Capítulo XX

Dona Sinhá deu um rápido balanço nas atividades daquela manhã, uma das mais tormentosas de sua vida.

Da rápida fiscalização que fizera, tomara conhecimento de numerosos casos, que reclamavam solução imediata.

Ao voltar da almanjarra, dirigiu-se diretamente para um pequeno quarto que sempre lhe servira de escritório. Tocou um pequeno sino para chamar o administrador, e dando um toque diferente convocou as caseiras.

Efigênia foi a primeira a atender ao chamado.

– Pronto, dona Sinhá! Estou às suas ordens.

– De hoje em diante vamos começar a pôr em ordem esta casa. Há muito desleixo no trato dos móveis e da prataria.

Dona Sinhá fez uma pausa.

– Sim senhora dona, Sinhá.

– Antes, porém, Efigênia, você deverá ir ver a galinha fujona. Hoje de manhã eu sei que você saiu para procurá-la, mas houve qualquer dificuldade e você acabou aparecendo duas horas depois toda enfeitadinha como se fosse receber um namorado...

Dona Sinhá procurou ser maldosa, e ao dizer as últimas palavras, encarou Efigênia com um leve sorriso irônico.

– Posso ir? – indagou a escrava visivelmente contrafeita.

– Pode, e que não demore. É preciso começar ainda hoje a faxina.

A partida de Paulinho ferira-a profundamente. Começava a temer por seu destino naquela fazenda, agora inteiramente entregue à sanha de dona Sinhá. Caminhava lentamente, sem pressa de chegar. O seu espírito divagava entre a realidade brutal de sua vida e os castelos de sonhos que a sua fantasia criara, agora inteiramente desfeitos pela atitude dúbia e irresoluta de Paulinho.

Efigênia caminhara bastante, e começava a sentir-se cansada. Vencida pela fadiga, deixou-se cair numa leve modorra, à sombra de uma jaqueira.

Sem perceber, foi tomada de surpresa pela chegada de um homem forte, que se aproximara sem nenhum ruído que a despertasse e, agarrando-a por um de seus braços, foi lhe dizendo com voz pausada e segura:

– Hei, menina, você não vai fugir!

– Mas, eu não fiz nada! Eu juro! Não fiz nada! Estou aqui porque dona Sinhá me mandou vir ver a galinha fujona que fez ninho na boquinha da mata, ali, debaixo da aroeira. Deixe-me ir embora. Eu não fiz nada.

– Eu sei menina, eu sei. Mas você vai comigo. Tenho ordens do senhor Antônio Bento para levar você, nem que seja na marra.

– Mas, eu não posso deixar minha mãezinha, meu senhor. Por amor de Deus, não faça isso.

– Olha, menina, eu não posso fazer nada, só mesmo com o patrão.

Efigênia gritava, pedindo socorro.

– Não adianta – insistia o homem – ninguém vai acudir.

Desesperada, sem saber o que iria suceder-lhe, Efigênia tentou mais uma vez desvencilhar-se de seu algoz, dando uma tremenda dentada na mão.

– Não morda! – gritou ele com autoridade, agarrando Efigênia pelos cabelos, evitando machucá-la.

Chorando, esperneando, relutando, Efigênia foi, afinal, arrastada pelo capataz até a presença de seu patrão, que a esperava adiante, na encruzilhada do caminho, que ia ter ao sítio do Sol Nascente.

Ao ver Efigênia, Antônio Bento esboçou um sorriso de satisfação.

– Pronto, aqui está a moça. Brava como o quê! Veja a minha mão mordida.

– Leve-a para o lugar combinado, e não saia até que eu chegue. Mas, leve-a com cuidado.

A negrinha desesperada tentou mais uma vez evadir-se.

– Não faça assim – disse Antônio Bento, – ninguém vai maltratar você. Eu só quero levá-la para o sítio do Sol Nascente onde você será a dona de tudo.

– Mas, o que querem de mim?

– Não sei – respondeu o feitor. – Não tenha cuidado. O patrão é boa pessoa e não espanca nenhum de seus colonos.

– Malvados! O que vai ser de mim sem a minha mãe. Coitada, com certeza que Sinhazinha vai pô-la no tronco pensando que a minha pobre mãe me ajudou a fugir...

Antônio Bento não se demorou.

– Pode ir embora – disse ele ao capataz – mas fique por perto. Se eu precisar de alguma coisa, eu chamo.

A sós com Efigênia, Antônio Bento olhou-a com ternura, contemplando a sua beleza cujas formas marcantes estavam apenas disfarçadas sob um vestido riscado.

Efigênia estava impaciente. Quebrando o pesado silêncio, indagou com irritação e temor:

– Afinal de contas, o que quer o senhor de mim?

– Tudo – respondeu Antônio Bento.

– Mas tudo o quê?

Antônio Bento respondeu com mais clareza, procurando ser convincente em suas palavras.

– Meu amor, eu sempre senti uma grande atração por você, desde o primeiro dia que a vi procurando os ovos da galinha fujona, aqui, perto das divisas da nossa propriedade. Muitas e muitas vezes fui espreitá-la, chegando bem perto de você. Mas tinha medo de falar. Receava que você fosse contar em casa, à sua mãe ou ao seu patrão. Temia ficar privado de vê-la. Por isso resolvi roubá-la e trazê-la para o sítio do Sol, nesta propriedade que será sua e de sua mãe, se você concordar com as minhas intenções.

– Mas o senhor me quer como amante cativa sujeita a todos os seus caprichos?

– Não, meu amor! Eu não a quero assim. Desejo-a muito, mas não quero violências, nem contrariedades. Antes de mandar raptá-la tomei uma série de providências. Mandei reformar esta casa. Comprei móveis novos. No terreiro fiz também uma série de inovações para o seu conforto, inclusive, mandei colocar uma moenda de cana com três rolos de gaviona para ser movida por animal. Tudo isso eu fiz pensando em tê-la para mim. Como minha companheira a quem desejo dedicar o resto de meus dias.

– Então, o senhor gosta de mim e me quer como amásia?

– Não, meu amor. Eu não a quero como amásia. Quero-a como mulher. Se for possível e Deus quiser, eu a terei como esposa.

– Mas, seu Antônio Bento, o senhor bem sabe que não pode se casar comigo.

– Efigênia, isso nos discutiremos depois. Agora, responda-me: quer ser a dona do sítio do Sol Nascente e de meu coração?

A escrava estava indecisa, perturbada. Não sabia o que responder.

Um longo silêncio caiu sobre a sala e Antônio Bento voltou a insistir na pergunta.

– Está bem – disse ela – mas primeiro quero que a minha mãe seja salva das garras da dona Sinhá. Somente assim concordarei em viver com o senhor.

– Não há dúvidas, Efigênia. Eu irei salvar sua mãe. Mas para isso é preciso que esperemos a noite.

Sem perda de tempo, Antônio Bento chamou o capataz.

– Desmonta, depois, venha aqui – disse Antônio Bento.

– Juliano, precisamos roubar a mãe da Efigênia, cuja vida começa a correr risco na fazenda do Tronco. Você conhece a Benedita?

– Sim, meu patrão. Sei quem é e até onde fica o sítio que o coronel deu para ela depois que dona Sinhá deixou a fazenda. Mas creio que ela não mora mais lá.

– É verdade – disse Efigênia – agora estamos na casa-grande em um quarto pegado à senzala e será difícil chegar lá sem ser suspeitado pelos cachorros.

– Não senhora – respondeu o administrador. Eu sei como engabelar os bichos. Um pouco de carne fresca acalma a todos eles. O difícil vai ser o Negro Rei. Quase sempre fazendo preces e orações por perto da senzala e isso leva muito tempo. Mas mesmo assim, é fácil salvar dona Benedita.

– Então, Juliano, você vai cuidar disso hoje, sem falta. Não me volte aqui sem a mãe de Efigênia. Gosto de você, menina. Farei tudo para ter você ao meu lado.

– Menina não senhor! – Efigênia. Foi este o nome que eu recebi de batismo. Foi a promessa que minha mãe fez. Se não me matassem no ventre dela com os maus tratos que costumavam dar às negras do Tronco, eu receberia esse nome de Santa padroeira dos negros.

– Se não a matassem?

– Sim senhor!

– Mas são assim tão maus os proprietários da fazenda do Tronco?

– São bárbaros – disse ela. Tão bárbaros que a minha mãe perdeu um filho e o meu pai foi morto no tronco.

– Que desumanos! Como é possível ser assim tão perverso! Eu há muito que acabei com os meus. No Sol Nascente todos são colonos. Trabalham livres. E você também será livre, Efigênia, juntamente com sua mãe.

– Obrigada, senhor – disse ela humildemente.

– Não há o que agradecer. Quero-a muito e não poderia tê-la como escrava nem desejaria possuí-la como escrava. Por isso, raptei-a.

– Mas como pode o senhor gostar de uma preta que nem eu, se o senhor é casado com uma mulher branca, e, segundo dizem, muito bonita?

– Eu sei...

Antônio Bento olhou-a ternamente e disse sussurrando ao ouvido:

– Minha felicidade agora é você, meu amor...

Tentou beijá-la, mas Efigênia retirou o rosto, revelando certo medo.

(Negra Efigênia, paixão do senhor branco, p. 187-192)

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