Festa para o nascimento de Carolina de Jesus e Abdias Nascimento

 Cidinha da Silva

Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento nasceram no dia 14 de março de 1914, em dois interiores distintos, ele, em Franca, São Paulo, e ela, em Sacramento, Minas Gerais. Em comum, o fato de terem sido desbravadores. Carolina, uma escritora de pouca escolaridade, origem popular. Abdias, de mesma origem, tornou-se intelectual versátil e artista de variada expressão: poeta, dramaturgo e artista plástico. Ambos representaram o Brasil no mundo internacional das letras.

Quando saiu de Minas, em 1930, Carolina fixou-se em Franca (cidade de Abdias), onde foi trabalhadora doméstica por sete anos. Só em 1937, depois da morte da mãe, Carolina muda-se para a capital paulista. De novo foi trabalhadora doméstica, migrando a seguir para a coleta de papelão.

Abdias, em 1930 já era técnico em contabilidade e alistou-se no Exército com o objetivo de transferir-se para São Paulo. Em 1936 mudou-se para a capital fluminense e anos mais tarde formou-se em Economia pela universidade do Estado do Rio de Janeiro. A intensa vida cultural negra carioca, a convivência com artistas de vários lugares do mundo, leva-o a criar o Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944, um espaço criativo e dramatúrgico para os profissionais negros das artes cênicas.

Em São Paulo, Carolina mantinha um diário que originou seu livro mais famoso, Quarto de despejo: diário de uma favelada, editado por Audálio Dantas. A obra foi sucesso estrondoso. Há registros de que foram vendidos 600 exemplares na noite de autógrafos, 10 mil exemplares na primeira semana e 100 mil exemplares em um ano. Para alguns pesquisadores renomados, o fenômeno de vendas comprova, prioritariamente, o papel decisivo da mídia no sistema literário, já naquela época, ao promover certos autores e obras. Talvez, para estes analistas tenha menos importância o contexto sócio-político do Brasil de 1960, no qual havia grande ebulição cultural e política, coroada pela curiosidade (mórbida, em muitos casos) em conhecer detalhes da vida de uma favelada.

Carolina foi gerada e destruída pela indústria cultural em curto espaço de tempo. Escreveu livros de memória e poesia. Em vida publicou Casa de alvenaria (1961), Pedaços da fome e Provérbios (1963), além de Quarto de despejo (1960). Após seu falecimento foram publicados: Um Brasil para os brasileiros (1982), Diário de Bitita (1986), Meu estranho diário e Antologia pessoal (1996).

Abdias foi o ativista negro mais longevo da História do Brasil, agregando produção artística e política fundamentais. Em sua vultosa obra destacam-se: a organização da Convenção Nacional do Negro (Rio de Janeiro) nos anos de 1945 e 1946. Em 1950, numa parceria com Guerreiro Ramos e Edson Carneiro, realizou o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Foi vice-presidente nacional do PDT, deputado federal e senador por este partido. Criou o conceito de Quilombismo: “reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo. Enfim. Reconstruir no presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do passado”.

 

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Carolina Maria De Jesus na UFMG:

Entrevista com o professor Marcelino Rodrigues da Silva

O Centro de Estudos Literários e Culturais – Acervo de Escritores Mineiros, através de seu diretor, prof. Marcelino Rodrigues da Silva, informa que já está disponível para consulta, em formato digital, a coleção dos cadernos da escritora Carolina Maria de Jesus, recebida em doação do professor José Carlos Sebe Bom Meihy, em novembro de 2014. A rápida conversão desse raro e extenso material, recebido na forma de cópias microfilmadas, para o formato digital se deve a uma parceria entre o CELC-AEM e o Arquivo Público Mineiro, que possui moderno equipamento para este fim. Abaixo, entrevista com o professor. 

literafro: como se deu a cooperação com o Arquivo Público Mineiro?

Marcelino Rodrigues da Silva: Mostrando seu comprometimento com o objetivo de contribuir para a preservação da memória histórica e cultural mineira, o APM se responsabilizou pela digitalização do material, o que foi feito com grande competência e presteza por aquela instituição. Nosso agradecimento, portanto, ao APM, aos seus funcionários e à sua Superintendente, a Profa. Vilma Moreira dos Santos, por essa inestimável contribuição. Reiteramos, também, nossa gratidão ao Professor Bom Meihy, pelo desprendimento e interesse pelo bem coletivo, manifestados no ato da doação da coleção ao CELC-AEM. 

literafro: pelo que se tem de informação, o material doado contém aproximadamente cinco mil páginas manuscritas, contendo rascunhos de romances, contos, peças de teatro, poemas e letras de música. Tudo isto está acessível para consulta?

MRS: Sim, o material está disponível para consulta no formato digital, nas dependências do AEM. Por isso a digitalização foi tão importante. A consulta ao material digitalizado é muito mais ágil, com as facilidades permitidas pela tecnologia. Dada a extensão desse conjunto de escritos, foi um passo fundamental para facilitar o trabalho do pesquisador. 

literafro: que procedimentos deve adotar o interessado para a pesquisa desse material?

MRS: As vistas ao AEM têm que ser marcadas com antecedência, observando um prazo mínimo de 48 horas, para que possamos atender os pesquisadores com a devida atenção. É importante que o pesquisador informe, também com antecedência, o tema da pesquisa e os documentos que pretende examinar. As informações para a marcação das visitas (e-mail e telefone para contato), bem como sobre as normas de acesso, podem ser obtidas no nosso site: <www.letras.ufmg.br/aem>. 

literafro: os rascunhos digitalizados estão disponíveis no AEM todos os dias? Quais as condições de acesso?

MRS: O horário de funcionamento para atendimento externo é de segunda a sexta, de 9 às 12 h e de 14 às 17 h. Para a consulta aos documentos do acervo, é obrigatório o preenchimento do Formulário Para Registro da Pesquisa, que é fornecido ao usuário. Não é permitido o empréstimo domiciliar dos livros e documentos do Acervo e os materiais são consultados sempre com o acompanhamento de um funcionário da casa. Os documentos não podem ser reproduzidos por meios mecanográficos ou similares. O pesquisador tem a responsabilidade de zelar pelo manuseio e conservação dos documentos e, naturalmente, não é permitido fumar e lanchar dentro do Acervo. É importante frisar, ainda, que o uso do material está submetido à legislação vigente, especialmente no que diz respeito aos direitos autorais e de imagem. Não há nenhuma forma de cessão de direitos pelo CELC-AEM. 

literafro: o senhor já visitou o Vida por escrito - Portal bibliográfico de Carolina Maria de Jesus?

MRS: Sim, ele está disponível no endereço <www.vidaporescrito.com> e lá pode ser encontrada uma grande quantidade de  informações sobre a vida e a obra da escritora, tais como sua biografia e bibliografia, sua fortuna crítica, as instituições custodiadoras de seu acervo etc. O site é uma realização do pesquisador Sergio Barcellos (a quem agradecemos, também, a doação de materiais para a Coleção Carolina Maria de Jesus, no AEM), como parte do projeto “Vida por Escrito  - Organização, classificação e preparação do inventário da obra de Carolina Maria de Jesus”, contemplado pelo Edital Prêmio Funarte de Arte Negra, categoria Memória, em 2013.

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Denúncia e reflexão no Quarto de despejo

Elisângela Lopes*

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

Carolina Maria de Jesus
Quarto de despejo

A produção escrita de Carolina Maria de Jesus pode ser lida e entendida como instrumento múltiplo. A autora fazia da palavra uma arma contra o preconceito, pois, quando era insultada pelos moradores da favela, respondia: “vou colocar isso no meu livro”. Nesse sentido, sua escrita funcionava ainda como uma tentativa de instaurar a ordem, mesmo que mínima, naquela terra de ninguém. Conforme ressalta Carlos Vogt (1983) os diários da escritora eram “uma espécie de livro de São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar os comportamentos ‘errados’ de seus vizinhos”. (1986, p. 210). Nestes cadernos, Carolina descrevia o que presenciava pelas ruas de Canindé: as brigas, os assassinatos, a prostituição infantil, a miséria, a fome, o descaso social, enfim, a precariedade da vida. E enquanto registrava seu desabafo, sonhava com a publicação dos seus textos.

Além de veemente denúncia, a escrita de Carolina funcionava também como elemento diferenciador entre ela e os demais habitantes da favela. O fato de autodenominar-se escritora, mesmo antes de ter seu livro publicado, devia provocar na vizinhança um misto de inveja, desprezo e até mesmo de respeito. Vogt sintetiza o estranhamento constante da autora diante da realidade de miséria e descaso na qual estava mergulhada e de onde se distancia depois da publicação do livro:

O repúdio da autora à situação que se encontrava é visceral. Da mesma forma e na mesma medida é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos. O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo que vivia. A esperança que deposita nessa experiência é grande”. (1983, p. 211)

O sonho de ver seus escritos publicados aconteceu em 1960, quando veio a público Quarto de despejo, fruto da recolha dos 35 cadernos que a autora mantinha guardados como tesouros, em seu barraco. Apesar do sucesso alcançado pela primeira edição desse livro, a obra de Carolina Maria de Jesus foi alvo de inúmeras críticas. Segundo ressalta Maria Lúcia de Barros Mott, no artigo “Escritoras negras: resgatando a nossa história”, alguns críticos “olham com reservas a obra de Carolina, negando inclusive a autoria de seus livros, atribuindo Quarto de Despejo ao jornalista Audálio Dantas. Esta não é a primeira vez que o livro de uma escritora negra tem a autoria atribuída ao apresentador da obra”. (1989, p. 8) Mott ainda pontua como marca do desinteresse pela obra da autora o fato de Diário de Bitita – livro de memórias – ter sido publicado primeiramente na França, em 1982, e apenas quatro anos depois ter sido editado no Brasil.

Outra marca dessa indiferença, apontada por Alfredo Boneff (disponível em: <http://www.afirma.inf.br/textos/cultura_julho.rtf>) é o fato de a obra da autora ser mais estudada nos países estrangeiros do que no Brasil. Para atestar esse fato, basta verificar a numerosa fonte de pesquisa sobre a escritora disponível na internet e constatar que a maioria dos textos constam em inglês ou espanhol. José Carlos Sebe Bom Meihy assim comenta a indiferença crítica e de público legada à produção dos escritos de Carolina:

O alcance de seu livro mais importante, Quarto de despejo, colocado a público em 1960, projetou-a como sucesso inquestionável, ainda que fátuo marcante. A glória de Carolina era perturbadora, mas, dadas as sequentes ondas de apagamento de sua produção publicada, o sucesso funcionou-lhe como contraponto intermitente no céu nacional prenhe de literatura de mulheres bem nascidas. Neste sentido, o aparecimento de Carolina no mundo reconhecido e público dos brancos era uma licença democrática. O discreto charme da burguesia nascente, contudo, não continha o mau cheiro de lixos alimentadores de misérias escondidas em favelas que inchavam as promessas de megalópoles. Explicitação disto é dada pelo tratamento crítico-literário e historiográfico legado à obra da escritora que, depois de figurar como ‘estrela de um novo tempo’, foi apagada, sendo esquecida porque sua história se desbastou entre nós arredondando diferenças. Enfim, a lógica do tempo mostrou-se senhora da razão: o silêncio colocou todas as coisas (e pessoas) no lugar devido. (Apud JESUS, 1996, p. 9).

Em consequência desse desprezo cultural e social, a produção literária de Carolina Maria de Jesus permanece desconhecida do grande público. Ainda mais desconhecida é a sua produção poética, organizada por Meihy em primorosa antologia que conta ainda com um artigo do organizador, um ensaio de Marisa Lajolo e um comentário de Armando Freitas Filho. Em análise dos poemas da autora, Lajolo comenta que neles:

comparecem [...] não apenas o lirismo dos amores não correspondidos, a queixa do homem e da mulher desamados e o lamento dos braços desencontrados do coração... Neles há também espaço para a decifração do sentido da vida, da aventura do ser humano sobra a terra, aventura esta muitas vezes transcrita em estereótipos e clichês e cifrada no cotidiano amargo dos pobres, onde, contra a plenitude física e metafísica, conspiram a falta de dinheiro, a prisão, a embriaguez, a violência, as relações sociais degradadas e a morte. (Apud JESUS, 1996, p. 9).

Quarto de despejo é um livro marcado pelo retrato sem retoques de uma realidade de miséria e de descaso social. O cotidiano da favela é descrito de uma forma particularizada, tão particularizada que só poderia ter sido feita por alguém que lá vivia. Carolina conjugava o seu ofício e única forma de sustento, catar papel pelas ruas da cidade, com a realização da escrita. Enquanto se debruçava nos seus cadernos de anotações, fugia da realidade de miséria na qual estava inserida e paradoxalmente dava a essa realidade um caráter documental. Para a autora, escrever era um ato epifânico e, ao mesmo tempo, um processo de reflexão sobre a vida dos marginalizados: “[...] eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”. (JESUS, 1976, p. 30). A rotineira e incansável luta pela sobrevivência; o desejo da morte como única saída; o sonho de ascensão social que, para a autora, resumia-se na aquisição de uma casa de alvenaria (desejo que realizaria com a venda do segundo romance); o futuro dos filhos e a constante presença da fome são “fantasmas” com os quais (sobre)vive a autora e enquanto presenças recorrentes na vida, tornam-se recorrências também no seu Quarto de despejo.

Ao fazer uma reflexão sobre o momento presente, a autora volta-se para o passado histórico, marcado pela escravidão e, de uma forma crítica, confere à abolição uma nova roupagem: os negros que antes se encontravam presos às amarras do sistema escravocrata, hoje se encontram presos aos grilhões da miséria e do descaso social. Ao anotar suas impressões sobre o 70º aniversário da Lei Áurea, conclui: “e assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 1976, p. 29).

A produção ficcional de Carolina Maria de Jesus é merecedora do nosso respeito, reconhecimento crítico e admiração pelo que representa: fotografia das margens de um brasil que o Brasil prefere não ver – representação de “Um Brasil para brasileiros”.

Referências

BONEFF, Alfredo. “A escritora esquecida: livros de Carolina de Jesus não são mais lidos”. Disponível em: <http://www.afirma.inf.br/textos/cultura_julho.rtf>.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

MEIHY, J. C. S. B (Org.). Antologia pessoal: Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

MOTT, Maria Lúcia de Barros. Papéis Avulsos 13. Escritoras Negras resgatando a nossa história. Rio de Janeiro: CIEC – Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos/UFRJ, 1989.

OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro-Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 1998. p. 60.

VOGT, Carlos. “Trabalho, pobreza e trabalho intelectual (O quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus)”. In: SCHWARZ, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 204-213.

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* Elisângela Aparecida Lopes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas - IFSULDEMINAS. Coautora do Volume 3 da Coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2Reimpr., 2021), e também de Literatura afro-brasileira - 100 autores do século XVIII ao XXI (2a ed., 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2a ed., 2019). 

Carolina Maria De Jesus: Brilha Que Te Quero Estrela

Sueli Meira Liebig*

 

RESUMO

Neste ano de 2014 – em que comemoramos o centésimo aniversário de nascimento da escritora mineira Carolina Maria de Jesus, pensamos neste trabalho como forma de melhor ensejar a divulgação da sua obra e até mesmo da sua emblemática figura no meio acadêmico e, portanto fazer justiça a uma mulher extraordinária, cuja vida e obra – igualmente surpreendentes, contraditórias, complexas – deixaram marcas na inquieta geração dos 1960/1970. Mais conhecida nos Estados Unidos do que no Brasil, Carolina ainda hoje é estudada nos mais importantes departamentos de “Black Studies” dos cursos de graduação e pós-graduação americanos, embora entre nós o seu valor como escritora ainda não tenha sido devidamente reconhecido. Negra, favelada e semialfabetizada, a autora seria mais uma das muitas mulheres afônicas da classe C, se não fosse por um detalhe: o seu amor pela literatura e a ferrenha vontade de denunciar, através da sua escrita confessional, os abusos e preconceitos sofridos por ela e por outros favelados, fazendo-se porta-voz dos desvalidos que ocupam, nas suas palavras, “o quarto de despejo da sociedade”.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura negra, Carolina Maria de Jesus, Crítica social.

 

Abordando a problemática racial/social/sexual pelo viés autobiográfico, a escritora Carolina Maria de Jesus conta em seus “diários” sua infância e seu sofrimento em meio ao caos da desordem social do favelado, numa narrativa fiel da vida de um ser humano triplamente discriminado por ser negra pobre e mulher. Menosprezada pela grande maioria da crítica como praticante de um tipo de subliteratura, esta mineira de Sacramento (MG) teve a sua obra lançada à margem, senão mesmo excluída do milieu literário nacional: chamaram-na de testemunho, diário pessoal, relato próximo a um registro antropológico e até mesmo de resultado de um modismo em que ex-domésticas semialfabetizadas, pobres e faveladas, resolvem contar as suas terríveis experiências com o racismo, a opressão e o sexismo, em meio a uma sociedade que nem mesmo as reconhece como seres humanos. O mercado editorial brasileiro preferiu manter a obra de Carolina na esfera do pessoal, uma vez que todos os seus livros utilizam a forma de diário.

Para autoras como ela, entretanto, o diário é a única forma de expressão literária, pois desconhecem a técnica da representação que emprega - como diria Luiza Lobo, “símbolos e alegorias para captar a existência a partir de uma produção imaginária da linguagem” (LOBO, 1993, p. 128). Sabemos que ficção e realidade não se opõem, pelo contrário, estão inter-relacionadas. Talvez por isto mesmo o primeiro livro de Carolina, Quarto de Despejo (1960) tenha tido o reconhecimento e a repercussão internacional de público e de crítica, figurando até hoje nos Estados Unidos entre as obras mais expressivas da chamada “literatura documentária de contestação” e tenha se tornado um best seller, com uma tiragem de mais de um milhão de cópias em todo o mundo. A fortuna crítica da obra desta ex-catadora de lixo que escrevia seus diários em pedaços de papel dalí retirados, paradoxalmente, percorreu o caminho inverso: repercutiu primeiro no exterior para depois tornar-se conhecida (não como deveria) entre nós. Tentando resgatar o lugar merecido da obra de Carolina no Brasil, o historiador, escritor e professor Joel Rufino dos Santos, acaba de lançar um primoroso trabalho de pesquisa sobre a vida e a obra de Carolina: Carolina Maria de Jesus: uma Escritora Improvável (GARAMOND, 2009, p. 165). A história é contada em flashback e mescla momentos da sua própria experiência de vida com a vida política do Brasil entre os anos 1950 e 1970 e os relatos feitos por Carolina sobre os mais diversos temas que afligiam a classe trabalhadora durante a Ditadura Militar, sugerindo assim uma visão mítica da autora que remete ao imaginário coletivo.

A narrativa de Jesus tem força e autenticidade; é capaz de surpreender e comover com seus textos às vezes ingênuos, outras quase bizarras, mas eivados de uma perspicácia notável no trato com os problemas humanos. Denotando um espírito evoluído e um ser humano cheio de sonhos, às voltas com a dureza e a indiferença da sociedade, sua obra denota claramente a esperança de dias melhores. Tais diários também expressam uma cosmogonia bastante peculiar; suas experiências, frustrações e opiniões – desde a singela lembrança da criança faminta que prova cocada em lata e pão com sardinha pensando ser um manjar, até as reflexões sobre governos, sobre o bovarismo alienante da pequena burguesia e sobre as revoluções. A autora faz uso de uma linguagem originalíssima, que agrupa sob o mesmo patamar um vocabulário rico, estruturas de extrema correção gramatical e construções linguísticas inusitadas – reflexo da dualidade entre a cultura oral – sempre enfatizada em seus livros – e a instrução adquirida nas leituras como autodidata.

É curioso notar, entretanto, que Carolina não teve a menor noção do seu êxito e do que se passava em sua volta. Com os 30.000 exemplares da tiragem inicial vendidos em São Paulo em apenas três dias, o sucesso editorial logo viria e ela iria superar – com exceção de Jorge Amado, que publicou em 55 países – todos os escritores brasileiros em termos de conhecimento no estrangeiro. “Representando um segmento social que começava a ameaçar o establishment, ela emblemava a luta de classes segundo o momento cabível e audível naquele determinado contexto político” (LIEBIG, 2009, p. 38). Poderia perfeitamente (por ser negra, mulher e favelada) ter sido assumida pelas esferas urbanas dos movimentos sociais dos anos 60 como símbolo do tão almejado poder de ascensão das massas, mas não foi. Ao contrário de outras escritoras da época que só tenderam a crescer, como as já consagradas Cecília Meireles, Rachel de Queirós e Lígia Fagundes Teles, o tempo admitia o surgimento destas que hoje são consideradas os grandes expoentes da cena literária feminina nacional: Nélida Pinõn, Clarice Lispector e Henriqueta Lisboa, dentre outras.

Seria de se supor que Carolina, também escritora mundialmente famosa, estivesse apta a fazer parte desta constelação como exemplo diferenciado do modo de produção de texto. Não foi assim. Isto sugere o preconceito e a discriminação embutidos na cosmogonia da elite nacional da época que, através da redefinição constante do chamado código culto, elide uma participante que apesar da sua obra originalíssima deixou de ser considerada. Devido à limitação educacional da autora, (antiga 2ª série do curso primário) seus diários, reunidos em primeira mão pelo jornalista Audálio Dantas, não têm nenhuma preocupação artística. São apontamentos escritos nas horas livres de uma trabalhadora, uma mulher negra nascida no começo do século, criada na miséria e vítima constante do preconceito. Apesar disto ou justamente por isto, sua sensibilidade, a consciência que demonstra de si mesma enquanto negra, mulher e indigente, aliada à curiosidade que nutre em relação ao mundo que a cerca, façam da obra de Carolina mais que um testemunho. Após o sucesso, lançou outros livros e foi publicada postumamente. Ganhou dinheiro com a literatura, mas morreu com poucas posses, em 1977. Por inseparável quer seja da história pessoal da autora, seus escritos deixam-nos entrever também outra face da história, a protagonizada por todos aqueles que a constroem, sem que possam, contudo, escrevê-la.

A escritora norte-americana Sapphire admite que deve a a Quarto de Despejo parte da construção de sua personagem Preciosa, protagonista de Push (1996) e que inspirou o filme de mesmo nome cotado ao Oscar em 2010. A autora revela que dava um curso baseado em diários de mulheres, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Frida Kahlo, Carolina Maria de Jesus. Os das brancas eram introspectivos. O dela falava de classe, raça, luta por comida para os filhos. No enredo de Push Preciosa e suas colegas são alfabetizadas com a ajuda deste método: compartilham com a professora cartas escritas no diário. "Fico impressionada porque os brasileiros dizem que nunca ouviram falar de Carolina de Jesus ou de seu livro. Nos EUA você compra facilmente”, diz ela a Fabio Victor, da Folha de São Paulo. (VICTOR, 2010).

Igualmente fascinado pela obra e pela história pessoal desta controvertida mulher/personagem/escritora, Joel Rufino confessa nas primeiras páginas do livro que “sempre quis escrever sobre Carolina Maria de Jesus, sua ascensão e queda” (SANTOS, 2009, p. 58). Carolina parecia reunir toda a improbabilidade do mundo para tornar-se uma escritora mundialmente famosa, mas conseguiu. Não acostumada ao mundo das altas cifras e à fama instantânea, a ela sucumbiu. Morreu pobre e reclusa num sítio em Parelheiros, distrito rural no extremo Sul de São Paulo. É justamente a saga desta mulher, personagem controversa que gravitou literalmente entre o lixo e o luxo, que Rufino tão perspicazmente delineia. Ele nos mostra a vida., ascensão e queda de uma escritora, digamos dionisíaca: arrogante, eugenista, pretensiosa, bovarista, marrenta, etnófoba, preconceituosa, , individualista e politicamente alienada, características que fizeram-na angariar a antipatia de muitos negros, quer fossem os vizinhos da favela do Canindé ou intelectuais militantes , mas ao mesmo tempo revela uma figura interessante, altiva, inteligentíssima, contundente, concisa, por vezes solidária, caridosa, coletivista , portadora da “habilidade de fazer brilhar o que em si mesmo é insosso” e cujo “português incorreto não produzia efeito de humilhação, mas, ao contrário, agregava valor à sua representação, transformando-a em apresentação”.

Detecta-se em Carolina uma cronista ímpar do equilíbrio entre as condições do pobre e do miserável, ou mesmo um termômetro a mensurar a intelectualidade e a pobreza em um país vergastado pela panaceia de uma pseudodemocracia racial.

Por não desfrutar de um merecido lugar no cânone da literatura nacional e por ser mais conhecida no exterior (mormente nos Estados Unidos, como já observei), temos a obrigação de tornar viva a memória desse fenômeno meteórico chamado Carolina Maria de Jesus: a mulher negra e pobre que foi induzida a “relações fáceis, amores inconsistentes, talvez de mão-única; ao luxo postiço dos hotéis e restaurantes, ao aplauso caloroso dos auditórios cheios ”que lhe trouxeram, paradoxalmente, o que não conhecia: dúvida sobre o próprio valor da literatura” (SANTOS, 2009. p. 151). Não obstante, o seu amor incondicional pelas letras levou-a a cintilar, principalmente em outras plagas, num firmamento repleto de estrelas fulgurantes, prova irrefutável de que a escritora improvável revelou-se possível aos olhos do mundo.

Referências

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LIEBIG, Sueli Meira. Uma mulher dionisiaca. In: Revista Le Monde Diplomatique – Brasil, ano 3, n. 32. São Paulo: Março de 2009.

LOBO, Luíza. Crítica sem juízo: Ensaios. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993. SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável. Rio de Janeiro, Garamond, 2009.

VICTOR, Fábio. Diários de brasileira catadora e escritora inspiraram filme cotado ao Oscar. In: Folha on line. 23/01/2010. Encontrado no site <ttp://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u683789.shtml> , acessado em 18/02/2010.

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** Sueli Meira Liebig é Doutora em Letras, Literatura Comparada, pela UFMG e professora do Programa de Pós-graduação em Literatura da UEPB – Universidade Estadual da Paraíba.

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A importância da leitura e da escrita para Carolina Maria de Jesus:
uma análise do seu Quarto de despejo1

Elisângela Aparecida Lopes*

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar e avaliar a configuração da leitura e da escrita no diário Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, a fim de que se possa perceber como ambas as atividades que envolvem o texto literário são vislumbradas pela escritora como forma de marcar sua condição étnica, social e feminina nesse texto de cunho testemunhal.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus. Leitura. Escrita. Gênero. Etnia.

The importance of reading and writing for Carolina Maria de Jesus:
an analysis of Quarto de Despejo

ABSTRACT: This article intends to present and evaluate the configuration of reading and writing in the diary Quarto de Despejo, by Carolina Maria de Jesus. It aims at evidencing how these two activities involving literary text are glimpsed by the writer, so as to underline her ethnic, social and female conditions in this text, which is composed by strong testimonial characteristics.

Keywords: Carolina Maria de Jesus. Reading. Writing. Genre. Ethnicity.

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro”.

Quarto de despejo, p .147

 

O presente ensaio tem como objetivo analisar os papéis desempenhados pelo ato de leitura e pela escrita no livro Quarto de despejo: diário de uma favela, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960. Esse texto retrata o cotidiano de miséria, fome, violência e marginalização que se fazem presentes na vida da escritora. A voz de Carolina configura-se como a marginal e é desse lugar que ela “lê” a cidade de onde mora: “[...] eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2000, p. 28). O lugar de fala da autora, assim como sua condição feminina e étnica são de extrema importância para se pensar os papéis exercidos pela escrita e pela leitura no cotidiano de atribulações que a autora documenta.

Maria José Motta Viana, em seu livro Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, aponta alguns motivos que fazem da escrita do diário uma prática recorrente entre as escritoras brasileiras. Um deles é a possibilidade de, através dessa escrita, a figura feminina poder reaver-se enquanto sujeito. É através da escrita que Carolina torna-se sujeito de si mesma, uma vez que põe no papel seus dramas e angústias, seus medos e frustrações; e através dela torna-se sujeito social ao retratar a pobreza e a miséria presente no “quarto de despejo”.

Segundo Vianna, outra característica do diário é a prisão ao cotidiano e daí a constante repetição. Em se tratando dos escritos de Carolina, a repetição é uma marca. A descrição dos acontecimentos dos seus dias inicia-se sempre da mesma forma, ou seja, é marcada pela rotina: levantar, pegar água, voltar para casa, cuidar dos filhos, catar papel. Curioso é que em determinando momento do livro a repetição parece incomodar a própria escritora, ao anotar no dia 16 de junho: “[...] vocês já sabem que eu vou carregar água todos os dias. Agora vou mudar o início da narrativa diurna, isto é, o que ocorre comigo durante o dia” (JESUS, 2000, p. 110). A partir de então a descrição minuciosa cede lugar a uma frase enxuta “fiz meus deveres”. Vianna aponta também para o caráter fragmentar do diário: o relato do dia-a-dia torna-se uma unidade a partir do momento em que é escrito, tal unidade constrói-se também através do trabalho de tessitura dos significados feito pelo leitor-artesão.

A escrita da experiência vivenciada ou a literatura de testemunho de Carolina Maria de Jesus caracteriza-se não só pela descrição intimista, mas também por um forte tom de denúncia. Nesse sentido, conforme nos alerta Ricoeur, a literatura de testemunho configura-se enquanto “huella sentimental” (marca sentimental), mas também como “huella social” (marca social): lugar de fala, manifestação da alteridade. Os constantes questionamentos político-sociais presentes no diário de Carolina, assim como as denúncias da discriminação social que sofria marcam a marginalização dentro da marginalização: Carolina era discriminada por ser pobre, negra, mulher, catadora de papel, mãe solteira e escritora. Nesse momento é importante ressaltar o comentário de Maria Madalena Magnabosco sobre a importância dos textos da autora:

Os diários de Carolina Maria de Jesus podem ser, assim, considerados testemunhos que borram as fronteiras da literariedade ao denunciarem uma outra experiência do sujeito do feminino, a partir das vivências e posições de enunciações da autora, a qual buscou – pelo conteúdo da narrativa e não por sua forma – simbolizar o que escapou e continua escapando aos olhares progressistas da modernização, ou seja, as fraturas expostas pela miséria ecológica, econômica, emocional e relacional, cruamente expostas na favela de Canindé”. (MAGNABOSCO, 2002, p. 147).

A literatura de testemunho enquanto escrita de experiências-limite é o relato do que foge à “normalidade”, conforme Seligmann-Silva, testemunha-se algo excepcional e que exige um relato, algo que foge aos limites da compreensão humana e que precisa ser documentado, trazido à tona. Nesse sentido, a excepcionalidade do diário de Carolina é o relato da fome.

Após esse breve introito iniciaremos a discussão que fundamenta esse texto: qual é a importância dada à leitura e à escrita por Carolina Maria de Jesus? Qual é a importância desses dois processos para a autora a partir da leitura do seu diário?

Em vários momentos do Diário, a prática da leitura, sempre presente no cotidiano da autora, preenche os espaços vazios do tempo. Quando chove e ela se vê impossibilitada de sair para catar papel, debruça-se sobre o livro. Antes de dormir, ela lê para acalmar, relaxar e viajar. Depois de receber gêneros alimentícios doados por um centro espírita, Carolina acalma a fome e os ânimos: “o nervoso que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler”. (JESUS, 2000. p. 10), porém a leitura é logo interrompida pelo pedido de pão por parte dos filhos. Depois de saciar as suas duas fomes: a de pão e a de leitura, Carolina repousa.

Além disso, a leitura e a escrita distinguem a autora dos demais moradores da favela. Ela, uma mulher semianalfabeta que estudou por dois anos no Colégio Allan Kardec – primeira escola espírita do Brasil – mantida pela senhora para quem sua mãe lavava roupas, torna-se, naquele universo marcado pelo analfabetismo e pela falta de oportunidades, os olhos que fazem o movimento de saída e retorno ao quarto de despejo. Ela lê para as mulheres da favela uma notícia de jornal que informava sobre o assassinato envolvendo um deputado recifense. As mulheres diante da brutalidade do fato e talvez por serem informadas de que crimes acontecem também na “sala de visitas” revoltam-se e rogam uma praga ao assassino.

Em outro momento a autora associa às suas duas paixões a solidão em que vive. Seu Manuel, comerciante do lugar e um dos pretendentes da autora, vive a procurá-la e a informá-la do desejo que possui de a ela se unir. No dia 02 de junho de 1958, encontramos no diário a seguinte reflexão:

O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, o homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal (JESUS, 2000, p. 44).

O primeiro motivo anotado pela autora para refutar a união refere-se a sua idade. Aos 44 anos, com três filhos e sem grandes perspectivas de vida, prefere continuar sozinha... No entanto, parece-nos que tal argumento apresenta-se como insuficiente para a própria autora ao buscar uma outra justificativa de recusar a união. Podemos pensar que ela esteja apontando para a impossibilidade de compartilhar leitura, escrita e união afetiva. Nesse sentido, elege como única companhia em seu leito os livros e os cadernos achados nos lixos da cidade nos quais anota suas reflexões e angústias. Viana, no livro citado, comenta a mesma passagem transcrita acima com uma perspectiva complementar de leitura dessa anotação:

a autora nos oferece uma surpreendente demonstração de lucidez e entendimento da ameaça que a escrita da mulher pode representar [...] Em outros termos, Carolina M. de Jesus reconhece que deve ser difícil para o homem ver-se preterido em favor de outro desejo e de outro prazer que não ancore nele (VIANA, 1995, p. 69).

Em vários momentos do texto Carolina deixa claro o quanto preza a sua liberdade ao afirmar e reafirmar que cria sozinha os filhos, que mantém sozinha sua família, que é dona de si e que domina seus impulsos. Nesse sentido, a inserção de um homem em sua vida pode ser vista como uma ameaça, a partir do momento em que este se configura como elemento de dominação capaz de paralisar o seu processo de afirmação enquanto mulher, mãe e escritora. Talvez, mesmo diante do comentário que fizemos, uma questão não tenha sido esclarecida. Quando Carolina registra: “Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal”, cabe a nós perguntar: que ideal é esse? A resposta pode ser encontrada vinte e uma páginas antes: “todos tem um ideal. O meu é gostar de ler”. (JESUS, 2000, p. 23).

Nas entrelinhas do texto podemos compreender uma nova faceta para a autora do que seja o ato de ler. Nas anotações de 27 de junho de 1958, ela aponta para o caráter vicioso da leitura: “tem muitas pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga [...] Eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool” (JESUS, 2000, p. 65). Nessa anotação, há dois elementos que precisamos ressaltar: o livro, a possibilidade de leitura e da escrita diferem Carolina dos demais moradores da favela, conferindo a ela um certo status social. Para a autora, “o livro é a melhor invenção do homem” (JESUS, 2000, p. 22). Além disso, ao associar a leitura ao vício da bebida, a autora indicia que tal prática permite a ela embriagar-se, viajar pelo desconhecido, fugir da dura realidade na qual está imersa, sonhar. Enquanto práticas indissociáveis, a leitura fornece elementos para a escrita e a ambas se vincula o exercício do imaginário. Essa associação encontra-se poeticamente inscrita nas anotações do dia 12 de junho:

Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes. Que a minha vista circula no jardim, e eu contemplo as flores de todas as qualidades [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (JESUS, 2000, p. 52).

Enquanto escreve Carolina pousa o lápis sobre o papel e começa a imaginar uma outra vida para si. A leitura e a escrita, enquanto práticas solitárias, são interrompidas pela necessidade de reflexão, pela manifestação do imaginário. Barthes, em seu texto “Escrever a leitura”, traduz poeticamente a fragmentação do ato de ler: “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” (BARTHES, 2004, p. 26). Ao escrever e ler sua escrita, Carolina levanta a cabeça para se imaginar em uma realidade outra e cria um mundo imaginário, ideal, fugindo da pele preta que a encarcera e do lugar preto onde mora.

A fome, a miséria, a violência são os fatos do cotidiano que alimentam a escrita de Carolina e ela vê nisso um paradoxo: “quem escreve gosta de coisas bonitas. Eu só encontro tristeza e lamentos” (JESUS, 2000, p. 161). Dessa forma, a escrita do seu diário, enquanto relato da experiência, está fortemente marcada pela angústia, pela dor, pela inconformidade, pela fome. A autora registra também a limitação da escrita e a dificuldade de simbolizar o que está para além da sua realidade sofrida. Ao contemplar o céu em um dia ensolarado, registra a tentativa de simbolizar o que é irrepresentável, aquilo que não pode ser apreendido pela escrita. Curiosamente, para Carolina, o que transcende a sua realidade miserável torna-se irrepresentável: “Há coisas belas no mundo que não é possível descrever-se” (JESUS, 2000, p. 39). A escrita funciona para a autora como uma forma de desabafo, também como uma maneira de dominar seus impulsos. Quando insultada pelos moradores da favela, recorre ao lápis e ao caderno e lá tenta internalizar as injúrias sofridas, enquanto escreve processa as suas dores.

A escolha das palavras é outro elemento que é importante ressaltar, assim como a escolha de quem irá ou não retratar em seus textos. É interessante pensar como funciona para a autora a produção do texto escrito: um processo de recolha de dados marcado pela seleção de cunho social: “os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (JESUS, 2000, p. 54). Parecem se configurar como objeto de escrita da autora aqueles que como ela vivem de catar, mas só não catam felicidade.

Às vezes Quarto de despejo toma a feição de um livro de contabilidade. Ali a autora registra o dinheiro que recebe depois de levar a um depósito os papéis e materiais recicláveis recolhidos nas ruas. Todo o dinheiro que ganha e como o gasta está registrado. Outras vezes a folha de papel em branco é preenchida por um dilema: compro pão ou sabão? Compro macarrão ou gordura? Essas são apenas duas dentre muitas das suas difíceis escolhas.

A escrita diferencia Carolina dos demais moradores da favela, naquele universo marcado pelo analfabetismo ela se torna um incômodo, um ser fora do lugar. Pelo fato de autodenominar-se escritora, antes mesmo da publicação do livro, ela é insultada pelos moradores por almejar um status intelectual que, de acordo com o senso comum, só é digno de quem reside nos “Palácios” ou nos “jardins” das grandes cidades. A escrita também exerce o papel de instrumento de defesa e a certa altura do livro confessa que, não tendo força física para lutar contra os insultos, ela usa suas palavras cuidadosamente afiadas e capazes de ferir mais do que espada.

Ao documentar nos seus cadernos o cotidiano da favela, ao tornar público o que é aparentemente privado, Carolina torna-se indesejada no ambiente onde vive. Ela passa a usar a escrita para se defender: diante das agressões verbais o argumento é sempre o mesmo: registrar nos cadernos o nome daqueles que a insultam. Conforme ressalta Carlos Vogt, os diários da escritora eram “uma espécie de livro de São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar os comportamentos ‘errados’ de seus vizinhos” (VOGT, 1983, p. 207). Ressalta ainda como a escrita é o ponto de estranhamento entre Carolina e os moradores da favela, ao comentar:

O repúdio da autora à situação que se encontrava é visceral. Da mesma forma e na mesma medida é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos. O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo que vivia. A esperança que deposita nessa experiência é grande.” (VOGT, 1983, p. 211).

No texto podemos perceber também o quanto a favela causa em Carolina um enorme desconforto. O estranhamento no que é familiar, ou unheimlich, explica porque a autora nunca reconhece o espaço onde vive enquanto um espaço que seja seu, mas o vê como um espaço temporário, lugar de transição. Algumas vezes irrita-se por registrar em seus cadernos a palavra casa ao se referir ao barraco onde mora. Fica feliz ao sair nas ruas e as pessoas baterem-lhe com as portas na cara, pois assim não precisa parar e conversar com os vizinhos. Seus filhos são constantemente agredidos, indesejados, assim como ela.

A escrita para Carolina Maria de Jesus funciona principalmente como possibilidade de ascensão social. É através da publicação dos seus livros que ela visualiza a possibilidade de sair do “quarto de despejo” e passar a viver em uma casa de alvenaria, fato que só acontece com a publicação de seu segundo livro.

A palavra escrita parece possuir um caráter dúbio nas literaturas de testemunho: funciona como remédio e como veneno. Enquanto remédio, a escrita do diário tem possibilitado a manifestação da alteridade, conforme ressalta Magnabosco:

No mundo público, a palavra testemunhal vem denunciando a repressão, a invisibilidade feminina, a violência do gênero sexual e tem requisitado uma transformação sobre essas práticas culturais. No plano pessoal, a palavra tem permitido uma ‘cura psicológica’ pela recuperação e legitimação, a partir do próprio sujeito, das assertivas de sua vida. (MAGNOBOSCO, 2002, p. 171).

Anteriormente, ressaltamos que para Carolina colocar no papel suas impressões acerca da sua vida e do mundo funciona como um desabafo, uma forma de processar os traumas e as angústias, uma maneira de compreender-se. Por outro lado, ao escrever suas impressões ela estaria, de alguma maneira, revivendo o passado, trazendo para o instante da escrita o momento do trauma, da dor. Seguindo esse raciocínio, ler o diário de Carolina, feito documento após a publicação é um remédio ou um veneno para o leitor?

Outra questão importante e que não podemos deixar de mencionar aqui diz respeito ao constante questionamento por parte da autora das condições subalternas e miseráveis em que se encontram os negros nesse país. Carolina faz um paralelo entre a escravidão que vigorou no Brasil por quase 400 anos e uma nova forma de aprisionamento. Em 13 de maio de 1958, assim inicia o seu relato: “Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a liberdade dos escravos”. (JESUS, 2000, p. 27) Resta-nos perguntar: qual é a liberdade de Carolina? Logo em seguida comenta “que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes”, e aqui é possível fazermos um interessante jogo intertextual: o personagem Paulo, em Esaú e Jacó, comenta que “a abolição é a aurora da liberdade, esperemos o sol. Emancipado o negro, resta emancipar o branco” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 992). Machado aponta assim para a impossibilidade do negro superar a questão do preconceito, sua visão avant a lettre é confirmada pela escrita de Carolina. Diante da impossibilidade de sair para catar os papéis e como consequência a ausência de comida nesse dia faz a autora escrever: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual – a fome!” (JESUS, 2000, p. 27).

Diante do que foi posto aqui, podemos concluir que a prática da leitura e o ato da escrita desempenham um papel transformador para Carolina Maria de Jesus. É através da escrita que ela formula e reformula sua realidade marginal, processa e reprocessa suas dores e angústias. É na leitura que ela transcende a sua condição marginal, é através da escrita que ela alcança o sonho da casa de alvenaria. Escrever é denunciar, é trazer à tona o subalterno. Ler é uma forma de imaginar-se outra, em outro lugar. Escrever é uma prática constante, forma de desabafo. Em síntese, Quarto de despejo é fruto de um processo duplo: leitura e escrita, dois vícios, duas faces de uma mesma moeda.

Nota

1 As citações referentes a Quarto de despejo foram mantidas de acordo como aparecem no livro, que por sua vez, segundo nos informa o editor da obra, o jornalista Audálio Dantas, mantém a ortografia da autora.

Referências

BARTHES, Roland. Escrever a leitura. In: O Rumor da Língua. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2004.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.

MACHADO DE ASSIS. Esaú e Jacó. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. Vol. I, p. 992.

MAGNABOSCO, Maria Madalena. Reconstruindo imaginários femininos através dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus: um estudo sobre gênero. Tese. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

RICOEUR, Paul. La historia, la memoria, el olvido. Buenos Aires: Fondo de Cultura económica de Argentina, 2000.

SELIGMANN-SILVA (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora Unicamp, 2003.

VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.

VOGT, Carlos. Trabalho, pobreza e trabalho intelectual: O quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus). In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.

________________________________________

* Elisângela Aparecida Lopes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas - IFSULDEMINAS. Coautora do Volume 3 da Coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2a Reimpr., 2021), e também de Literatura afro-brasileira - 100 autores do século XVIII ao XXI (2a ed., 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2a ed., 2019). 


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