Entre becos e memórias, Conceição Evaristo e o poder da ficção

Margarete Aparecida de Oliveira*

Nascida em Belo Horizonte em 1946, e residente no Rio de Janeiro desde 1973, Conceição Evaristo é uma personalidade singular no cenário cultural afro-brasileiro contemporâneo. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, Evaristo estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, embora tenha iniciado suas experiências literárias na década anterior. Em 2003, trouxe a público o romance Ponciá Vicêncio, objeto de artigos e dissertações acadêmicas desde sua publicação. Além de indicado a vários vestibulares de universidades brasileiras, o livro foi traduzido para o inglês e já está em segunda edição nos Estados Unidos. Em 2006, sai a primeira edição de Becos da memória, romance iniciado na década de 1980 e objeto destas reflexões. A autora tem ainda em seu currículo os Poemas de recordação e outros movimentos (2008), com o mesmo tom de sensibilidade e ternura próprio ao lirismo presente em sua ficção, demonstrando um minucioso trabalho com a linguagem; e os contos de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), em que encena conflitos próprios ao universo das relações de gênero e etnicidade.A produção literária de Conceição Evaristo é marcada por um posicionamento que busca privilegiar a sua vivência de mulher negra na sociedade brasileira. Sua obra em prosa é habitada por excluídos sociais, favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios”. A escritora constrói em suas narrativas figuras memoráveis como Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Maria-Nova, Negro Alírio, Bondade, Tio Totó, Zaita, Naita, Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e tantos outros, que remetem a uma determinada parcela da sociedade pouco ou quase nunca presente em nossas letras.

Centrado no drama dos moradores de uma favela prestes a ser demolida, Becos da memória recebe presentemente uma nova e bem cuidada edição, pela Editora Mulheres, de Florianópolis. Sob a ameaça de despejo – “o plano de desfavelamento [...] aborrecia e confundia a todos.” (p. 163) –, vidas e sonhos, experiências e saberes, são postos em risco. A trama se desenvolve sob o olhar de uma menina de 13 anos, a narradora Maria-Nova, que vive todo o processo e se torna porta-voz das alegrias e sofrimentos dos demais. As histórias, tecidas sem linearidade, vão surgindo a partir de um universo fraturado – a comunidade surpreendida pelo processo de remoção: “Dava a impressão de que nem eles sabiam direito por que estavam erradicando a favela. Diziam que era para construir um hospital ou uma companhia de gás, um grande clube, talvez” (p. 163).

É neste espaço, nos becos sem nome e sem significação maior para os demais habitantes da cidade, que as histórias guardadas na memória de Maria-Nova percorrem o cotidiano de exclusão e miséria. O discurso da personagem mobiliza experiências, passa por traumas oriundos da escravização e recupera saberes resguardados na oralidade. Compõe assim uma narrativa entrelaçada por vozes afrodescendentes de diversas gerações, em cenários que vão do ambiente da lavoura aos “quartos de despejo” das grandes cidades. É por esta fala de menina – simultaneamente jovem e antiga – que Conceição Evaristo encena as origens e as consequências da desigualdade. De acordo com Maurice Halbwachs (1990), a memória individual está ligada à memória do grupo que, por sua vez, vincula-se à esfera maior da tradição, arsenal de saberes de cada sociedade. Ao colecionar histórias de si e dos seus, no momento em que o futuro ganha novos e imprecisos contornos, a personagem, e o romance como um todo, incorporam a memória coletiva para relacioná-la aos processos individuais de identificação.

Conceição Evaristo não entrega ao leitor um enredo “pronto”, linear e consecutivo. É preciso costurar “a colcha de memórias”1 que nos chega a partir de uma narrativa descontínua, feita de fragmentos que oscilam entre passado e presente, com os dramas e mazelas de cada um rebuscados nas lembranças da voz narrativa:

a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! [...] escrevo como uma homenagem póstuma [...] Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 29-30).

E os retalhos de vidas vão sendo costurados através do olhar atento às encruzilhadas do ontem com o hoje. Por meio dele vão surgindo outros narradores e narradoras, como Vó Rita, velha parteira que “dorme embolada com a Outra” e “era boa, muito boa. Hoje, quando penso em Vó Rita, é como se pensasse no mistério e na plenitude da vida” (p. 99); e outras ainda, como Bondade, de cujo pas­sado pouco se sabia, mas que “conhecia todas as misérias e grandezas da favela [...]. Com Jeito, ele acabava “entrando no coração de todos” e ganhando “o apelido que merecia”; ou Cida-Cidoca, a prostituta “do rabo de ouro”. Romance de coletividade, Becos da memória traz ainda as narrativas com gosto de sangue de Tio Tatão; ou de D. Santinha, que surrou a própria nora no oitavo mês de gravidez para abortar a criança e incriminar o próprio filho. Abre espaço também para a tristeza de Mãe Joana, que nunca sorria, “nem por dentro nem por fora” (p. 60); e para a fala de Negro Alírio, sin­dicalista perseguido por suas reivindicações em prol dos direitos dos trabalha­dores; e, ainda, para os elogios de Ditinha, a empregada doméstica alienada e deslumbrada com a patroa: “Como D. Laura era bonita! “Muito alta, loira, com os olhos da cor daquela pedra das joias”.

Entre muitas histórias, temos a do Tio Totó, que nasceu durante o período de vigência da Lei do Ventre Livre, mas que, mesmo não sendo escravo, carrega consigo os dramas de seus antepassados. Como ele mesmo destaca: “A vida passou e passou trazendo dores” (p. 33). Labutando na roça, teve que se mudar muitas vezes na vida. Numa dessas ocasiões, foi obrigado a deixar a fazenda em que trabalhava, pois as terras haviam sido vendidas. Reuniu mulher e filha e decidiu partir: “havia o rio para atravessar, uma canoa improvisada de tronco de árvore. Não dava para esperar mais do lado de cá. [...] Totó alcançou só a outra banda do rio. Uma banda de sua vida havia ficado do lado de lá.” (p. 35). Mas entre os barracos amontoados há também espaço para a descontração. Nos festivais de bola, “em volta do campo fincavam-se bandeirinhas armadas em um varal de estacas de bambu”. A alegria figura como contraponto às brigas ou, bem raramente, a alguma morte, entretanto nunca por culpa da bola. Mas aquela se faz presente, às vezes de forma traiçoeira, pois lá estão os tratores da firma construtora, arrancando os barracos e os moradores: “a morte havia sido tão sem graça [...] Os corpos dos homens-vadios-meninos estavam despedaçados pelo chão e os dois tratores também.” (p. 109).

Na orelha do livro, Eduardo de Assis Duarte, afirma que Becos da Memória “descarta a violência gratuita que marca muitas vezes a representação dos excluídos em nossas letras”. A favela representada na obra, embora marcada pela miséria, ainda não conhece a violência do tráfico. A menina curiosa retém na memória os diversos acontecimentos para, um dia, fazê-los chegar ao universo da escrita a fim de nomear o que a sociedade insiste em não ver. Sua fala recupera a história daqueles que não tiveram voz, com suas experiências e ensinamentos: “ela haveria de recontá-las um dia, ainda não se sabia como. Era muita coisa para se guardar dentro de um só peito.” (p.56).

Becos da memória dialoga, pois, com a realidade presente na vida de muitos sujeitos invisíveis que habitam as periferias do país. Ao colocar em primeiro plano o sentimento do favelado que perde seu espaço, a narrativa de Conceição Evaristo se projeta nos dias de hoje como reflexão sobre a presença do negro na construção do país e da própria formação da identidade brasileira. O romance dramatiza a atualidade da diáspora negra, sobretudo interna, trazendo para a trama a memória como exercício de resgate histórico, chamando nossa atenção para antigos e novos problemas, velhos e atuais clamores, tudo isto num ritmo envolvente que só o talento para ficção consegue construir. Sem perder a ternura jamais, a escritora revolve a contrapelo a trajetória dos que saíram da senzala para habitar os becos de nossa modernidade.

Referências

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.

HALBWACHS, Maurice. 1990. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

1 Expressão utilizada por Maria Nazareth Soares Fonseca em seu prefácio ao romance.

* Margarete Aparecida de Oliveira é mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG. Resenha publicada no caderno “Pensar”, do jornal Estado de Minas, em 05/10/2013.

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