Entre-lugares na escrevivência de Carolina Maria de Jesus:

um labutar entre catar e narrar.

 

Janaina de Lima Ferreira*

 

 

 

 

Era papel que eu catava

Para custear o meu viver

E no lixo eu encontrava livros para ler

Quantas coisas eu quiz fazer

Fui tolhida pelo preconceito

Se eu extinguir quero renascer

Num país que predomina o preto

Carolina Maria de Jesus

1996 

 

Um ato extensivo do eu enquanto ser-estar no mundo, escrever é, por isso, ação dolorosa e amarga. Decodificar-se pela palavra é construir caminhos antônimos. Transformar seu corpo em matéria viva é, de fato, metamorfosear as íntimas angústias em linhas cóleras que fulguram um outro ser. Carolina Maria de Jesus, escritora, poeta, mulher negra e periférica transmudou os calos das mãos e as marcas dos corpos pretos em poesia. À vista disso, a obra Carolina Maria de Jesus: percursos literários, (2022) decifra um marco diacrônico no assentamento como ciência da literatura afro-brasileira. Reúne pesquisas diversas acerca da vida-obra da literata. Dividindo o exemplar em seis capítulos, as organizadoras Aline Arruda, Iara Barroca e Luana Tolentino, metodizaram algumas pesquisas que foram apresentadas no VI Colóquio Mulheres em Letras do grupo de pesquisa Letras de Minas/Mulheres em letras em 2014.

No primeiro capítulo – Traços do silêncio e do espaço na obra de Carolina Maria de Jesus –, podemos observar tais temas como o silenciamento da fome, miséria, gênero e subalternidade. A princípio, Maria Nazareth Soares Fonseca, produz uma analogia entre a vida da escritora e o poema “catar feijão” de João Cabral de Melo Neto, destacando que catar papel para escrever foi uma das formas que a manteve viva driblando a segregação da fome. Enquanto isso, Osmar Pereira Oliva, analisa a escrita da autora por meio de “outros escritos” como matérias de jornais, relatos, publicações de trechos recortados e depoimentos que expressavam seu martirizar vivido. Nesse ínterim, Cristiane Côrtes concentra-se em investigar a prosa carolineana pela “metáfora do fora”. Perscruta a relação entre a palavra e o silêncio, entre o eu e o outro, entre a comunicação e sua impossibilidade. Nesse hiato, Luciana Pimenta, trabalha a noção de lugar e não lugar imbuída na figuração concreta do quarto, da casa, da favela e do próprio sistema da fome assente na discussão dos conceitos de placemet e legência.

No capítulo intitulado Vozes-mulheres: diálogos entre Carolina Maria de Jesus e outras escritoras, entrevemos asserções como modernização, poder da palavra grafada e resistência. Posto isso, José Carlos Sebe Bom Meihy, apresenta a construção da literatura brasileira pelo viés feminino de forma a impulsionar a investigação de outros temas, por exemplo, a noção de mineiridade nos textos literários. Analogamente, Luciana Paiva Coronel, compara as condições de escrita e temáticas de Virgínia Woolf e Carolina Maria de Jesus. Do mesmo modo, Roberta Maria Ferreira Alves, examina as formas do silêncio que trabalham decifrando as veredas do não-dito a partir de duas personagens: Carolina, do Quarto de despejo, e Miss Celie, do romance A cor púrpura. Ao passo que, Alessandra Corrêa de Souza, com base no conceito de subalterno, problematiza a concepção acadêmica e literária da formação de “si mesmo” em Jesus e Zamudio.

Em “Contornos do corpo: a escrita dos sentidos em Carolina Maria de Jesus”, terceira seção, percebemos as seguintes proposições: pensamento poético, o lugar da poesia e a solidão, o corpo como traço marcante do passado e da memória, e, por fim, correlacionando-as à literatura de Ferréz e a escrevivência de Evaristo. Produzindo, dessarte, um panorama que transcende para o reconhecimento da literatura afro-brasileira. Por sua vez, Elzira Divina Perpétua, disserta sobre a propagação de dois aspectos, “as imagens de poeta e de poesia”. Nessa perspectiva, estariam similarmente insufladas ao contexto social e político da comunidade periférica. Outrossim, Amanda Crispim Ferreira, reflete sobre o contexto de produção, a recepção e as maciças críticas ao Quarto de despejo. Além disso, Imaculada Nascimento, trabalha as características familiares da construção carolineana como solidão, miséria e dor, porém, aponta através de um traço particular, a “oralitude” descrevendo outra fome, e, assim, a nudez de ser e estar oculto na miséria do mundo. Destarte, Raffaela Fernandez e Marcelle Leal, concebem a ficção da autora como “extensão e expressão” do corpo, isto é, uma composição literária revestida pelas experiências que a circunscreveram no mundo de forma coletiva.

Ao logo do quarto capitulo – O trágico, a memória e o testemunho nas narrativas de Carolina Maria de Jesus, – a linguagem, a crítica, o trágico e a produção feminina negra compõem as dissertações dos artigos. Nessa linha, Maria Madalena Magnabosco caminha pelos imbróglios da indagação: “quem é Carolina Maria de Jesus?” por meio da noção de modernidade, fissura, imagem corporal, identidade, sintoma e ordem. Bem como, Aline Alves Arruda, discute o conceito de “escrita performática” de Graciela Ravetti nos textos: “Minha vida” e “Sócrates africano”. Quanto a isto, a pesquisadora observa que o “individuo narrador e narrado” fragmentam-se em um teor autobiográfico e mnemônico. Ao passo que Fernanda R. Miranda, procura descortinar as estratégias escravocratas pelas noções históricas colonialistas e patriarcais. Nesse entremeio, Eliane da Conceição Silva, analisa através do registro cotidiano no diário a representação da mulher negra na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

Por outro lado, em Carolina Maria de Jesus: uma educadora, atentamos aos temas sobre educação no interior do rememorar carolineano. Luana Tolentino, Elisangela Aparecida Lopes Fialho e Claraelisa Martins Mariano, discutem temas da literatura afro-brasileira no âmbito educacional. Tolentino partilha experiências na educação de Jovens e Adultos como espaço de leitura crítica-reflexiva do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada. Congênere a isso, Fialho e Mariano discorrem acerca de trechos do diário de Jesus correlacionando ao prisma de Candido no livro: “O direito à literatura”. Enquanto, Geny Ferreira Guimarães, Hildália Fernandes Cunha Cordeiro e Danielle Cristina Anatólio dos santos exemplificam as ideias de escrevivência, do cotidiano e do poder na escrita negra feminina.

Por fim, o sexto capítulo Arquivos delineados: históricos sobre o percurso e a recepção da obra de Carolina Maria de Jesus na impressa, – integra pesquisas que abordam as temáticas cartografias, cartas e discursos midiáticos. Sergio da Silva Barcellos explora a produção dos discursos e das imagens (racistas, sexistas...) sobre a poetisa/romancista no espaço midiático. Com tal característica, Kelen Benfenatti Paiva, minudencia os labirintos da escrita da autora pelo interior dos cadernos, rascunhos e fotografias analisando os distintos espaços, vozes e figuração feminina. Para culminar essas reflexões, Mário Augusto Medeiros da Silva, investiga a partir do livro, Quarto de despejo: o diário de uma favelada, ações, eventos, menções à escritora nos anos 1960 que circulavam em torno dos temas como favela, marginalidade social, miséria e inclusão do negro.

Mediante o exposto, Carolina Maria de Jesus: percursos literários, converte-se em uma obra enfática, que denuncia poeticamente as estratagemas e violências escravocratas de um país moderno-colonial. Alude às palavras corpóreas sentidas de forma atroz e perspicaz na comunidade (escrevivência). Logo, as pesquisas aqui enunciadas, empenham-se através das subjetividades plurais e coexistentes no espaço periférico recriado e (re) contado pela literata. A fome como elemento epistemológico em vários dos artigos traduziu o discurso poético e cosmológico atrelado principalmente ao pensamento feminista criando um discurso prosaico, que valoriza a oralidade e a memória dos povos marginalizados. Decerto, após a leitura dessa relevante coletânea, ratifica-se que Carolina Maria de Jesus consolidou-se como mediação entre as gerações e lugares alternativos ao cânone da literatura brasileira. Além disso, o volume confere à escrita carolineana um espaço de relevo na construção da literatura afro-brasileira, inserindo e sinalizando às mulheres pretas o campo literário como fonte de resistência, esperança e conquista.

 

Recife, setembro de 2022

Referência

ARRUDA, Aline; BARROCA, Iara; TOLENTINO, Luana (Orgs.) Carolina Maria de Jesus: percursos literários. Rio de Janeiro: Malê, 2022.

 

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*Janaína de Lima Ferreira é professora, Graduada em Letras Português/Inglês pela UFRPE-UAST, Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela FAVENI e Mestranda em Teoria da Literatura pela UFPE. Participa do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e pesquisa sobre temas como corpo preto, espaço, memória e identidade na literatura afrodiaspórica com ênfase em Conceição Evaristo.

 

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