Abdias Nascimento

Olhando no Espelho

(Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto)

Ao espelho te vejo negrinho
te reconheço garoto negro
vivemos a mesma infância
a melancolia partilhada do teu profundo olhar
era a senha e a contra-senha
identificando nosso destino
confraria dos humilhados
a povoar a terna lembrança
esta minha evocação de Franca

Éramos um só olhar
nos papagaios empinados
ao sopro fresco do entardecer 

Negrinho    garota negra
vivemos a mesma infância
nos cafezais brincamos
nas jabuticabeiras trepamos
chupamos a mesma manga e melancia

Éramos uma única ansiedade
à subida multicor dos balões
pejados de nossos sonhos e ilusões
Negrinho meu irmão
como te chamavas tu?
Felisbino   Sebastião   Geraldo?

Serias menina: Rosa
Negra   Alice    Tarsila?
Ou te chamarias Aguinaldo?

Lembro nosso emprego:
      lavar vidros
      entregar remédios
      fazer limonada purgativa
      limpar as sujeiras de uma farmácia

E aquele grito em nosso ouvido
“– Acorda preguiçoso”? era o patrão
outra vez cochilaste reclinado ao chão
Assustados teus olhos dançaram
desgovernados pelas lágrimas
saltaste inutilmente lépido

Um dedo irrevogável
te apontou a porta do desemprego
assim regressaste
à casa que já não tinhas
na noite anterior morrera
tua pobre mãe que a mantinha

Negrinha garoto negro
sei que somos uma
prosseguimos os mesmos
ao abandono de nossa orfandade

Assim juntos e sem nome
devemos continuar nosso sonho
nosso trabalho
reinventando as nossas letras
recompondo nossos nomes próprios
tecendo os laços firmes
nos quais
ao riso alegre do novo dia
enforcaremos os usurpadores de nossa infância

Para a infância negra
construiremos um mundo diferente
nutrido ao axé de Exu
      ao amor infinito de Oxum
      à compaixão de Obatalá
      à espada justiceira de Ogum
 

Nesse mundo não haverá
       trombadinhas
       pivetes
       pixotes
       e capitães-de-areia

                                           Búfalo, 1980

(In: Axés do sangue e da esperança, p. 50)

 


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