A literatura afro-infantil:

representação e representatividade*

 

Cristiane Veloso de Araujo Pestana**

A temática étnico-racial vem ganhando cada vez mais espaço nas publicações voltadas ao público infantil, sobretudo a partir da criação da lei 10.639/03, lei federal que torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas. Não haveria maneira melhor de apresentar a história e a cultura afro-brasileira e africana às crianças senão através da literatura. A literatura é capaz de proporcionar ludicidade, conhecimento e trocas culturais, reflexões, construção identitária, deleite e magia. Porém, as histórias também podem causar estranhamentos, desconforto e desinteresse, caso não sejam devidamente cuidadas quando da elaboração de seu material impresso, ou seja, o livro.

A partir da implementação da referida lei, houve um grande interesse das editoras em atender esta demanda, sejam publicando traduções e textos de origem africana quanto estimulando autores nacionais a escrever sobre o tema étnico-racial. Tais publicações serviriam de apoio para as estratégias de combate ao racismo e ao preconceito dentro e fora do ambiente escolar, portanto, deveriam abordar as questões raciais de forma cuidadosa e eficiente, impactando positivamente seu público leitor, especialmente quando se tratarem de crianças negras. No entanto, observamos ao longo de muitos anos de trabalho com este segmento literário a existência de livros que estão na contramão de tais propostas. São livros que comprometem a identificação positiva de algumas crianças, reforçam certos estereótipos e geram mais problemas além dos já existentes.

A literatura pode, através de seu caráter lúdico, simbólico e reflexivo, ser uma forte aliada no combate aos preconceitos enraizados em nossa sociedade e uma arma contra o racismo que ainda fere e segrega nossas crianças negras. Este papel transformador da literatura pode ser notado, inicialmente, pela inclusão de personagens negros como protagonistas, o que antes não acontecia. Primeiramente, os personagens negros passaram da invisibilidade total para a figuração, nunca tendo seus assuntos e seus sentimentos revelados e sem ter o direito da enunciação. Tais fatos podem ser comprovados através das pesquisas realizadas pela professora Regina Dalcastagné.

Reforçando a afirmação desta invisibilidade negra na Literatura Infantil, temos também os significativos estudos da professora Eliane Debus. Segundo a pesquisadora, a visão etnocêntrica dos livros infantis calou a voz dos negros e auxiliou da manutenção de um discurso hegemônico. Ainda de acordo com Eliane, o caráter simbólico da literatura pode contribuir para reflexões que rompam com a desigualdade étnica e para a construção de uma visão que contemple a valorização da diversidade. “A identificação com narrativas próximas de sua realidade e com personagens que vivem problemáticas semelhantes às suas leva o leitor a reelaborar e refletir sobre o seu papel social e contribui para a afirmação de uma identidade étnica” (DEBUS, 2007, p.1)

A literatura, de uma forma geral, auxilia na compreensão do mundo e das relações humanas através da exposição dos contextos sociais existentes. Ou seja, por meio do texto literário, o indivíduo pode ter contato com a realidade que o cerca e assim, ser capaz de elaborar e reelaborar melhor suas questões a respeito de si, do outro, do mundo e da vida. Para a doutora em educação Eliane Cavalleiro “compreende-se que o reconhecimento positivo das diferenças étnicas deve ser proporcionado desde os primeiros anos de vida” (CAVALLEIRO, 2006, p.26).

Portanto, é de suma importância que os livros infantis com temática étnico-racial prezem por uma qualidade estética, imagética e narrativa. Caso contrário, poderá auxiliar na manutenção dos estereótipos e perpetuar o racismo entre a sociedade brasileira.

Conforme salienta a pesquisadora Maria Anória Oliveira (2015), o trabalho com a arte literária, seja no âmbito da produção, ou da seleção e difusão dos livros de literatura infantil sob a temática étnico-racial, requer um olhar crítico para não endossar o que se deseja desconstruir. Segundo ela, a escola pode multiplicar essas “nódoas emocionais” caso não haja as devidas intervenções.

Nos livros de Literatura Infantil analisados, todos trazendo personagens negras como protagonistas, encontramos vários aspectos positivos e negativos, levando em consideração as perspectivas e os objetivos traçados pelas políticas afirmativas, ou seja, combater o racismo e promover identidade étnica.

A pesquisadora Leonor Riscado faz um estudo acerca da qualidade dos livros de Literatura infantil, a mesma acredita que há uma significativa ausência de critérios na seleção dos acervos, sendo os livros muitas vezes escolhidos pela capa e pelos títulos. Segundo ela “a qualidade da Literatura Infantil é um elemento fulcral para a modelagem e construção de futuros adultos empenhados, questionadores, imaginativos, interventivos” (RISCADO, 2001, p.2). Além da preocupação com o texto, é urgente também uma reflexão sobre as imagens, que são componentes essenciais no todo narrativo. A ilustração também é uma forma de linguagem que resulta de escolhas feitas pelo ilustrador, como cores, formas, características das personagens e etc, fazendo aumentar o grau de expressividade do livro. Porém as imagens, assim como as palavras, podem carregar conotações, que no contexto afro-brasileiro ou africano irão fazer toda a diferença, tendo em vista a história de vida deste povo.

O impacto das ilustrações pode auxiliar na construção de uma identidade negra positiva ou reforçar imaginários preconceituosos. Vejamos abaixo três relatos e exemplos negativos de ilustrações que podem ser deturpadas pelas crianças, especialmente aquelas que ainda não estão alfabetizadas, pois neste ponto, o texto visual se sobrepõe ao texto verbal e a mensagem transmitida nem sempre chega da forma como o autor ou o ilustrador pensaram. Como afirma o pesquisador Marcelo Freire: “Cabe ao ilustrador decifrar o momento a ser visualmente narrado, procurando sempre evitar o conflito entre o que o leitor imagina e o que a imagem mostra” (FREIRE, 2004.p.5).

   

FIGURA 1: Ilustração da personagem Lelê no livro O cabelo de Lelê. (BELÉM, 2012, p. 8/11). Autora: Valéria Belém. Ilustradora: Adriana Mendonça.

  

FIGURA 2: Imagem retirada do livro O mundo começa na cabeça (AGUSTONI, 2011, p. 15/16). Autora: Prisca Agustoni. Ilustradora: Tati Móes.