Palavras para deduzir o mundo precário

 

Gustavo Silveira Ribeiro*

 

Arcaico, informe, ancestral. Três caminhos, três termos que apontam, sem defini-los completamente, os compromissos de um poeta e os traços de uma poética. Palavras-passe para uma poesia exigente, senhas de uma arte que se entrega aos poucos, enrodilhada sobre si, feita de voltas no tempo, torções na linguagem, retomadas simultâneas, no tecido do poema, de múltiplas tradições – da África às Américas da diáspora, da Europa e além. A obra poética de Edimilson de Almeida Pereira, repassada cuidadosamente – e acrescida – na antologia que recentemente publicou a editora paulista 34, é feita da matéria impura de línguas e épocas sobrepostas. Escritos com o rigor da melhor técnica moderna, seus versos, feitos de saltos e elipses, deslocamentos e vertigem do sentido, lançam-se sobre a oralidade típica do interior de Minas Gerais, elaborando, nesse encontro, o poema, uma forma-força peculiar, intervalo entre passado e presente. A cerebralidade construtiva funde-se à matéria vertente da fala e da fé. Vasto, o repertório de imagens e temas dessa poesia é, igualmente, território do amálgama: vai da especulação filosófica e da racionalidade científica (‘o arqueólogo que não deve se reconhecer nos ossos que recupera’, o homem que ‘retira das próprias vísceras um mito’) aos casos simples de gente comum, mateiros e caçadores, benzedeiras e tecelãs. O popular e o erudito se cruzam, seus elementos embaralhados pela “mão [que] lavora a antiforma”, que “afronta a lição colonial” ao desierarquizar saberes e práticas: nessa poesia, os discursos do poder não têm primazia; são as vozes da cozinha e da fábrica que oferecem a sua verdade possível ao leitor.

Dois espaços se destacam, decisivos, no livro. O das letras, dos poemas sobre poemas, dos textos que se voltam para os homens e as mulheres que vieram antes do poeta na dura tarefa da escrita. E o espaço das águas, de rios e fontes de todos os tamanhos, mas principalmente do mar, a presença e a memória do Atlântico que divide o mundo afro-brasileiro em dois. Sobre o primeiro, Edimilson dá testemunho continuado: boa parte de sua poesia se volta sobre a própria linguagem, seus usos e instrumentos. Nesse sentido também profundamente modernos, atentos à lição ordenadora de João Cabral de Melo Neto e Paul Valéry, para quem a poesia, não importa se debruçada sobre objeto ínfimo ou matéria transcendente, sempre deveria pensar a si mesma, seus poemas meditam de modo detido a natureza do canto, a força derrisória das palavras, a mistura de acaso e precisão que lhes dá substância: “Quem não risca não sabe os rios da palavra, o/labirinto de haver escrito sem estremecer”. A série de poemas que dedica a escritores, na segunda seção do livro, traça uma rede de referências fundadoras que incorpora também a dimensão racial, estabelecendo diálogo com predecessores e contemporâneos (Cruz e Souza, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Arthur Bispo do Rosário, Stela do Patrocínio) que fazem parte da formação do poeta. Todos eles, e tantos mais que figuram no corpo da antologia, perfazem um panteão de autores que têm uma relação ambígua com a literatura, ao mesmo tempo áspera e vital. 

Sobre as águas, por sua vez, se projeta a recordação fantasmática do oceano e do exílio, um dos pontos altos da poesia de Edimilson. Num poema como “Cemitério marinho”, composto por sete partes (ou cenas), o mar é palco da História. De chofre, o leitor é lançado no bojo de um navio que atravessa o Atlântico. Homens, mulheres e crianças negras, escravizados, amontoam-se no seu interior, entregues ao escorbuto e à fome. A morte, o horror explode em flashes rápidos, descontínuos, de alta voltagem dramática (posto que compostos por retalhos de vozes dos desterrados), mas distantes de qualquer tom melodramático: “a linguagem se joga/no oceano – para desespero/da memória”. Trata-se da recuperação, entre a imaginação e a pesquisa, da condição atroz do comércio de mão de obra escrava (a absurda e comum “loja de carnes”) e da infâmia de um país e de uma cultura que se fizeram pela convivência com seus trâmites. O momento em que as crianças (“trezentos/nascidos para morrer”), num jogo de cores e sons muito bem armado pelo poema (“no inferno, o azul/ o branco, trezentas vezes/lesado”), apresentam-se acenando é forte e não se deixa esquecer. O poema faz o resgate de vozes e corpos apagados, que se inscrevem no corpo do poeta como cicatriz e memória ancestral, além de projetar, anacronicamente, o tempo presente em outros séculos. A ignomínia da servidão pretérita e a atual lógica necropolítica da exploração brutal e do extermínio de corpos negros convergem para o mesmo ponto.

Poesia pensante, os versos de Edimilson demonstram sempre notável capacidade teórica. Poesia além de si (daí o título do livro, indicado apenas pelo símbolo +, os textos do poeta apresentam-se em expansão permanente, apropriando-se do que, a princípio, não lhe deveria ser próprio: a filosofia, a teoria da arte, a antropologia. Poesia substantiva, língua feita de matéria palpável, os poemas que se reúnem nesta antologia (num aceno, talvez, a uma tradição de extração heideggeriana), quer reaprender, ou inventar, os nomes das coisas da terra, desvelando, num olhar tantas vezes inaugural, seu lugar e seu sentido. A força que um poeta como Edimilson de Almeida Pereira tem é incomum, consistindo num caso singular na cena brasileira, dadas as tradições que atravessa e costura, a novidade que apresenta, a firmeza da sua voz. É hora de lê-lo mais uma vez, de fazer com o poeta a sua insistente perscrutação das origens de tudo, com ele retirar as máscaras das palavras e, homeless, regressar à orfandade do mundo.

Belo Horizonte, março de 2020.

 

Referência

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Poesia + (antologia 1985-2019). São Paulo: Editora 34, 2019.


* Gustavo Silveira Ribeiro é professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFMG. Publicou, entre outros, O drama ético na obra de Graciliano Ramos (Ed. UFMG/2017) e Antevéspera, noite interior (Macondo/2018); coorganizou Por uma literatura pensante: ensaios de filosofia e literatura (Fino Traço/2012); Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto Bolaño (Relicário Edições/2016) e Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível (Quixote + Do/2018).


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