Textos publicados nas lâminas – bloco III
Trago de poesia
Jonas Pinheiro de Araújo
há nos seus olhos
uma gargalhada ingênua
de correntezas verde-azuis
lambendo as margens
como se fossem os setecentos amores
que transitam as avenidas
da sensualidade dos teus metais
é um trago só
de poesia
um traço
tangenciando o batom
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Feijão e Maria
Jonas Pinheiro de Araújo
Correm nas calçadas, descalços.
Iguais.
Como buscassem o melhor segredo
das rosas azuis, que teimam em dobrar
a dureza do tempo.
Pulam as cercas e os riachos
antigos, como se dançassem nus
aos domingos, durante a novena.
Só pra comemorar a abolição
Daqueles dias de dor e opressão, tantas.
Celebrar o sorriso do sol
abençoando o namoro das borboletas
com os primeiros brotos de feijão
e Maria.
Amam doidamente como se não
restasse mais nenhum segundo de vida,
e em todas as praças, roças e quarteirões
uma multidão ocupasse a vida, feito palco
agora outro, de um infinito
querer bem.
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Viagem à eternidade das palavras
Regis Gonçalves
(a João Cabral de Melo Neto, in memorian)
A mesa atrás de si, com os restos do café da manhã, ainda está posta. O poeta sente uma leve vertigem, nenhum torpor, nenhuma dor, e uma lucidez equivalente à claridade invasiva ainda possível de adivinhar. E uma cumplicidade das coisas, objetos familiares como o braço que o ajuda a sustentar-se diante da aguda paisagem interior, já despojada de temor ou remorso.
Haviam comido quase em silêncio, pontuado de frases curtas, as palavras que ultimamente tornaram-se dispensáveis adquiriam em si mesmas uma mínima solenidade. Migalhas de pão e pequenas manchas deixadas pelo líquido entornado indicavam o fim da refeição frugal de cada manhã. Tomara todos os comprimidos, todos, e os engolira contando-os um a um. Sentia-se reconciliado, pronto para o gesto inaugural de apaziguamento, uma despedida sem adeus. O mundo se coagulava em pormenores desprendidos da memória, fora de tempo e lugar. A pedra diluída em barro ia se liquefazendo na mancha tortuosa sobre a qual boiavam o pio de um pássaro, cantigas de infância, sussurros e rumores, olhos de sede, e as palavras, a lembrança da dura e fria iniciação ao seu convívio. Podia ouvi-las distintamente, ordenando uma arquitetura ideal que ele quis tornar poesia. As palavras e seu limite, remoídas em pó que se recusa a dispersar-se em moléculas e deixar-se levar pelo vento.
O poeta se volta, aponta o sofá para onde caminha, senta-se, está como se desprendendo desses fragmentos que compõem o ambiente imediato, acessível das coisas mais que presentes. A mão que o ampara sustenta apenas uma parte de si que já não é peso ou desejo de entendimento. O poeta raspa ainda mais o oco das reminiscências, remove as aparas do tempo, intenta promover a decantação última dos sentimentos. Mas é através deles que novas palavras se presentificam, tornam-se palpáveis na disposição de aliciá-lo, já não como forma pura, gesto lapidar, arte e cometimento.
É antes a proposta de um cântico, uma música que não coubera na arquitetura de sentidos anteriormente pretendida. De mãos dadas, o poeta agora move os lábios e reza, as palavras murmuradas se corporificando numa litania de sons imemoriais, clamores de solidão e comprazimento. Tudo nele interage em caos, essa não-forma de consciência que flui, rio de viagem caudalosa alcançando o estuário de um mar absoluto e definitivo. A cabeça tomba e se imoboliza num gesto arquetípico, estátua de sal que grava o corpo final de sua poesia.
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Afetividade
Clara Feldman
Afeto, afeição, afeiçoar, afetividade, afetivo, afetuoso. Segundo os dicionários são termos associados ao sentimento de carinho e amizade que nutrimos por alguém; à estima, amor, inclinação, simpatia; à afinidade, à ligação espiritual com alguém ou alguma coisa.
Dentre todas as definições, a que mais chama a atenção é aquela que fala de conexão, ligação, relação. É esse sentido da palavra que nos leva a indagar: seria possível nos conectarmos, nos ligarmos e nos relacionarmos de maneira positiva com uma pessoa sem nutrir afeição por ela? Sem que ela nos desperte algum tipo de afetividade?
Outra questão interessante seria: por que afeto e não amor? Na linguagem cotidiana, as palavras amor e afetividade têm conotações diferentes. Em geral, quando falamos de amor estamos falando de um sentimento de alta intensidade, muitas vezes ligado à relação amorosa que se estabelece entre as pessoas (na maioria das vezes do sexo oposto, mas também entre pessoas do mesmo sexo) e que pode incluir a atração e o contato físico. Ou amor pode referir-se ao sentimento experimentado por pessoas que convivem de maneira muito próxima, dentro ou fora dos laços sangüíneos e familiares. Ou o termo pode ainda aludir a uma comunhão, de natureza espiritual ou religiosa, com todos os seres humanos e com o universo – é o amor cósmico, universal ou cristão (esse último expresso pelas frases “amai-vos uns aos outros” ou “ame ao próximo como a ti mesmo”).
No nosso contexto, podemos empregar um ou outro termo. O essencial é querer bem ao outro e querer o bem do outro.
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Nicolas Behr
boa viagem meus amigos
que todos os dias
pegam esses ônibus lotados
que vão para taguatinga,
gama, planaltina...
boa viagem meus amigos
que vão em pé, sentados,
dormindo
sonhando chegar em casa
antes da novela começar
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Nicolas Behr
brasília nasceu
de um gesto primário
dois eixos se cruzando,
ou seja, o próprio sinal da cruz
como quem pede bênção
ou perdão
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Nicolas Behr
crie coragem
e troque de nome:
cidade jk
que talvez assim o mereça
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Nicolas Behr
joga a chave, meu bem
joga teu coração, meu bem
joga teu bem, meu bem
joga o síndico também
joga logo o jorge
joga o bloco, meu bem
joga a janela, meu bem
joga o pára-quedas também
joga teu corpo, meu bem
antes que o porteiro
avise o zelador
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Bruno Brum
não faço pouco caso
desses cacos que cato
às vezes até me corto
nesses desacatos
ou então levo choques
e me tombo com o baque
mas depois junto tudo
tomo logo o meu rumo
aí faço o meu rock
com frases de pára-choque
me desligo
me descuido
me perco num segundo
vim de longe
sou um qualquer
peço carona pra quem vai a pé
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Bruno Brum
chove
(ou será alguém aguando o mundo?)
chove
(ou será alguém que chora muito?)
chove
(ou será alguém com seu descuido?)
chove
(ou será alguém cuspindo tudo?)
chove
(ou será alguém chovendo junto?)
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Cantares de Salomão
(fragmentos)
Beije-me ele com os beijos da sua boca;
porque melhor é o seu amor do que o vinho.
Para cheirar são bons os seus ungüentos;
como ungüento derramado é o teu nome;
por isso as virgens te amam.
O meu amado é para mim um ramalhete de mirra;
morará entre os meus seios.
Como um cacho de Chipre nas vinhas de En-Gedi
é para mim o meu amado.
Eis que és formosa, ó amiga minha,
eis que és formosa; os teus olhos
são como os das pombas.
Eis que és gentil e agradável, ó amado meu;
O nosso leito é viçoso.
Qual o lírio entre os espinhos,
tal é a minha amiga entre as filhas.
Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs
porque desfaleço de amor.
A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça,
e a sua mão direita me abrace.
O meu amado fala e me diz: Levanta-te, amiga minha,
formosa minha, e vem.
Quem é esta que sobe do deserto,
como colunas de fumo, perfumada de mirra,
de incenso, e de toda a sorte de pós aromáticos?
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que, se achardes o meu amado, lhe digais que estou enferma de amor.
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