A ancestralidade em arte na exposição Um defeito de cor

Aline Alves Arruda*

 

Em janeiro deste 2023, estive no Museu de Arte do Rio (MAR) para visitar a exposição Um defeito de cor, que foi inaugurada em setembro de 2022 e fica neste museu até maio próximo. Com o mesmo título do romance da escritora Ana Maria Gonçalves, a exposição é uma interpretação do famoso livro, publicado em 2006, que deu à autora o importante prêmio Casa de las Americas em 2007.

O livro de Ana Maria narra em mais de novecentas páginas a saga da africana Kehinde. Nascida em Benin, ela e a irmã gêmea, Taiwo, seguem para o Brasil em um navio negreiro, junto da avó e, a partir da sua diáspora, acompanha-se a história da escravidão brasileira numa perspectiva afrocentrada, através de uma narrativa extremamente envolvente e bem lapidada, que merece, a essa altura dos seus 16 anos de publicação, uma exposição principal em um dos mais visitados museus da capital fluminense e do Brasil.

A exposição tem curadoria da própria autora, também de Amanda Bonan e Marcelo Campos. São cerca de 400 obras numa coletânea que reúne pinturas, colagens, vídeos, esculturas, instalações, de artistas brasileiros e africanos, sendo a maioria formada por mulheres negras.

Já na entrada da exposição somos expostos a um corredor com vários provérbios africanos, como: “O hoje é o irmão mais velho do amanhã e a garoa é a irmã mais velha da chuva”; “Aquele que tenta sacudir o tronco de uma árvore sacode somente a si mesmo”, impressos na parede e envoltos em tecidos de Goya Lopes, exclusivos para essa passagem inicial: são as 10 epígrafes dos 10 capítulos do livro. O visitante já é, portanto, chamado a adentrar outra cosmogonia, assim como o leitor que inicia o livro de Gonçalves. Em seguida, o feminino é exaltado em dezenas de obras de inúmeras artistas, como a da fotógrafa Márvila Araújo, a da artista plástica e muralista Kika Carvalho, a da artista visual Silvana Mendes e a da surpreendente Nádia Taquary. Em uma das instalações, há uma paisagem sonora criada por Tiganá Santana e Jaqueline Coelho, em que é possível ouvir trechos do livro narrados pelas vozes da autora e de personalidades negras, como a da professora e pesquisadora Leda Martins.

A exposição é dividida em 10 núcleos como os 10 capítulos do livro, e algumas das obras foram feitas especialmente para a ocasião. Assim, Antônio Oloxedê, Goya Lopes, Kika Carvalho e Kwaku Ananse Kintê conceberam obras especialmente para a exposição, como os quadros “Emife é”, de Kika, que ilustram essa resenha, e representam as personagens ibêjis Kehinde e Taiwo, unidas pelas conchas usadas como adereços nos cabelos das irmãs, conforme descrito no livro. Um defeito de cor, exposição e livro, é uma ode à memória ancestral africana que veio para o Brasil de forma violentada, mas que resistiu e imprimiu aqui, a duras penas, sua resistência cultural, artística e religiosa. O trauma dessa história representado pela personagem Kehinde pode ser visitado nestas obras e ressignificado para exaltar a arte que permanece dele.

A exposição está em cartaz até 14 de maio de 2023, no MAR: Praça Mauá, nº 05, Centro, Rio de Janeiro-RJ.

 

Referência

GONÇALVES, Ana. Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

BONAN, Amanda; CAMPOS, Marcelo; GONÇALVES, Ana Maria (curadores). Um defeito de cor. MAR: Rio de janeiro, 2023.

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* Aline Alves Arruda é professora do IFMG, campus Betim; pós-doutora em Estudos da Linguagem pela UFRPE; doutora em Literatura Brasileira pela UFMG; membro do grupo de pesquisa NEIA/Literafro – UFMG.

* Imagem de entrada da artista e muralista Kika Carvalho.

 

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