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Textos publicados nas lâminas – bloco II

O “adeus” de Teresa

Castro Alves

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus . . .
E amamos juntos . . . E depois na sala
“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala . . .

E ela, corando, murmurou-me: “adeus”.

Uma noite. . . entreabriu-se um reposteiro . . .
E da alcova saía um cavalheiro
Inda beijando uma mulher sem véus . . .
Era eu . . . Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa . . .

E ela entre beijos murmurou-me: “adeus!”

Passaram tempos . . . séc’los de delírio
Prazeres divinais . . . gozos do Empíreo . . .
. . . Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse – “Voltarei! . . . descansa! . . . “
Ela, chorando mais que uma criança.

Ela em soluços murmurou-me: “adeus!”

Quando voltei . . . era o palácio em festa! . . .
E a voz d’Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! . . . Ela me olhou branca . . . surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa! . . .

E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”

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A couve

Jarbas Medeiros

A couve, esta ou aquela couve, a couve crespa, a tronchuda, a murciana, a saloia, a verde, a repolhuda, a lombarda e outras mais, a couve é uma hortaliça de fama e renome milenares. Egípcios, gregos, macedônios e mesopotâmicos consideravam a couve como uma Divindade virtuosa. Zeus, o deus dos deuses, exigia a couve, todos os dias, em sua mesa. Alimento rústico, sadio e reparador. A erva da longa vida. Ela fica mais viçosa quando plantada em terrenos devidamente adubados com materiais fecais ou mesmo imundícies das cidades. Na botica primitiva, dada sua dotação de enxofre, a couve, de sabor sempre agradável, era responsavelmente recomendada para a cura de úlceras, assim como xarope privilegiado para bronquites crônicas e outras afecções pulmonares renitentes. Médicos de prestígio internacional a receitavam contra os vermes intestinais e também como antiescrofulosa. A couve contém preciosas matérias albuminosas, princípios sulforosos, fosfastos, azoto, ferro orgânico e amidos. O grande Napoleão Bonaparte, dizem, cultivava com zelo, ele próprio, um canteiro de couve em seu Palácio de Fontainebleau. E quando partia em suas campanhas militares, deixava sempre um serviçal de estrita confiança, exclusivamente por conta de seu canteiro de couve. O Dr. Mauneyrat dedicou longos e longos anos de sua vida científica a fazer pesquisas conscienciosas e devidamente comprovadas sobre o alto teor de ferro da couve face aos demais alimentos. Os portugueses, nosso povo amigo, descobridor e fundante, sempre inteligentes e espertos, não dispensam a couve no seu caldo de unto, com arroz ou bacalhau e batatas ou apenas refogada, acompanhada sempre da boa broa de milho e centeio. Mas a couve deve ser muito bem cozida, pois estômagos fracos e dispépticos, por vezes a julgam um pouco indigesta e pesada. É bem verdade que existe uma lenda judaica antiquíssima (mas de pouca credibilidade) em que se diz que Jesus, Nosso Salvador, teria sido sentenciado à morte pelos judeus, como feiticeiro. No entanto, conta a lenda, Ele só pôde afinal ser enforcado em um pé de couve, teria Ele Próprio conjurado todas as outras árvores a não aceitarem o Seu corpo. É desconhecido, até nossos dias, apesar de inúmeras e cuidadosas pesquisas documentais e arqueológicas, o motivo pelo qual a couve, especificamente a couve, teria escapado aos poderes encantatórios do Cristo. Por outro lado, a couve é bem considerada pelos cristãos mais observadores e sensíveis, pois ela é planta crucífera , ou seja, tem a forma de uma cruz, lembrando aquela do sacrifício de Nosso Senhor. Deixemos de lado essa intrigante questão, no mínimo, inconveniente nos tempos atuais. O terror da couve, isso sim, é a lagarta do Melolontha, conhecida como rosca ou verme branco, ou as lagartas Pieris brassicas e as Pieris napi ou rapae, as cryptogamicas nocivas, Plasmodiophora brassicae e mais os pulgões, todos parasitas vorazes e insaciáeis. Devem todos ser esmagados sem piedade! Falamos então abóbora, do agrião, da alface, do caruru, da aurúcula, da azedinha, da borragem, do almeirão, da catalônia, da cenoura, da chicória, do espargo, do espinafre, do mamão verde, do mentrusto, do sabugueiro, da serralha (laxativa), da taioba, do taraxaco e do tomate. Falamos. Mas alguém, pergunto, ousaria afirmar que qualquer deles, por melhor que seja, se iguala à couve – a suprema e incomparável rainha das hortaliças? Singela, perfeita e encantada couve. A couve.

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Comendo cocô

Jarbas Medeiros

Apesar do grande preconceito e aversão geral, os excrementos humanos, as fezes, mais popularmente chamados de merda, bosta ou cocô (esses últimos considerados linguagem chula, ofensiva, de mau gosto e pouco civilizada), podem, se devidamente tratados e cuidados por caprichosa e habilidosa (ou mesmo artística) culinária, tornarem-se iguarias e comidas apetecíveis, de bom paladar e odor, especiarias que denotam excelência para gourmands e gourmets, bem como para qualquer pessoa do povo apreciadora da boa comida. Nutricionistas do mundo inteiro, todos de renomada qualificação e competência, já estão realizando experiências laboratoriais e empíricas nesse sentido, apresentando, ao que dizem, todas elas excelentes resultados comprobatórios das delícias do cocô. Informa-se que eles refinam e depuram os caracteres supostamente menos palatáveis do cocô, tornando-o uma pasta alimentar de primeira qualidade. Não nos esqueçamos, aliás, que os excrementos animais são sempre excelentes adubos nutritivos para a fertilização dos campos e da lavoura. Assim, a aversão e o preconceito acima citados parecem, de fato, não proceder. Tratar-se-ia de algo semelhante à tola e insensata repugnância que muitos, por ora, sentem em relação às ostras, por exemplo, ou mariscos, ouriços-do-mar e outros frutos do mar, ou mesmo à deliciosa dobradinha, à língua bovina etc. Outros povos e culturas, no entanto, se fartam e cultuam coisas que nós outros abominamos, tais como os testículos e os olhos dos carneiros, a carne da serpente e de cobras, de cães e macacos e outros animais que não aceitamos à nossa mesa. E o que dizer daqueles antigos povos que cultuavam o canibalismo (hoje, modernos e pós-modernos serial killers às vezes também o fazem) que encontravam especial sabor na carne humana, fina guloseima para a época e para alguns assassinos de agora? Sabemos também que mesmo atualmente, em nossa cultura, inocentes e puras crianças de berço costumam habitualmente comer e lambuzar o rosto, com prazer, com o próprio cocô – causando preocupações e cuidados (afinal infundados) em suas mães. Entre os animais, isso parece comum. Eu mesmo vi um macaco, de bom tamanho e porte, no zoológico de Amsterdã, encarapitado em uma barra de ferro à meia altura do chão, defecando e ao mesmo tempo colhendo com a mão o próprio cocô e o comendo, em um único e integrado ciclo bucal-anal-excretor. É, portanto absolutamente injustificável qualificarmos o cocô como escória, como aquela coisa mais vil, desprezível e ruim, ou ofender socialmente alguém denominando-o de "cocô". O cocô tem uma cor ordinariamente escura; seu cheiro provém de um desenvolvimento de hidrogênio sulfurado ao mesmo tempo que de um certo número de produtos voláteis, como o fenol, o indol e certos ácidos gordos. Ele é constituído por substâncias alimentares insolúveis aos sucos digestivos e que resistiriam às fermentações, como a nucleina, os sais insolúveis, a celulose etc. Encontra-se no cocô os produtos de secreção do tubo digestivo, como a bílis e os produtos de descamação das células intestinais. Trata-se, como se vê, de um produto orgânico como outro qualquer, sem impurezas deletérias ou malignas, tal qual a urina, esta última, aliás, muito apreciada medicinalmente como bebida matinal (em jejum) nos hábitos alimentares e na cultura dos hindus. Dessa forma, podemos servir à nossa mesa, daqui para a frente, sem desdouro algum (e mesmo para convidados especiais), deliciosas tortas de cocô, supremos de cocô, guisados, ensopados e mexidos de cocô, croquetes de cocô, tutu de cocô, maionese de cocô, cocô à parisiense, recheado, fritada relâmpago de cocô para duas pessoas, macarrão "goela de pato" de cocô, lasanhas e pizzas de cocô, pastéis deliciosos de cocô, o português, os fritos, nhoque de cocô, nhocão de cocô, inúmeros e variados molhos de cocô, o branco, o inglês, o de creme, moqueca e cozidos de cocô, strogonoff de cocô, xinxim, refogado, vatapá e farofa de cocô, delícias do reino de cocô, rocambole, rabanadas, pudins, sonho recheado de cocô, omeletes, e pães de cocô, patês, patê de presunto de cocô, rosado, rolinhos de cocô, rolinhos fofos de cocô, pingos e recheios de cocô, revirados de cocô, salgadinhos, sanduíches, saladas diversas de cocô, a síria, a especial, a de repolho, caldos de cocô, canjiquinha, sopas de cocô de qualquer espécie e variedade, a nutritiva, a carioca, a rápida, a relâmpago, suflês de cocô, tira-gosto de cocô, bombinhas, casulos, empadinhas de cocô, sobremesas diversas de cocô, arroz-doce, amor aos pedaços de cocô, baba-de-moça de cocô, balas de chocolate de cocô, bananada diferente de cocô, banana cor-de-rosa de cocô, biscoitinhos, biscoito de polvilho de cocô, biscoito sono leve de cocô, rapidinhos de cocô, bolo peteleco de cocô, bolo pelé de cocô, bolim, bombocado, bombom, brevidade, broinha, charlotte, canjica de cocô, coalhada, cocada, queijadinha da vovó Sinhá de cocô, creme de chantilly de cocô (colorido), doce de batata com leite de cocô, de compoteira, doce de espera marido de cocô, docinho delicado de cocô, espumas flutuantes de cocô, gelatinas gostosas de cocô, a pastorinha, a rosada, a primavera, a irresistível, o licor de cocô, o leite de onça n.º 1, o n.º 2 e o n.º 3 de cocô, marshmallow de cocô feito em casa, melado, manjar, manjar quebra-galho de cocô, mousse, mingau de cocô, pé-de-moleque de cocô, rosquinhas, sequilhos, sorvetes, suspiros de araruta de cocô, e muitas e muitas outras guloseimas tentadoras e imperdíveis para o bom paladar e para a boa refeição, tudo dependendo, naturalmente, de que se obtenha um bom cocô, cocô de qualidade, em volume, massa, consistência, formato, cor e odor, tudo em quantidades adequadas. O mercado é sempre bom, como se sabe, a oferta é ampla, generosa e abundante, não há que se temer fracassos e falências nos negócios do cocô. Além do mais, alimento popular de baixo custo pode, quem sabe, socorrer e aliviar a política alimentar do Estado. Habilitem-se, pois, argutos, modernos e inspirados empresários e investidores, nacionais e transnacionais. Aqui estamos todos à mesa, no Brasil e no mundo, garfos, facas, colheres e guardanapos em riste e à mão, aguardando ansiosos e gulosos o cocô que desejamos e merecemos. Bosta enlatada, fezes empacotadas, garrafas de suculenta merda. Hurry up with the shit!

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Lira XV

Tomás Antônio Gonzaga

Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,
Fui honrado Pastor da tua aldeia;
Vestia finas lãs, e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal, e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.

Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te aos menos compassivo o rosto.

Propunha-me dormir no teu regaço
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoulas na floresta.
Julgou o justo Céu, que não convinha
Que a tanto grau subisse a glória minha.

Ah! minha Bela, se a Fortuna volta,
Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
Por essas brancas mãos, por essas faces
Te juro renascer um homem novo;
Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
Amar no Céu a Jove, e a ti na terra.

Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei dos poucos do meu ganho;
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague Marília, ou só que as veja.

Se não tivermos lãs, e peles finas,
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas,
E os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mão cosido.

Nós iremos pescar na quente sesta
Com canas, e com cestos os peixinhos:
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varão sábio, honesto e santo.

Nas noites de serão nos sentaremos
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
Entre as falsas histórias, que contares,
Lhes contarás a minha verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu entretanto
Ainda o rosto banharei de pranto.

Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;
Dizendo uns para os outros: “Olha os nossos
Exemplos da desgraça, e são amores”.
Contentes viveremos desta sorte,
Até que chegue a um dos dois a morte.

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Como vivem as pessoas

Olavo Romano

O velho jipe largou o asfalto e pegou a estrada de terra. Tudo ocorrendo normal, com hora e meia entravam em Santa Maria. Os dois casais eram estrangeiros e iam apreciando a paisagem: região montanhosa, terra fraca, campo ralo e cerrado. De vez em quando uma fazenda com capineiras em volta, barracão quase afogado no capim verde. Aí o gado era melhor, holandês preto e branco ou branco e vermelho. Mas, no geral, eram vacas magras e compridas, orelhas grandes, lembrando a origem zebuada já meio perdida.

Passaram por três mulheres que balançavam as cadeiras e equilibravam na cabeça um feixe de lenha. Um bando de anum-preto cruzou barulhento na frente do jipe. Um gavião carrapateiro voou para seu ninho. Estava quase anoitecendo.

Avistada de longe, Serra do Cristal parecia um presépio. Lá teriam de abastecer. Daí a pouco estavam subindo a rua comprida, que chegava na Praça da Matriz. Deram várias voltas sem encontrar uma bomba de gasolina. O menino sentado no passeio informou a casa, na esquina de baixo, onde podiam quebrar o galho. Foram até lá.

Um rapazinho os atendeu na porta, meio fascinado com o sotaque. Enquanto o tanque enchia, os homens quiseram saber sobre o fubá e as coisas que podiam ser preparadas com ele. O menino da gasolina pediu ajuda ao patrão. Muito calmo ele explicou como é que se fazia angu, farinha, broa comum e de fubá de canjica, sopa, mingau... A dona da casa convidou as duas mulheres para entrar, descansar um pouco, tomar um cafezinho .
— Aqui não tem indústria – disse uma delas.
— Tem não.
— O comércio também não é muito forte.
— Comerciozinho de lugar pequeno. Dá pra ir vivendo apertado.
— No caminho não vimos nenhuma fazenda grande, a terra parece fraca.
— É. Terra ruim. Nenhum fazendeiro muito forte.
— Em compensação não tem mendigo na rua.
— Tem mesmo não. A Conferência quase que só ajuda é o compadre Nicodemos, mesmo assim por questão de doença e bebedeira. No mais, todo mundo é mais ou menos remediado, nem muito rico nem muito pobre.
— A gente viu o povo na porta das casas, crianças brincando na rua. Todo mundo bem vestido. Roupa simples mas limpa e de bom gosto. Pareciam bem alimentados e com saúde. Mais importante, tinham um jeito feliz.
— No comum, tirando alguma doença ou morte na família, que isto não tem jeito de não ter, o povo é feliz. Ou conformado.
— Mas, afinal, de que é que vocês vivem ?
Apanhada de surpresa, ela pensou um minuto antes de responder. A única explicação foi esta:
— Ah, dona, acho que a gente vive é da misericórdia de Deus.

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Soneto

Gregório de Matos

Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

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Lembrança

Luiz Vilela

Lembro-me de que ele só usava camisa brancas. Era um velho limpo, e eu gostava dele por isso. Eu conhecia outros velhos, e eles não eram limpos. Além disso, eram chatos. Meu avô não era chato. Ele não incomodava ninguém. Nem os de casa ele incomodava. Ele quase não falava. Não pedia as coisas a ninguém. Nem uma travessa de comida na mesa ele gostava de pedir. Seus gestos eram firmes e suaves, e quando ele andava, não fazia barulho.

Ficava no quartinho dos fundos, e havia sempre tanta gente e tanto movimento na casa, que às vezes até se esqueciam da existência dele. De tarde costumava sair para dar uma volta. Ia só até a praça da matriz, que era perto. Estava com setenta anos e dizia que suas pernas estavam ficando fracas. Levava-me sempre com ele. Conversávamos, mas não me lembro sobre o que conversávamos. Não era sobre muita coisa. Não era muita coisa a conversa. Mas isso não tinha importância. O que gostávamos era de estar juntos.

Lembro-me de que uma vez ele apontou para o céu e disse: “Olha.” Eu olhei. Era um bando de pombos, e nós ficamos muito tempo olhando. Depois ele voltou-se para mim e sorriu. Mas não disse nada. Outra vez eu corri até o fim da praça, e lá de longe olhei para trás. Nessa hora uma faísca riscou o céu. O dia estava escuro, e uma ventania agitava as palmeiras. Ele estava sozinho no meio da praça, com os braços atrás e a cabeça branca erguida contra o céu. Então pensei que meu avô era maior que a tempestade.

Eu era pequeno, mas sabia que ele tinha vivido e sofrido muita coisa. Sabia que cedo ainda a mulher o abandonara. Sabia que ele tinha visto mais de um filho morrer. Que sido pobre e depois rico e depois pobre de novo. Que durante sua vida uma porção de gente o havia traído e ofendido e logrado. Mas ele nunca falava disso. Nenhuma vez o vi falar disso. Nunca o vi queixar-se de qualquer coisa. Também nunca o vi falar mal de alguém. As pessoas diziam que era um velho muito distinto.

Nunca pude esquecer sua morte. Eu o vi, mas na hora não entendi. Eu só vi o sangue. Tinha sangue por toda parte. O lençol estava vermelho. Tinha uma poça no chão. Tinha sangue até na parede. Nunca tinha visto tanto sangue. Nunca pensara que, uma pessoa se cortando, pudesse sair tanto sangue assim. Ele estava na cama e tinha uma faca enterrada no peito. Seu rosto eu não vi. Depois soube que ele tinha cortado os pulsos e aí cortado o pescoço e então enterrado a faca. Não sei como deu tempo de ele fazer isso tudo, mas o fato é que ele fez. Tudo isso. Como, eu não sei. Nem por quê.

No dia seguinte ainda tornei a ver sua camisa perto da lavanderia, e pensei que, mesmo que ele fosse lavada milhares de vezes, nunca mais poderia ficar branca.

Foi o único dia em que não o vi limpo. Se bem que sangue não fosse sujeira. Não era. Era diferente.

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Sincronias

Fernando Fabbrini

Era um domingo gelado. O homem estava no restaurante do clube de campo, numa mesa localizada junto ao parapeito do terraço. De lá até o chão, uns bons cinco metros de altura. O homem não sabia porque tinha escolhido aquela mesa, já que haviam várias outras disponíveis do lado de dentro, onde uma lareira tornava o ambiente mais acolhedor. Um dia frio como aquele, e o homem sentado na varanda, sozinho. Pediu uma caipivodka, encolheu-se dentro do agasalho acolchoado e ficou apreciando a paisagem da montanha envolta em neblina, até que chegou sua feijoada.

O homem escutou uma algazarra às suas costas. Eram crianças que entravam no salão do restaurante. Crianças correm demais, pulam demais, sobem onde não devem. Para tomar conta delas, uma única mãe, e bastante desorientada. O homem continuou atacando os torresmos, distraído. Foi quando aconteceu o inexplicável . Sentiu um calafrio, um sopro, uma força. Algo mandou-o virar-se para trás, agora, vamos, mexa-se! O homem largou o garfo a tempo de agarrar pelo short, no instante final, uma criança que despencava pelo parapeito, rumo à morte certa. A mãe, impotente à distância, quase desmaiou de susto.

Que tal pegar o dicionário e — tchan! — abrir direto na página da palavra procurada?

Misteriosas sincronias. Chamá-las de “acaso” ou “sorte” para min é pouco; é subestimá-las, tratá-las sem nenhuma reverência.

Hoje de manhã, arrumando meu café, fui tomado por uma súbita vontade de comer castanhas do Pará. Não que eu cultive o hábito de incluir espécies amazônicas no meu desjejum. Mas, sei lá, me deu vontade. Daí lembrei-me que existia, em algum lugar da cozinha, uma lata com castanhas do Pará, compradas numa viagem ao norte do Mato Grosso, onde fui produzir um documentário. De fato, lá estava a latinha no fundo do armário. Satisfeito com a descoberta, abri a tampa e preparei-me para comer castanhas com mel e banana amassada. Mas que surpresa: as castanhas tinham se transformando no berço natural de minúsculos insetos alados que acabavam de nascer, provavelmente no dia anterior. Estavam impacientes, aguardando que Dona Sincronia mandasse logo alguém para libertá-los.

Obedecendo às ordens da respeitável senhora, deixei a lata aberta na janela e fiquei ali, por alguns minutos, contemplando os pequenos insetos que voavam em direção ao azul da fresca manhã de abril. Estranha sensação, esta de pertencer ao mesmo mundo dos insetos isópteros.

Ilustrações de alunos de Escola de Belas Artes da UFMG

Gustave Doré Tatiana Tameirão Julius Alessandra Threvenard Cesária