Entre você também nessa rede!!!


Nome:
Email:
 

PROJETOS













  HOME  |  QUEM SOMOS  |  EQUIPE  |  ACERVO  |  PESQUISAS  |  LINKS  |  CLIPPING  |  CONTATO



    Bloco I  |  Bloco II  |  Bloco III  |  Bloco IV  |  Bloco V  |  Bloco VI  |  Bloco VII  |  Bloco VIII Voltar


Textos publicados nas lâminas – bloco I

Canção do exílio

Gonçalves Dias

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mas prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

...............................................................................

Um apólogo

Machado de Assis

Era uma vez uma agulha que disse a um novelo de linhas:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida, e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, se não eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura, não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha da costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia que me disse, abanando a cabeça: —Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

...............................................................................

O Gondoleiro do Amor

Castro Alves

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são rofundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.

E como em noites de Itália
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora
Que o horizonte enrubesceu.
— Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;
Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é —um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

...............................................................................

As lavadeiras

Ronald Claver

As lavadeiras têm um corpo mineral
E feminino é o corpo que se alonga
Em meandros

O corpo das lavadeiras é um rio de viajar
A carne
De viajar os olhos, de viajar as mãos,
A pele

As lavadeiras
Lavam nossas sujeiras e pecados

Nas pedras
Estendem nossos trapos
E nossos corpos formam
Um colorido mosaico

...............................................................................

Ronald Claver

No relâmpago dos olhos
O Jequitinhonha
É promessa no coração
Café, aperto de mão
Chapéu, olhar de soslaio
Reza, bandeira, bastão
Feira, bengala, balaio
Este povo assim
Calado, manso
É como a dinamite
Um dia explode

...............................................................................

A casualidade

Carlos Herculano Lopes

Em uma madrugada, quase de manhã, um rapaz ainda jovem, entrando nos seus vintes e cinco anos, pegou um táxi. Resultou que ele, calado por índole ou costume, estava voltando de uma festa na qual, entre amigos, havia tomado umas cervejas. Talvez só isto, a sensação de estar alegre, o tenha feito puxar conversa. Era muito reservado com estranhos. Por sua vez o motorista, acostumado a ouvir, deixou que ele falasse. Aquele diálogo, provavelmente, não passaria de um a mais dos tantos que se travam noite adentro, se de repente o rapaz – sabe-se lá por que – não houvesse confessado que era de Santa Marta, onde, quando criança, um tal de Jardel havia matado seu pai. O motorista, que até então ouvia em silêncio, sem prestar muita atenção, sentiu um calafrio, um leve tremor nos lábios e o volante vacilou, enquanto voltavam na sua memória cenas de um crime que ele tentava esquecer.

...............................................................................

A decisão

Carlos Herculano Lopes

Ela acordou no meio da noite e olhou para o marido, com o qual, momentos antes, havia discutido. Pensou nos tantos anos em que estavam casados, nas brigas cada vez mais freqüentes, no prazer que já não sentia e nele chegando tarde, cheirando a bebida e mulher. Levantou-se então na ponta dos pés, e também, sem fazer barulho, dirigiu-se ao armário de onde tirou, além de algumas jóias, as suas melhores roupas. Mas não mexeu no revólver, que ela sabia guardado. Foi até a cozinha, chupou algumas uvas e bebeu muita água. De volta ao quarto – já com a decisão tomada – e sabendo que seria para sempre, ela retirou a filha do berço, enrolou-a em uma manta, pegou a sacola, abriu a porta e chamou o elevador.

...............................................................................

Suíte bar

Sérgio Fantini

Tudo depunha contra minha permanência naquele bar. A música, a cerveja, as pessoas. Já era tarde demais, eu estava nas últimas. Quase dormindo, pedi mais uma. Desceu em zigue-zague, queimando dentro. Aquela realmente não era minha noite. A carne cozida tinha muita gordura; aliás, as almôndegas boiavam numa estranha gelatina alaranjada. Eu estava perto do fogareiro, de onde saía uma fumaça horrível, fedorenta. E perto do desespero. Dulindo e Teodolito no balcão miravam seus respectivos copos, as costas curvas, cansados. Não diziam nada, apenas se deixavam ali como continuações de seus banquinhos. Tomazinho babava para uma velha TV sobre a geladeira idem. Aquela noite ia longe...

“Energia, bicho, energia pura” foi o que Pata gritou do outro lado da rua. Olhei meio de banda, o doidão dançava. Tinha um pacote de vinís na mão e pulava do passeio pra rua e de volta pro passeio. Acompanhei aquilo por uns dois minutos, cansei e voltei meus olhos pro interior do bar, que já abrigava mais três garotos. Sentaram no salão e pediram guaraná e pinga. Em meia hora eles já tinham mandado também quatro cervejas. Bons aqueles caras. Um deles gritou qualquer coisa sobre a música. A mulher de Tomazinho ligou o rádio. Aí Dulindo levantou-se e desligou o som. Cada um, do seu canto, acompanhou a cena: o menino veio xingando “filhodaputa” e antes de eu conseguir me levantar, partiram pra porrada. Tranqüilo, Tomás contornou a situação pondo os dois pra fora. “Se há proprietário que tem meu respeito é o de bar”, panfletei pra ninguém. Afinal, quem se preocupa tanto em deixar tanta bebida sempre tão perto de mim?

Quando um carro de polícia estacionou, eu não tive mais dúvida: a noite estava definitivamente perdida. Mas não foi tão ruim, eles comeram ovos cozidos e tomaram refrigerantes. Simpáticos aqueles rapazes, apesar das mortes penduradas na cintura.

Agora o bar se movimentava um pouco. Pelos gritos percebia-se que rolava um truco no salão. E eu continuava cultivando uma mulher no meu espírito quando notei que um dos três garotos me olhava esquisito. “Meu Deus, uma cantada às duas da madrugada”, eu pensei, era só o que me faltava. Ele olhava, olhava... olhos empapuçados, cabelos na testa... E se levantou. E caminhou em minha direção. E tirou o cigarro da minha boca. E jogou o meu cigarro na rua! E eu lhe dei um chute no saco. Ele voltou pra sua turma, gemendo. Ninguém fez nada. O pessoal entende quando tô triste.

...............................................................................

silêncio

Carlinhos Brown / Arnaldo Antunes

antes de existir computador existia a tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão da semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
batedeira liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito esse tambor.

...............................................................................

Não me deixes

Gonçalves Dias

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava...
“Ai, não me deixes, não!

Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante:
Mas não me deixes, não!”

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
“Ai, não me deixes, não!”

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
“Ai, não me deixes, não!”

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
“Não me deixaste, não!”

...............................................................................

Espírito natalino

Moacyr Scliar

“Homem disfarçado de Papai Noel tenta matar publicitária em SP.” (Caderno Cotidiano – FSP – 18-12-01)

Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, sub- metralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal resmungou. 0 seu mau humor era tão óbvio que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa.
— Como foi o seu dia, perguntou.
— Um desastre, foi a azeda resposta. — Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.
— Isto é o cansaço — disse ela.
— Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?
— De que jeito? Tenho trabalho.
— Amanhã? No dia de Natal?
— O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel Tenho de aproveitar.
Suspirou:
— Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração.
Ela ficou pensando um instante. — Neste caso — disse —, vamos antecipar a nossa festinha de Natal Vou lhe dar o seu presente.
Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:
-Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?
— Ora — disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.
Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.
— O que é isto? perguntou intrigado.
Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:
— Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.
Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.

...............................................................................

Ismália

Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

...............................................................................

A estranha manhã de Gregório Santos

Francisco de Morais Mendes

Sete horas. Ao toque do despertador, Gregório Santos levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Urinou e escovou os dentes. O ruído do barbeador elétrico o ajudou a sentir-se desperto. Em seguida, livrou-se do pijama e entrou no chuveiro. Teria um encontro, às oito horas, com o gerente regional. Isso não queria dizer nada, porque nunca se atrasava para o trabalho. Quando deixou o banheiro, de toalha em volta da cintura, a mulher já havia colocado sobre a cama o terno, a camisa, a gravata, a cueca e as meias e penteava-se na frente do espelho do guarda-roupa.

Bom-dia, ela disse.
Bom-dia, respondeu, dando-lhe um beijo na nuca.
A que horas você veio dormir? Eu estava tão cansada que não vi você deitar.
Fiquei lendo até onze e meia, esperando a Paula chegar. Ela pediu para você chamá-la às dez.
Gregório vestiu-se e foram para a mesa do lanche. Faltavam vinte para as oito quando ele apanhou a pasta, recebeu um beijo da mulher e deixou o apartamento. Manhã agradável, pensou, ao sair à rua.

Os carros estacionados, as lixeiras vazias, o portão da oficina mecânica eram parte da paisagem que ele percorria diariamente, nos seis quarteirões que separavam sua casa do escritório. Era capaz de antecipar as pessoas que iria cumprimentar: o velho Soares da papelaria, no quarteirão da frente, a moça da loja ao lado do prédio da empresa.

Cumprimentou o velho Soares e já alcançava o terceiro quarteirão quando teve o sentimento de já haver passado por ali. Não se importou, sabia da impressão de já ter vivido algo que acontece. Voltou a pensar no encontro com o gerente regional, que não via há seis meses.

Ao atingir a esquina seguinte, a impressão foi a que se desviara do caminho: as construções eram irreconhecíveis. Parou, voltou-se, o caminho percorrido era o mesmo de todos os dias. O reconhecimento deu-lhe tranqüilidade, mas quando se virou para seguir em frente, as coisas não estavam melhores.

Estou tendo uma alucinação, pensou, e imediatamente ocorreu-lhe que, se fosse verdade, não teria consciência disso. Pessoas passavam por ele, havia outras no ponto de ônibus, o ponto no mesmo lugar. Reconhecia algumas pessoas, como reconhecia a mulher que batia um tapete na janela e gritava para o homem que fechava o portão: não esqueça os tomates. Conhecia-os de vista.

Virar à esquerda no final do quarteirão, entrar à direita na outra esquina e na metade do segundo quarteirão entrar no prédio da empresa, é o que devo fazer, pensou. Era este o caminho, e não se atrasaria por causa de um súbito embaraço. Repetiu em voz baixa seu nome e o número de CPF, ele era ele mesmo, não havia dúvidas. Sua mulher se chamava Mariana, e a filha, Paula. Olhar em torno é que era desolador.

Tirou o telefone da pasta e ligou para o escritório. Faltavam dez para oito; estava no lugar certo, no momento certo. A secretária atendeu e ele perguntou se o gerente já havia chegado. Ainda não, ela disse. E aí, está tudo bem?, perguntou. Sim, ela respondeu. Eu já estou chegando, ele disse, querendo acreditar mesmo nisso. Ao abaixar o rosto para guardar o telefone na pasta, uma gota de suor pingou no fecho da pasta. Levou a mão ao rosto, estava de fato suando.

Pensou em voltar para casa, mas achou que seria uma derrota. Além disso, havia o gerente regional. Foi em frente. Atravessou o quarteirão desconhecido, acreditando que adiante o mal-estar teria passado. Na esquina verificou que algo de estranho realmente ocorria. Aquele não era mesmo o seu bairro: viu casas onde antes havia prédios e o terreno do estacionamento ocupado por um imenso edifício. Sabia das novas teorias sobre as mudanças na percepção do tempo, mas o espaço? Não, droga, o espaço não! Isso não estava acontecendo com ele.

Pelo meu senso de orientação, eu estou na rua certa, pensou. Vou ultrapassar este quarteirão e o prédio da companhia estará lá, no meio da próximo quarteirão. E chegarei a tempo. Olhou o relógio, faltavam dois minutos para as oito horas. Chegaria um pouco atrasado, porque havia parado por duas vezes. E seguiu, trancado em sua convicção.

Atravessou a rua sem se importar que a fachada da casa da esquina fosse absolutamente desconhecida. Agora sim, estava na calçada do prédio onde trabalhava. As pessoas passavam por ele normalmente, ninguém manifestava qualquer estranheza. Então reconfortou-o pensar que, como ele, todos disfarçavam o incômodo. A não ser uma mulher, bonita, elegante, que parecia confusa, como quem procura um endereço e não encontra.

Mas ele encontraria, e seguiu como se nada de estranho estivesse acontecendo. E não estava mesmo, porque ali estava a loja e lá dentro a moça, que acenou para ele. Retribuiu com um sorriso. Está tudo bem, agora, pensou, tranqüilizando-se. E, passos decididos, avançou em direção ao edifício. Que não estava lá.

...............................................................................

Emília e o acaso

Francisco de Morais Mendes

Emília recebeu uma nota de troco, na qual havia um número de telefone. Somente viu o número quando foi pagar os cigarros. Então revirou a bolsa à procura de outra nota e guardou aquela nota. Abaixo da nota estava escrito: "Alexandre está a perigo, ligue para ele". Era o primeiro dia de um novo emprego e Emília perdera a conta dos empregos que tivera. A mãe era paralítica, o pai recebia uma miséria de aposentadoria mas o pior nem era isso. O pior: o pai andava cuspindo sangue. Com dignidade, tentava esconder da família este fato, mas Emília tinha visto de relance, na pia do banheiro, a triste sina que aguardava o velho Fajardo.

Tinha vinte anos, estudava à noite na faculdade pública, onde flertava com dois irmãos, e durante as aulas chatas remexia a bolsa observando seus objetos incansavelmente. Numa dessas noites, deu com a nota. Esse Alexandre não deve existir ou então fizeram uma sacanagem com ele.

O emprego era monótono, a vida era monótona. Um colega de serviço demonstrava por ela mais interesse que o normal, mas Emília observara que havia uma garota interessada nele e ainda não tinha como medir a importância das pessoas ali. Morava com os pais num dois quartos no centro da cidade, num prédio velho em que o elevador rangia como se suplicasse que lhe dessem um fim.

Numa tarde de sábado, ligou para o número da nota. Nenhum Alexandre. Mas havia um sujeito, Flávio, com quem manteve uma conversa agradável, antes que ele esclarecesse se um algarismo era quatro ou sete no número que discara. Conversou com Flávio descontraidamente, pois assim estava preparada para conhecer o Alexandre: descontraidamente. Ao comentar como obtivera o número do telefone, ele riu e disse que jamais imaginaria que alguém pudesse se importar com o que quer seja que escrevam em notas. Nem eu, ela disse. Ele quis marcar um encontro, mas ela recusou. A maneira de ter o domínio do jogo, decidira bem antes, era poder escolher quando ligar, quando encontrá-lo, quando deixá-lo.

Desligou o telefone, prometendo que voltaria a ligar, mas deixou passar o tempo. O emprego no escritório de contabilidade ia bem, havia passado um mês e não se sentia incomodada. O desafio que consumia suas energias era convencer o velho Fajardo a procurar um médico. Ele estava se referindo a si mesmo como um velho fardo, tinha a sina inscrita no nome, e isso doía de ouvir. Emília achava que estava chegando a uma encruzilhada na vida, que restava aguardar, mesmo porque não tinha como antecipar os dias.

Quando voltou a ligar para Flávio, ele não demonstrou interesse em conversar com ela. O colega por quem se interessara estava namorando a outra garota. O pai agora estava se tratando. Quando por acaso encontrou outra nota com o nome de um sujeito e um número de telefone, começou a achar que a vida estava dando voltas em torno dela. A primeira compra que fez pagou com aquela nota e não pensou mais no assunto.

Daí a alguns dias conheceu um sujeito chamado Alexandre. Na terceira vez que saíram juntos, ele deixou as notas sobre a mesa do bar para pagar a conta e foi ao banheiro.

...............................................................................

Paz

Rubem Fonseca

O nome era Lutetia, mas as pessoas escreviam Lutécia, até o sujeito do registro civil fizera isso. Mas antes de soldarem o nome sobre o mármore polido, ela verificaria todas as letrinhas de metal, uma por uma, para não haver erro. Há coisas que se você não faz, os outros fazem errado por você. Por isso ela tivera o cuidado de tomar todas as providências necessárias.

Era um lugar bom para passear, cheio de aléias arborizadas, vazias e silenciosas. Naquele dia, numa das alamedas, surgiu um cortejo de pessoas caminhando caladas. Lutetia se afastou para longe, não queria assistir à cerimônia que ia se realizar. As pompas que envolviam aquela solenidade, por mais modestas e discretas que fossem, não a interessavam. Ela preferia contemplar as esculturas, dois anjos, um contrito, outro de asas abertas como se fosse levantar vôo, o busto de um homem engravatado, um avião, daqueles antigos com hélices, uma lira, uma partitura com notas musicais.

Ao voltar para casa Lutetia teve, outra vez, a sensação de que aquele não era mais o seu lugar. Como se estivesse num quarto de hotel, um espaço ocupado provisoriamente, que não era dela. As cortinas, os móveis, os quadros, os objetos, a cama com a colcha, o armário de roupas, eram coisas estranhas, desconhecidas, que aumentavam sua vontade de partir. Mas pensou na bailarina clássica de bronze, dançando com os braços abertos, que mandara esculpir para soldar sobre o mármore polido, o que lhe deu paciência e ânimo para esperar o que ia acontecer.

Numa quinta-feira, depois de tudo pronto, ela voltou ao cemitério. A bailarina já estava colocada sobre a lápide. E também as letras do seu nome, Lutetia, apenas o nome, ela não queria nenhuma data.

Olhou em torno. As sepulturas, do mesmo tamanho, apenas a cor do mármore variava, estavam dispostas com bela simetria ao longo da aléia. Perto havia uma árvore que projetava uma sombra sob a qual Lutetia se abrigou.

...............................................................................

Cenas urbanas

Haicais de Jorge Fernando dos Santos

Buzinas e apitos
motores e britadeiras
música concreta

Buraco na rua
ferida aberta no asfalto
pele da cidade


Trem de ferro apita
chorando as mágoas
do maquinista

Manequins miram
manequins na vitrine
espelho às avessas

Menino viciado
em cola de sapateiro
tem os pés descalços

Cai o temporal
o rio brinca de mar
no mangue das ruas

Olha a sorte grande!
Vendedor de loteria
vende o que não tem

Vem a passeata
serpente de mil cabeças
um só pensamento

Ergue-se o Boeing
no oceano de ozônio
Peixe prateado

Postes da avenida
cruzes iluminadas
no calvário da noite

Espinhas de peixe
parabólicas ligadas
na onda da novela

Sobre a capital
brilha a moeda de prata
lua capitalista

Ilustrações de alunos de Escola de Belas Artes da UFMG

Gustave Doré Tatiana Tameirão Julius Alessandra Threvenard Cesária