hill Collins, Bunseki Fu-Kiau, Eduardo de Assis Duarte, Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Nei Lopes, Antonio Risério, para citar apenas alguns nomes, que a auxiliam na formulação de sua complexa teoria das performances.

Nesse ponto, há que se dizer ainda sobre a presença potente de Exu (Èsù Òjísè), orixá que, nas tradições Iorubás, é o mensageiro, o intérprete, o espiral, o princípio norteador e comunicador. Exu, como se pode ler na mitopoética sobre ele (Prandi, 2001), recebe a importante tarefa de estabelecer a comunicação entre homens e orixás; é por intermédio dele que os movimentos se processam, permitindo-nos estabelecer vínculos entre deuses-guias, corpos-ancestres que se foram (o princípio da ancestralidade) e a vida presente. Exu, nesse sentido, reativa as memórias no corpo daqueles que invocam mecanismos de manutenção das tradições de origem africana.

Importante destacar, como já sinalizado, que Leda Martins é Rainha Conga da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte, local sagrado onde ocorrem anualmente os ciclos do Reinado. Por meio deles, assistimos à festa sincrética dos congados e, principalmente, a manifestação de uma das formas de performance, que dá voz e corpo à ancestralidade advinda dos bantus e de outras tradições, como a iorubá, já mencionada. A ensaísta, portanto, escreve e formula suas teorias por meio dessa experiência, arquivística e arqueológica, como rainha e portadora de saberes que lhe foram transmitidos. Para ela, a ancestralidade:

Tanto pode ser concebida como um princípio filosófico do pensamento civilizador africano quanto pode ser vislumbrada como um canal, um meio pelo qual se esparge por todo o cosmos, a força vital, dínamo e repositório da energia movente, a cinesia originária sagrada constantemente em processo de expansão e catalização. Para muitos pensadores, entre eles Thompson e Fu-Kiau, a ideia de uma força vital institui a sophya Banto e, como reitera Aguessy, em África, diversos níveis de “existência e diferentes seres encontram-se unidos pela ‘energia vital’”. Esses seres são “o Ser supremo e os seres sobrenaturais, os ancestrais, o universo material, que inclui homens vivos, vegetais, os minerais e os animais, e o universo mágico” (p. 60).

Outro motivo que merece atenção neste livro é a reflexão proposta pela ensaísta sobre a palavra oral e a palavra escrita. Na sua concepção, o pensamento cultural do ocidente formulou uma “falsa dicotomia” entre as duas esferas, ao priorizar o discurso verbal escrito como instância primeira de produção de conhecimento, em contraposição às poéticas orais, que se produzem pela expansão do corpo e da voz. A noção de oralitura formulada por ela, inclusive em outros textos e livros, parece propor um debate relevante sobre essa dicotomia, que é ainda ancorada nos estudos de Paul Zumthor, sobre letra, voz, poesia oral e performance. Por fim, para Leda Maria Martins, na oralitura, “o gesto e a voz modulam no corpo a grafia dos saberes da vária ordem e de naturezas as mais diversas” (p. 41). Portanto, para que a performance ocorra, é necessário recorrer à tessitura das memórias orais, que fundam epistemes da história e das cosmovisões africanas.

Aprender a ler o tempo, as estéticas e éticas engendradas nas corporeidades ancestrais, especialmente as de matriz africanas, é o que nos propõe Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Nesses escritos, o que se vê são formas de composição, de colocar-se junto, combinar tempos (passado, presente e futuro), como resgate e presentificação das nossas relações sagradas com o passado. Como instrumento de incorporação da memória, o tempo lança todo o princípio condutor do corpo-tela, que se metamorfoseia, aparece, esconde-se e se mostra novamente nos intervalos e repetições nessas tradições, crivadas de beleza, vigor e entendimento.

Esse livro de Leda Maria Martins possibilita-nos, pois, compreender que os corpos são políticos, já que encenam retornos, repetições de cantos, culturas, tradições e memórias. Estas atuam na manifestação presente daquilo que entendemos ser o tempo espiralar. Nas tradições Banto e Iorubá, para citar apenas duas de matriz africana, mesmo quando se acredita haver morte, o que se evidencia são formas de vida no tempo ritual-ancestre. Nelas, o corpo é “[...] um acervo de um complexo de alusões e repertórios de estímulo e de argumentos, traduzindo certa geografia do corpo: o corpo pólis, o corpo das temporalidades [...], o corpo testemunha e de registros.” (p. 162).

Belo Horizonte, junho de 2022

Referência

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

 

______________________

* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, escritora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. É também pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, e coautora de Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI.

 

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