Fato comum

 

Esta história não contém ingredientes novos, ela repete o dia a dia. Dia a dia que aqui nos serve de relato, para fixarmos algumas idéias, para tentarmos, nos nossos exercícios mentais, mais facilmente precisar a realidade. A realidade num sentido muito estreito, de um grupo estreito de pessoas que vivem as frustrações de uma fantasia, que não conseguem transformá-las nas fadas mágicas, mas sempre na bruxa a envenenar a maçã. Apesar do gosto amargo deste veneno, insistem em continuar experimentando-o. É amargo, ruim, mas é sempre parte da fantasia (ou do pesadelo). Pierrôs e Colombinas perdidos num carnaval que não dura apenas quatro dias, carnaval longo que atravessa uma vida.

Tratando de uma história diária, banal, ela poderia ser contada através do jogador de futebol famoso que nos dias de glória é destaque nos bailes do municipal e que, antes, assutava ou fazia medo aos seus atuais “amigos”, quando chegava na porta de carro e dizia: _ Doutor, quer que eu tome conta?

É bom dizer, de antemão, que não temos a mínima intenção em criticar ou julgar a ascensão social de ninguém. Aliás, sob certos termos, somos até muito favoráveis. Também não vamos confundir, comer bem e viver em casa decente, com as tais atitudes burguesas, vindas de um pensamento deliberadamente classista e espoliador. Vamos ficar na superficialidade dos fatos e olhar apenas o preço da ilusão de integração social de certos pretos “realizados”.

Saindo do jogador de futebol, pensamos em dar uma olhada através do casal de amigos que hoje faz terapia de grupo só porque numa dessas igrejas de bairros de alta sociedade foram confundidos com... Eles moram há muito tempo no tal bairro, são freqüentadores assíduos há muitos anos da tal igreja, devotos caridosos e grandes colaboradores de todas as obras paroquiais. Um dia, uma outra madame devota lhes perguntou empregados de quem eles eram mesmo? Daí a crise da cor. Mas esta história é muito cruel. Vamos procurar outro exemplo mais falante, com mais charme poético, com maiores sutilezas. Poderia ser mais suave deixar os fatos na voz encantadora e na vivacidade da pretinha inteligente e graciosa. Ela que, a partir dos amigos da escola, se viu sempre bem aceita numa camada de moços ricos. Jamais fora esquecida para uma festa, viagens ou reuniões. Benquista, mas nunca amada. Estranho, mas nunca nenhum dos rapazes da turma foi seu namorado. Todos a queriam bem, mas jamais ganhou um beijo de amor, nem saiu pelos passeios de mãos dadas à procura deste sabor juvenil dos namoricos apaixonados. No entanto, as pessoas têm respostas fáceis à sua inconsciente cegueira. Justificava ela a sua solidão por ser tímida e conservadora, neste setor. Isto afasta os rapazes. No entanto, a repressão da tristeza virou uma pequena neurose de detalhes, um elenco de concessões, um grito silencioso.

Certo é que o grupo ora incorpora, ora se contradiz. Aceita. Entretanto, tem limites. Até os limites da família. Por vezes, além dela. No limite, aí ele manifesta sua verdade e trai a sua concessão individual com ela.

A exceção, que jamais se tornou regra, deixa de ser exceção.

Estamos quase contando o fato comum pela voz forte da nossa menina querida. Ela, como os anteriores, não pode contar essa história tão bem como Paulo Fusquinha. Não pode contar, pois ainda não fez sua autocrítica tão bem e clara como ele.

O fato comum será contado tal qual Paulo Fusquinha nos contou.

 (In Negros na noite, p. 9-14)