Luana: das histórias em quadrinhos para a prosa infantojuvenil

 

Rafaela Pereira*

Berimbau a todo tempo
Em seu ritmo me embala
Só pra quem tem sentimento
É que o berimbau fala...

Abadá Capoeira – Berimbau me falou

Considerada por muitos a primeira heroína negra das histórias em quadrinhos brasileiras, Luana, garotinha de oito anos, capoeirista e descendente de quilombolas, faz o protagonismo feminino e negro tornar-se presente também na literatura voltada para crianças e adolescentes. Produto da criatividade dos autores Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino, Luana é uma menina que gosta de estudar e está sempre atenta ao que diz respeito à cultura e história de seu povo. Suas primeiras aventuras surgem nas histórias em quadrinhos na coleção Luana e sua turma, com dezoito edições: são aventuras no museu, no espaço, na casa mal assombrada, no circo, entre outros cenários. A coleção aborda assuntos que vão da preservação dos animais e do meio ambiente à informática e às novas tecnologias, o que dá um caráter atual e informativo às histórias.

Percebe-se em Luana o espírito de liderança e a coragem para lutar contra as maldades praticadas por Fumaça Mortal – o vilão poluidor que quer a todo custo destruir os recursos naturais do planeta. Junto aos seus amigos ela impede que Fumaça Mortal prossiga com as suas crueldades. Além das aventuras da heroína, as revistas trazem seções como os “Causos de vovó Josefa”, em que uma voz feminina ancestral reconta lendas trazidas do continente africano. Vovó Josefa inicia suas histórias partindo sempre de pequenos conflitos ideológicos e, ao final, conclui com uma mensagem para que o leitor reflita sobre suas ideias e atitudes. Desta forma, os autores conseguem com criatividade passar para o público mirim elementos de uma sabedoria milenar preservada na oralidade tão presente nas culturas de matriz africana, a todo instante revisitada nas muitas viagens que a nossa personagem fará.

Depois de algum tempo no universo das HQs, Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino decidiram trazer a heroína também para o formato livro, e desta vez ela vem com o seu inseparável berimbau mágico. Através dele, Luana se transporta para outras épocas e lugares, o que possibilita aos autores revisitar episódios significativos de nossa formação enquanto povo, ao mesmo tempo em que destacam a resistência negra e a riqueza da cultura afro-brasileira. A forma como Luana aparece deixa nítido o lugar de seu pertencimento cultural, pois o que ela mais gosta de fazer é gingar capoeira. No primeiro livro, Luana: a menina que viu o Brasil neném (2000), a protagonista é assim apresentada ao leitor:

Oito anos, corpinho gracioso, sorriso doce. Quem não a conhece não imagina que já luta como gente grande. É a melhor capoeirista de Cafindé, uma vila que, há muito tempo, foi um quilombo quase tão forte e bonito quanto foi o de Palmares, o grande quilombo da Serra da Barriga, no interior de Alagoas. (MACEDO, FAUSTINO, p. 09).

Neste livro, a heroína, muito curiosa para saber como nasceu o Brasil, viaja até 1500, assiste como foi a chegada dos portugueses na nova terra e conhece algumas tribos indígenas daquele tempo. O texto destaca a importância da oralidade presente nas culturas indígenas e africanas, quando Luana encontra seu amigo Cauê e ambos começam a falar de histórias contadas pelos avós, passadas de geração a geração. Enquanto a capoeirista conversava com o seu amigo, o céu foi escurecendo e de repente um raio atinge a corda do berimbau de Luana. Preocupada em verificar se havia algum estrago no instrumento, ela começa a tocar e ouve um “um eco de muitas vozes repetir sem parar: Iê, mundo dá volta, camará.” (p.23). Ao abrir os olhos a garotinha se vê no meio de vários índios e percebe estar em outra época. É então que o leitor fica sabendo da magia que move o berimbau da menina malungo. Depois, ela volta para Cafindé e ajuda Cauê a fazer o trabalho de escola sobre o descobrimento do Brasil.

Em 2007, a heroína reaparece em Luana: as sementes de Zumbi e Luana: capoeira e liberdade. O primeiro surgiu, na verdade, em 2004 como produção independente, sendo então reeditado três anos depois. Neste livro, a personagem viaja ao século XVII, período de escravidão e época em que viveu Zumbi. Em seu quarto ela ouve o batuque dos tambores falantes e percebe que se trata de um chamado. Olha para o seu berimbau e, lembrando-se que ele agora é mágico, resolve conhecer de perto mais uma história. Na nova viagem, encontra o herói quilombola, conhece sua esposa, Dandara, e aprende sobre as formas de vida e de resistência do povo de Palmares. Através de Expedito, um velho escravizado, toma consciência da triste realidade que vigorava nas fazendas e senzalas; e, por meio do garoto Benden, fica sabendo como surgiu o quilombo e sobre as pessoas que o povoaram. Para destacar o conhecimento derivado da oralidade os autores mostram como o conhecimento era repassado às pessoas que ali viviam:

Benden conhece todas as histórias do quilombo porque, à noite, em torno da fogueira, os mais velhos as contam para os mais novos. É o que se chama tradição oral. Aqui ninguém sabe escrever, mas todos sabem tudo sobre o povo de Palmares. (MACEDO, FAUSTINO. p. 27).

Assim como nas HQs, as ilustrações no livro são importantes, pois chamam a atenção do leitor para algo relevante na história como, por exemplo, a figura que mostra pessoas em volta de uma fogueira ouvindo as narrativas dos mais velhos, hábito que acontecia todas as noites. A ilustração também indica que esta prática de sentar em rodas para ouvir o que alguém mais velho tem a dizer não deve nunca estar distante da realidade das crianças, principalmente as que estão na fase escolar. Após conhecer a história do guerreiro Zumbi, Luana percebe que tem a missão de plantar as “sementes de orgulho e liberdade”, fazendo alusão às várias comunidades quilombolas espalhadas pelo país e à persistente luta dos negros contra a discriminação e o racismo.

No terceiro, Luana: capoeira e liberdade (2007), a heroína afro-brasileira faz nova viagem e descobre como surgiu a capoeira, sua atividade favorita, e a história do local onde mora, conhecido como Vila de Cafindé. Conhece Atino, um excelente capoeirista, senhor misterioso que era triste e sozinho. Percebendo que o amigo vivia isolado, Luana resolve visitá-lo e ajudá-lo a participar das alegrias da comunidade. Encanta-se com a história que Atino vai lhe contando sobre a sua ancestralidade, quando ele fala de seu avô Maromba, que sabia fazer belíssimos berimbaus. Luana, então, descobre que possuem coisas em comum, pois ela e Maromba gostavam do mesmo objeto. Ao chegar em casa não hesita em tocá-lo para fazer mais uma viagem e se encontrar com Maromba e seu berimbau. Luana chega então à época em que a vila de Cafindé era ainda um quilombo. Ali ela vê as pessoas trabalhando, compartilhando o que plantavam e percebe que havia harmonia entre os moradores do local. De repente, ouve o som de atabaques, pandeiros, agogôs, ganzás e berimbaus e logo encontra uma roda de capoeira; é convidada para participar e faz bonito tocando o seu inseparável instrumento. Ao avistar a ponte onde o avô de Atino passou e perdeu o seu berimbau, Luana lembra-se que tem uma missão a cumprir. Caminha durante muito tempo, passando por montanhas e rochedos e faz o mesmo percurso que o velho capoeirista. Ao se encontrar com um grupo de curumins, ela descobre que o berimbau de Maromba está com o Pajé Malescalê, que estava esperando por Luana para lhe entregar o objeto. Luana, então, retorna feliz por saber que havia recuperado a alegria de Atino, vendo-o sair feliz pelas ruas de Cafindé tocando o berimbau que fora do avô. Mais uma missão cumprida!

Em Luana: asas da liberdade (2010), quarto livro da coleção, ela volta ao tempo do cativeiro e acompanha um pouco da trajetória dos negros desde a partida deles, no cais do porto de Daomé, um dos locais em que africanos passaram a se tornar escravizados. Ela entra em um navio negreiro, onde assiste de perto as mazelas pelas quais aquelas pessoas, que foram arrancadas de sua terra, passariam até chegarem ao Brasil. Nesta aventura Luana faz várias viagens e conta ao seu leitor tudo o que descobriu sobre a história do país, principalmente no que diz respeito ao lento processo para a libertação dos escravos. Encontra-se com um garoto chamado Luizinho, que mais tarde descobrimos tratar-se de Luiz Gama, advogado, poeta e importante abolicionista. Além de Luiz, conhece Castro Alves, José do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Machado de Assis e Rui Barbosa, pessoas que se destacaram na literatura, na política e na luta para a abolição da escravatura.

Sobre a coleção é interessante ressaltar o seu caráter didático-pedagógico. Os autores recriam a triste situação dos povos africanos ao se tornarem escravos no Brasil e reforçam o motivo pelo qual é importante falar desta gente que passou a fazer parte do país, de sua história e cultura. Utilizam uma linguagem rica e variada, para a melhor compreensão e enriquecimento do repertório dos leitores. Além disso, preocupam-se em expor informações, como por exemplo, o mini vocabulário no final de cada volume, além de inúmeras ilustrações com legendas, fotos de instrumentos musicais e seus respectivos nomes, detalhes que possibilitam maior compreensão dos elementos que aparecem no decorrer da narrativa. O diferencial da coleção, como foi citado, é o fato de ter uma protagonista que foge aos estereótipos comumente encontrados em personagens negros, em que são muitas vezes caracterizados negativamente: ela é alegre, inteligente, esperta, usa o cabelo traçando com miçangas coloridas, possui família e vive em um ambiente onde existe harmonia. Daí poder falar em um ethos construtivo de Luana, que vai se formando através de sua fala, de seus hábitos e ações. A imagem de Luana é positiva e isso permite às crianças perceberem que a condição do negro não é somente a do o menos favorecido.

Os autores são felizes em destacarem a cultura quilombola como tema central da narrativa, em que a protagonista carrega características que deixam evidentes a ligação dela com a temática. No lugar da varinha de condão ou da boneca, Luana tem como objeto um berimbau mágico. Sobre a magia deste e a possibilidade de viajar para outras épocas sempre que for tocado, funciona de forma idêntica ao “pó de pirlimpimpim”, que aparece em Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, em que os personagens Emília, Pedrinho, Narizinho e Visconde usam para se transportarem magicamente para outros lugares. A vontade de Luana em querer praticar o bem e a utilização da magia para conseguir os seus intentos faz da personagem uma heroína que inspira muitas crianças, principalmente as crianças negras.

Adotada em várias escolas do Brasil, as aventuras de Luana em HQs e nos livros passam a fazer parte do entretenimento e da educação de várias crianças, que podem acompanhá-la em suas viagens. Se os primeiros contatos dos pequenos com o mundo da leitura se dão através das histórias que ouvem, principalmente nas escolas, é a atitude das personagens que acaba influenciando a forma com que os pequenos leitores passarão a ver o mundo a sua volta. Assim eles poderão se juntar a Luana e com ela aprender sob outro olhar a história de um povo que resistiu e ainda insiste para que elementos da cultura negra permaneçam vivos, como os antepassados sempre desejaram.


Referências

CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

MACEDO, Aroldo; FAUSTINO, Oswaldo. Luana e as asas da liberdade. São Paulo: FTD, 2010.

____. Luana: capoeira e liberdade. São Paulo: FTD, 2007.

____. Luana: as sementes de Zumbi. São Paulo: FTD, 2007.

____. Luana: a menina que descobriu o Brasil neném. São Paulo, 2000.

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* Rafaela Pereira é graduada em Letras pela UFMG e professora de Português e Literatura Brasileira do Ensino Médio. Pesquisadora do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, desta Instituição e colaboradora do Portal literafro.

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