A história

 

Um dia estava eu no escritório do Sérgio, vendo alguns detalhes da última reunião de avaliação da participação dos grupos negros nas últimas eleições, quando, para surpresa nossa, entra Paulo Fusquinha.

Admirados dele estar ali nós estávamos. Ficamos mais ainda quando ele disse que queria levar um papo sobre aquelas idéias e aquelas coisas que vínhamos fazendo por aí, há algum tempo. Paulo Fusquinha querendo falar de Movimento Negro? Foi uma enorme interrogação.

Paulo sempre procurou ficar distante de tais coisas, mesmo dizia que não tinha nada a ver, estava noutra, para ele as coisas eram de outra forma. Hoje parece que a terra tremeu. Tremeu forte e ele estava ali, confessando nunca ter entendido nossos pontos de vista, mas hoje e disposto a sentar e discuti-los. Aliás, ele tem uma censura válida, sobre a nossa falta de clareza, sobre a complicação de nossos discurso, a inconstância de nossas ações. Critica também que as divulgações nunca ultrapassaram os cantos de uma dúzia e meia de eleitos, que era difícil de entender.

Paulo Fusquinha, nome e sobrenome da periferia do Rio de Janeiro, nas altas sociedades, do túnel de Copacabana para baixo, conhecido como Negrão, Paulão, Paulo Negrão. Figura popular de dois mundos, tanto na Zona Norte, por ser filho de compositor conhecido, tanto na Zona Sul, pela passagens de braços dados com damas das altas nas altas badalações.

Temos que ver que sociedade no Rio não é como na Bahia, onde o senhor doutor e banqueiro tem pele morena e cabelos ondulados, mas também não é do Rio Grande do Sul, onde os olhos verdes marcam o tipo local. Tem outras peculiaridades, como a da transformação dos fatos que são secretos, nos meios paulistas em atos de proeza e nova forma de “liberalismo” carioca. No Rio, a alta sociedade cultiva o traço marcante do carioquismo urbano. O Rio faz parecer valer tudo, quando não vale nada, nada mais que uma moda, um momento, e mostra por vezes o outro lado do seu pensamento retrógrado e conservador. Temos o exemplo da crítica que o governador sofreu por ter uns pretos no seu secretariado. A Dona Liberal disse: _ Bem aqui, no Rio de Janeiro, que é o cartão de visita do Brasil.

Paulo Fusquinha, filho de funcionário público, que ficou no Rio de Janeiro e não quis transferência para Brasília. Não entrou na tal história de salário dobrado somente para não ficar longe do Rio. Paulo, garoto criado com muito zelo, foi para a faculdade, saiu bem diplomado e mesmo pós-graduado. É doutor não por ter anel no dedo, paletó e gravata, mas porque defendeu tese. Através de concurso, Paulo arranjou um empregão no banco do estado. Aliás, esta história de concurso abriu uma brecha para participação do negro em algumas instâncias. Em certos hospitais, a gente só vê negro trabalhando, não é por nada, não por discriminação, pura casualidade, onde existe concurso como meio de acesso, a coisa muda, a casualidade desaparece e um outro doutor preto a gente encontra. Mas o concurso não é tudo, o diabo ainda é a tal universidade. Ainda 99% dos alunos são brancos, pura casualidade. Um por cento perdido no leite, às vezes se leitifica, mesmo que fique leite azedo. Mas isto é outro papo, tem gente que diz que é reflexo do poder aquisitivo. Eu fico com as minhas dúvidas. As mais esclarecidas não concordam e mesmo que fosse isto, então de onde vem a novela da falta de poder aquisitivo? Mas Paulo, como íamos dizendo, foi o primeiro morador do bairro a ter um fusca e rapidinho o apelido pegou e, logo em seguida, ele foi morar em Botafogo, passando pouco tempo depois para um pequeno apartamento em Copacabana. Pequeno, minúsculo, mas em Copacabana. Até a mãe dele falava bem alto para todo mundo da escola de samba escutar: _ Meu filho Paulo mora em Copacabana, Zona Sul. Era mais um liberto no 13 de maio.

Na Zona Sul, ele tornou-se cartaz e fascinação das aventureiras senhoras da alta roda. Elas se revezavam e rolavam pelas aventuras com Negrão. Era fama contada e recontada em tom de segredo ou fofoca. Por outro lado, toda vez que a “turma” estava a fim de dar uma chegada na escola, a conversa era a mesma: _ Negrão, você nos leva à escola de samba? Negrão era proteção, o sinal aberto para serem recebidos, para estar no camarote. Com gente comum não tinha graça ir ao samba. O negócio era aparecer. Outra razão é que nas idéias preconcebidas, a barra era pesada e precisavam de um guarda-costas autorizado no pedaço. O Negrão.

No escritório do Negrão, virava, mexia, era invadido por uma coroa, soltando plumas, falando alto, dando enormes gargalhadas, batendo forte no peito do cara com assinatura de uma posição aberta. Negrão, trânsito livre num semi-círculo estreito. Apesar de tudo, examinando detalhadamente os fatos, não era de seu cartaz que vinha seu poder, sua autorização de estar ali onde outros pretos e pretas só estavam como garçons, sambista ou prostituta. Seu passe livre vinha a sua relação com homens, homens de negócios, paletó, gravata, dinheiro, muito dinheiro. Lógico que esta relação nunca foi admitida, contada ou contabilizada no seu exato valor.

De Negrão a Paulo Fusquinha eram dois mundos. Num, muito sorriso, muita graça, sempre amável, solícito, pronto para tudo. Negrão sempre foi elogiado e apologizado pela sua cultura, pelo seu talento. Paulo Fusquinha uma história do passado a ser esquecida. Não tinha mais compromisso com os Santos, não vinha mais à casa das tias, raramente visitava a mãe. Aparecia no bairro às vésperas do carnaval, acompanhando gente bem nutrida e brilhante que ofuscava qualquer dos destaques das alas.

Ah, claro, para ele, tudo aquilo era sonho. Nada de errado, nada a ser questionado. Sobretudo as concessões abertas. Fazia delas um modo de vida, era ele seu herói preferido, o homem bonito que de hora em hora se olhava no espelho, repartia o cabelo, consertava o bigode. Guarda-roupa com mais de 30 camisas, duas dúzias de calças, uma de sapatos, tudo o que permitia conservar uma elegância fora de série.

Negrão era, volta e meia, procurado pelos homens de negócios à procura de informações, conselhos econômicos e coisas do gênero. Não pouco comum era entrar em seu escritório o diretor de empresa eufórico, com uma garrafa de uísque debaixo do braço, dizendo: _ Negrão, esta é para comemorar a dica que você me deu sobre aquele negócio. Ou então: _ Negócio da China, rapaz, você me arrumou. Após o mesmo gosto democratizante, a mesma frase: _ Negrão, você é um cara legal, gosto de você. Por vezes, o disco mudava, cara legal era trocado por grande sujeito, boa gente, amigão e outros sinônimos. Estes favorzinhos asseguravam a passagem de Paulo Fusquinha a Negrão entre os homens da alta soçaite.

Movimento Negro, como vocês devem ter percebido, não passava de uma tremenda chatura para Negrão. Identidade racial, identidade, protesto, problema de comunidade era um discurso de neguinho complexado procurando desculpas. O negócio, segundo ele, era todos se mirarem no seu exemplo, estudar e vencer na vida. Ele dizia quando questionado:_ Façam como eu... Em parte ele tem razão, pois muitos são demovidos pelas barreiras e dificuldades, caem no desalento, num meio marasmo e perdem a luta constante pela dignidade do homem, mas não é exatamente isto que Negrão pensava, nem exatamente está no centro da questão.