Ouvindo vozes
Tinha uma luz radiante que vinha depois do fim
E ouvi uma voz sussurrando maledicências,
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
Fui mesmo assim,
Vai ver que a voz é que não era pra mim.
Tinha caneta, lápis e papel pra colorir
E ouvi uma voz sussurrando maledicências,
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
Fui mesmo assim,
Vai ver que a voz é que não era pra mim.
Tinha um trabalho, horário, conta e dim-dim
E ouvi uma voz sussurrando maledicências,
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
Fui mesmo assim,
Vai ver que a voz é que não era pra mim.
Tinha família, filhos bonitos e pretins
E ouvi uma voz sussurrando maledicências,
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
Fui mesmo assim,
Vai ver que a voz é que não era pra mim.
Outra luz e um aviso; PERIGO!
(PARE, NÃO PASSE DAQUI!)
A voz calou e eu não sabia como agir
Pensei comigo, se havia chegado até ali
Não custava nada insistir.
Fui em frente e comecei a ouvir gritos:
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
E agarravam meus pés, e tentavam me impedir
Eu andava mais rápido e mais forte
Com pressa de chegar, cuidado para não cair.
E gritavam ao meu redor:
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
E eu repetia pra mim mesmo:
Esses gritos não são pra mim.
Minha esposa, meus filhos, meus amigos
Tantos que fiz pelo caminho
Correram pra me acudir.
E gritavam com eles e comigo:
Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.
E eu repetia pra mim mesmo:
Esses gritos não são pra eles,
Não são pra mim.
Até que cheguei.
Cansado, machucado, mas feliz
Eu era rei
E alguém perguntou:
Tantos insultos, como pôde resistir?
Respondi: Aqueles gritos nunca foram pra mim.
As vozes calaram
E as mãos que me seguraram
Tiveram que me aplaudir.
(Helton Fesan; Cadernos Negros vol.37; p.118-119)