Uma narrativa de resgate

Ariele Santos*

 A escrita de resistência de Miriam Alves sempre teve como projeto a afirmação da cultura, dos saberes e de toda uma memória negra abafada pelo processo de colonização. Desde os primeiros passos de sua carreira, a autora marca presença na literatura afro-brasileira com sua voz potente na poesia, na ficção e na reflexão crítica. E sempre em consonância com o propósito afirmativo da negritude.

Em 2019, nos apresenta Maréia – romance centrado no resgate de vozes ancestrais por muito tempo silenciadas, mas vivas nas várias linhagens da família negra que compõe o núcleo do enredo. Por meio de uma linguagem em muitos momentos marcada pelo poético, o texto põe em cena a espiritualidade demonizada ao longo do processo colonizador para com ela dialogar, fazendo emergir rituais e saberes próprios às religiões de matriz africana mantidas vivas nos corações e mentes dos personagens.

O romance se desenvolve a partir da tensão existente sobretudo entre as mulheres negras e a decadente família de brancos ricos com a qual se relacionam. Em capítulos alternados, a autora põe em cena os Nunes dos Santos, família negra que segue confiando em seus ancestrais escravizados e em sua espiritualidade, e que ascende em todos os âmbitos de suas vidas devido a seu esforço, sendo que este reconhecimento surge como uma forma de reparo histórico por todo sofrimento que seu povo passou. Do outro, os Menezes de Albuquerque, uma família branca, que sempre fora rica e dotado de status social elevado, aparece agora em decadência, como se uma dívida antiga estivesse finalmente sendo paga, levando estes personagens a infindáveis tormentos.

Aos poucos, a narrativa vai entrelaçando os dois núcleos e desvela para o leitor uma espécie de maldição que acompanha os personagens brancos devido a acontecimentos passados, que os assombram por gerações.

Em declaração recente, Conceição Evaristo (2019) afirma ver a escrita como uma espécie de vingança e que através dela é possível reverter uma situação de submissão. É exatamente isto que Miriam Alves constrói, quando coloca duas famílias em situações antagônicas, cruza suas trajetórias e muda no presente os lugares que ambas ocupavam no passado.

Uma atenção especial é dada aos pequenos rituais cotidianos, que parecem comuns à primeira vista, mas que, na narrativa, ao serem apresentados e construídos como traços deixados pelos ancestrais, são sacralizados. A autora propõe este resgate de forma respeitosa e transporta o leitor para a descoberta do passado de uma família afro-brasileira que poderia ser a dele.

Em contrapartida, volta-se para a representação da herança racista deixada pelos europeus e seus feitos brutais contra a população negra. Essa herança continua ecoando, de forma não explícita, em seus descendentes e toma aspecto de culpa devido à forma como aqueles patriarcas conquistaram poder e fortuna que, no final, tomam um rumo inesperado para o leitor.

Tal culpa vem à tona na narrativa, desencadeando a decadência através da loucura e da falta de controle do próprio corpo e de suas ações. Alfredo Menezes de Albuquerque é atormentado por manifestações doentias, sofre problemas sérios e testa todos os tratamentos que o dinheiro pode proporcionar. Porém, segue sendo um prisioneiro em si mesmo, em sua própria história e na memória de seus antepassados, que não o libertam nunca, causando a paranoia ansiosa do personagem, como a indicar que a carga da escravização deixa marcas, mas não só nos descendentes dos habitantes da senzala.

Na personagem Maréia a espiritualidade do povo negro se faz presente em todos os momentos, seja quando ela está mergulhada em sua arte – tradição de família –, seja quando ela volta para o lar e encontra “as mulheres de sua vida”, maneira como se refere à tia, Caciana, à avó, Dona Déia e à mãe, Tânia. A relação entre essas mulheres ultrapassa o laço sanguíneo e vai para o nível espiritual. Nenhuma religião é citada na narrativa, mas a fé existente dentro das personagens basta para comprovar que sua crença e ligação vêm de uma força muito maior. Esta espiritualidade, também mantêm viva a memória de seus homens que se perderam no mar, colocando a morte como uma continuidade da vida.

Os elementos da natureza são fortes símbolos na narrativa, a imagem do mar é sempre associada aos personagens, como no nome da protagonista, uma mistura e mar e areia e está presente também na profissão do pai e avô marinheiros.

O mar é representado também como espaço de encontro, remetendo aos negros escravizados que chegavam através dele e, buscavam de alguma forma, se reconectar com os seus. Também como ponto fuga ou de partida, para onde foram e não voltaram e onde, de certa forma, ainda permanecem. Como narrado neste trecho da fala de Tânia: “Seu pai não está presente de corpo, mas no reino da senhora do mar, lá, com certeza, está com aquele sorriso de menino que ganhou doce, (...).” (ALVES, 2019, p. 71)

Em Maréia, Miriam Alves marca a textura do romance com a inserção de diversos termos em ioruba, língua nigero-congolesa. Ao final, um “mini dicionário” de ioruba-português e português-ioruba é apresentado ao leitor. E ao longo da narrativa os termos são explicitados e, no contexto, enriquecem a verossimilhança do enredo e atestam o talento da autora em mergulhar nas culturas africanas trazidas para o Brasil.

No desfecho, Maréia reúne as pontas soltas entre passado e presente e encaminha a resolução dos conflitos que atravessaram gerações. Não restam dúvidas acerca da escrita competente e original de Miriam Alves quanto ao resgate daquilo que foi perdido e tomado dos afro-brasileiros. Já o leitor, além de desfrutar de uma narrativa envolvente, sai dela enriquecido pelo conhecimento adquirido acerca da história e espiritualidade afro-brasileiras.

Belo Horizonte, dezembro de 2019.

Referências

ALVES, Miriam. Maréia. Rio de Janeiro, Editora Malê, 2019.

EVARISTO, Conceição. ‘A escrita é exercício em desespero. Um lugar de vingança', diz Conceição Evaristo. Entrevista concedida a Marcia Maria Cruz. Estado de Minas, Belo Horizonte, 2019. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2019/11/01/interna_pensar,1097478/a-escrita-e-exercicio-em-desespero-diz-escritora-conceicao-evaristo.shtml. Acesso em: 07 de out. de 2019.

 


* Ariele Santos é Graduanda em Letras Licenciatura, com ênfase em Português, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Bolsista de Iniciação Científica (CNPq) do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA.


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