FIO DE SILÊNCIO

Aidil Araújo Lima

Se o avô estivesse no mundo dos vivos a soltaria do retrato só com palavras, mas a mentira da vida é nos fazer acreditar que podemos costurar esperanças, ela pensava enquanto alinhavava os sonhos de outras mulheres. A tarde mornava, o olhar desincerto lutava para enfiar a linha na agulha. Amparou os pensamentos nos tecidos, debruçando a vista na janela. Esfregou os olhos pensando ser delírio, olhou novamente. A menina ainda brincava de esconde-esconde, saindo do cemitério dos pretos, correndo para o cemitério dos brancos, depois ela entra na Igreja do Rosarinho, tão cheia de vigor que se desconheceu. Só se reconhece quando a menina lhe acena e sorri. A memória retrocede em cambalhotas de quando era criança, só pelo prazer de ver a cidade virada de cabeça para baixo de lá do alto. Ela não lembra que dia aconteceu a chegada dos turistas, curiosos com o cemitério de brancos e negros, um em frente ao outro. Só recorda que eles a escolheram para tirar foto junto dos túmulos, diziam-lhe ser uma negra linda. Ela se orgulhou e ficou paradinha ao lado de várias catacumbas, a imagem se impregnando da alma dos antepassados. Depois desse dia nunca mais foi a mesma, sua alegria ficou presa nos retratos. Largou mão do estudo, ia para a casa da madrinha no Largo d’Ajuda aprender a costurar. Pensava que podia descosturar sua vida do retrato e coser outra com agulha e linha. Quando o sol esfriava voltava para casa, descia a ladeira e corria para o rio Paraguaçu, gostava de ver a imagem refletida na água, nesse instante a alegria presa no retrato se soltava e ela ria. O tempo foi curvando seu corpo sobre as linhas, os seios encolhendo dando espaço ao corpo. As moças bonitas que chegavam com panos de seda, só lembravam o retrato que os turistas lhes prometeram mandar. Enquanto isso um fio de silêncio costurava sua vida. Certa vez, estava marcando o vestido nos contornos do corpo de uma mulher em frente ao espelho, percebeu seu corpo estragado. Pegou umas contas amarelas largadas num canto, foi enfiando na linha sem nenhuma certeza, só queria matar o tempo, enganar o pensamento. Sentiu um arrepio no corpo. Deus benza. Veio a ideia de pegar ervas de Oxum e lavar o corpo, a água escorreu desenrugando a pele, desembruçando a alma, até vontade cantar nasceu na garganta, entoou uma música antiga, que sua avó cantava para Oxum. Como é a vida – pensava enquanto descia as escadas em frente ao rio. – Coseu tanto pano, e a esperança estava era nas contas. Inespera o que vê. Os retratos. Todos. Boiando no rio. Rapidamente sua imagem se dissolve. Deu vontade de dançar, de ser mulher tocada, de sentir coisas nunca sentidas antes.

(In: Mulheres sagradas, p. 39-40)

 

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