O colono preto como fator da civilização brasileira
(Excertos) 

 

Manuel Querino

 

A história nos afirma que, muito antes da era cristã, os árabes se haviam introduzido nos sertões do Continente negro, e com maior atividade no século VII.

Missionários muçulmanos internaram-se em alguns pontos da Africa semeando os gérmens da civilização, abolindo a antropofagia e a abominável prática dos sacrifícios humanos.

Levando-se em conta o grau de cultura atingindo por esses invasores, com tais predicados, não resta a menor dúvida de que foram eles os introdutores dos conhecimentos indispensáveis ao modo de viver do africano nas florestas, nas planícies, nas matas, nas montanhas, vigiando os rebanhos, cultivando os campos, satisfazendo assim as necessidades mais rudimentares da vida. Acrescente-se a essa circunstância, a fundação de feitorias portuguesas em diversos pontos do Continente, e, chegar-se-á à conclusão de que o colono preto, ao ser transportado para a América, estava já aparelhado para o trabalho que o esperava aqui, como bom caçador, marinheiro, criador, extrator do sal, abundante em algumas regiões, minerador de ferro, pastor, agricultor, mercador de marfim, etc. Ao tempo do tráfico já o africano conhecia o trabalho da mineração, pois lá abundava o ouro, a prata, o chumbo, o diamante e o ferro.

E como prova de que ele de longa data conhecia diversas aplicações materiais do trabalho veia-se o que diversos exploradores do Continente negro dizem de referência ao que sobre o objeto encontraram.

Em Vuane Kirumbe vimos uma foria indígena, onde trabalhavam cerca de uma dúzia de homens. O ferro que se empregava era muito puro e com ele fabricavam os grandes ferros para as lanças de Uregga meridional, facas de todas as dimensões, desde a pequena faca de uma polegada e meia de extensão, até ao pesado cutelo em forma de gládio romano’.

A arte de ferreiro é muito apreciada nestas florestas onde, em conseqüência do seu isolamento, as aldeias são obrigadas a fazerem tudo. Cada geração aprende por sua vez os processos tradicionais, que são numerosos, e mostram que o próprio homem das solidões é um animal progressivo e perfectível’.

Conhecem também os processos necessários para o fabrico de aço, pela combinação do ferro com o carbono e a têmpera’ ”.

(O colono preto como fator da civilização brasileira, p. 146-147, 1918).

 

A primeira folheta de ouro encontrada na margem do Rio Funil, em Ouro Preto, coube a um preto bandeirante; bem como a descoberta do diamante "Estrela do Sul". Laborioso como era, muito embora com o corpo seviciado pelos açoites do feitor, estava sempre o escravo negro, obediente as suas determinações, com verdadeiro estoicismo’ ”.

(O colono preto como fator da civilização brasileira, p. 148, 1918).

 

De quantos martírios aqui acabrunharam o coração da raça africana, teve esta, no entanto, um momento de expansivo desafogo, quando, desertando os engenhos e fazendas, os escravos constituíram a confederação de Palmares, em defesa de sua liberdade.

A Roma antiga, que tantos povos escravizou, viu um dia, estupefacta e aterrada, um Espártaco à testa de um exército de escravos.

No Brasil a escravidão também impeliu o africano a suas revoltas, e ao seu desforço. Lá foi a guerra servil com todos os seus horrores; em Palmares os elementos aí congregados não tiveram por alvo a vingança: bem ao contrário, o seu objetivo foi escapar à tirania e viver em liberdade, nas mais legítimas aspirações do homem.

Os escravos gregos eram instruídos tanto nos jogos públicos como na literatura, vantagens que o africano escravizado na América não logrou possuir, pois o rigor do cativeiro que não consentia o menor preparo mental, embotava-lhe a inteligência. Sem embargo, mostrou-se superior às angústias do sofrimento, e teve gestos memoráveis de revolta buscando organizar sociedade com governo independente. Conhecia as organizações guerreiras e se predispôs para a defesa de sua cidadela de Palmares, e para as incursões oportunas no território vizinho e inimigo.

Não desprezava as melodias selvagens adaptadas aos seus cantos de guerra.

O escravo grego ou romano, abandonando o senhorio, não cogitava de se organizar em sociedade regular, em território de que porventura se apoderava; vivia errante ou em bandos entregues a pilhagem.

A devastação, de que se fizeram pioneiros os escravos romanos, inspirava terror a todos os que tinham notícias de sua aproximação. Os fundadores de Palmares não procederam de igual modo; procuraram refúgio no seio da natureza virgem e aí assentaram as bases de uma sociedade, a imitação das que dominavam na África, sua terra de origem, sociedade aliás mais adiantada do que as organizações indígenas. Não era uma conquista movida pelo ódio, mas uma afirmação legítima do desejo de viver livre, e, assim, possuíam os refugiados dos Palmares as suas leis severas contra o roubo, o homicídio, o adultério, as quais, na sua vida interna observavam com rigor. ”

(O colono preto como fator da civilização brasileira, p. 151-152, 1918).

 


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