A cor de um verso: despertar da consciência negra

Harion Custódio*

Um tópico de crucial importância na poesia de Michel Yakini é a abordagem dos elementos relacionados à diversidade social e cultural afro-brasileira. O tema se anuncia no próprio título Acorde um verso, sugerindo diferentes interpretações que estabelecem contato entre si, obedecendo ao projeto poético de um autor que quer tratar de questões que atingem esta comunidade a partir de um ponto de vista interno ao afrodescendente. Tal condição integra sua história de vida e certamente terá algum peso em sua escrita.

O título do livro demonstra a capacidade do autor em lidar com a linguagem artística e já indica o projeto estético subjacente à obra. Acorde um verso (vale ressaltar que na capa do livro a sílaba “cor” da palavra “acorde” vem grifada em negrito com a cor vermelha) pode ser lido e entendido como “a cor de um verso”. Portanto, Yakini afirma de maneira implícita que a sua literatura possui cor – a cor negra – e se insere em uma categoria de escritores negros que dramatizam e problematizam questões acerca do afro-brasileiro; e que resgatam a linguagem, os símbolos e as imagens da cultura e da tradição afro-brasileira, criando assim uma literatura negra.

Outra acepção possível para o título é interpretá-lo de acordo com o significado do verbo “acordar”. A literatura negra tem como característica a adoção de ideologias e visões políticas – a emancipação dos negros, a crítica ao racismo e à discriminação – abordando problemas sócio - estruturais que afetam o negro, como a pobreza, a exclusão, a discriminação, e a violência. Neste sentido, o “acorde” pode ser lido como uma tomada de consciência do negro sobre si, sobre sua comunidade e sobre a realidade social que o cerca, sugerindo um despertar, um movimento interior em busca de uma (re)descoberta. E por último, outra interpretação pertinente ao título pode ser feita se levarmos em conta o sentido musical e rítmico da palavra “acorde”. Um acorde musical é um som produzido tocado por duas ou mais notas simultaneamente. Percebe-se, então, neste sentido implícito o compromisso e o projeto do escritor em trabalhar as potencialidades da forma poética como razão de ser da poesia. Entretanto, o acorde da poesia de Yakini tende mais à dissonância do que à harmonia, diferentemente da “poesia pura” defendida pelos formalistas. A literatura negra se posiciona nas margens do cânone literário estabelecido. Ao representar o afrodescendente, problematizar a situação política e social, resgatar a cultura e a história e criar uma linguagem com elementos e símbolos próprios, o escritor está indo à contramão ao modelo eurocêntrico, por isso o valor dissonante do acorde: “ave verso do avesso!”.

Partindo para a análise de alguns poemas, em “Poemissão”, a temática da afrodescendência é trabalhada de maneira exímia: “encrespar/as espirais,/me aquilombar/na confluência malunga,/me umbigar nos quintais/como semente forte,/fecunda”.(YAKINI, 2012, p.16). Percebem-se nestes versos poderosas imagens que remetem a elementos da linguagem e da cultura afro-brasileira, um movimento de busca e afirmação, de reforço e reconhecimento da negritude do eu-lírico. E em seguida, surge novamente a necessidade de se fortificar e de se reafirmar como negro: “amar... /com mais cor,/escurecer a/ afirmação”. Percebe-se expressivamente neste poema um sujeito emancipado, consciente de sua própria afrodescendência, mas que mesmo assim sente necessidade de se reafirmar, de resgatar seu passado histórico, obedecendo ao projeto do acordar.

Já em outro poema, “Mapas de asfalto”, o tratamento poético da questão negra se faz de maneira diferente. Neste a periferia é enfatizada de maneira sugestiva: “há tempos que o céu/ das beiradas/ acorda cinzento”. Há também certa problematização da situação social que esta parte da cidade se encontra, aliada a certo pessimismo em relação à realidade presente: “a esperança passa/ como ventania/ pelas ladeiras/ e o asfalto grita/ denunciando/ mentiras vencidas/ são heranças de uma/ cidade açoitada/ em silêncio”.(YAKINI, 2012, p.22). Entretanto, tal imagem desoladora e lúgubre é contraposta pela esperança otimista que o poeta deposita sobre a juventude: “nos mocambos de hoje/ germina a resistência/ do amanhã/ no olhar da molecada/ vejo uma trilha/ sedenta de história (...) e na espreita das ruas/ ecoam as rimas/ num versar ritmado de/ redenção!”.(YAKINI, 2012, p.23).

“Sereia”, outro grande poema do livro, evoca a beleza e a grandiosidade de uma divindade. Poema este que se assemelha em grande parte aos cantos dos terreiros afro-brasileiros: “arabôayô!/arabôayô!/Odòìyá rainha!/ tu que és musa/ soberana dos poetas/ embala toda essa gente/ que faz terreiro no seu quintal/ e clama proteção/ em barquinhos de esperança”.(YAKINI, 2012, p.48).Fica explícito nestes versos o conhecimento e a intenção do autor em resgatar a linguagem africana, dialogando e estabelecendo um movimento intertextual com a tradição cultural afro-brasileira: religião, mito, símbolos.

A poética de “linha f” possui cunho existencial. Nesta, é dramatizada a situação do indivíduo explorado e alienado, condição a que está submetido um enorme contingente de pessoas: seres que “encurralados”, “esmagados” e “apertados” pelo sistema cruel e excludente, se encontram com o próprio Eu esfacelado e fragmentado. Enfrentam o desgaste e a opressão para garantir o mísero do mínimo, “para sentar dignamente/ no assento do trem” e mesmo assim “não cuida da saúde/ muito menos da família/ mora mal/ come mal/ dorme mal/ é mal pago”.(YAKINI, 2012, p.14).O eu-lírico, no início do poema, dirige sua raiva a outro, que supostamente é o causador de seu sofrimento. Porém ao confrontá-lo e mirar “no deserto de sua retina” reconhece a si mesmo neste indivíduo. O outro já não é mais o outro; assim como, ele é um mísero e explorado sujeito. E o trem é metáfora da vida, do tortuoso caminho dos humilhados.

Recorrendo novamente ao título do livro, que não contempla apenas este, mas a maioria dos poemas, a negritude em “Oferenda” é construída de maneira mais explícita, ressaltando a cor da poesia, como vem já nos primeiros versos, onde a afirmação da origem se faz forte: “celebre o mocambeiro/ acenda o chamado”. Os últimos três versos salientam a vontade da mudança, da transformação, da apropriação histórica e, novamente, da afirmação da negritude: “e anuncie em temporais/ que o negro/ nunca mais foi o mesmo!”.(YAKINI, 2012, p.20). Em “Regurgito”, através de imagens que remetem à náusea e ao mal estar, de maneira implícita é trabalhada a questão do racismo, podendo ser apreendida até mesmo uma crítica ao mito da democracia racial: “há uma má digestão/ de integração/ mirando minha face/ tapinhas no ombro/ enganando o paladar/ me fazendo vomitar/ angústias diárias”.(YAKINI, 2012, p. 21).

O diálogo com as imagens míticas da cultura afro-brasileira está presente em “Rebento”, poema dedicado à filha de Yakini: “quando nasci fui consagrada/ nas palavras ancestrais/ banhada com águas de cabaça/ perfumada com incensos de proteção”.Trata-se da celebração do nascimento de sua filha, mas como se pode observar é uma consagração contrária ao molde cristão europeu, se aproximando do batismo feito pelas religiões afro-brasileiras.

A negritude e a africanidade, em seus diferentes aspectos – históricos, políticos, sociais e culturais – estão presentes de forma marcante em Acorde um verso, sendo dois elementos de fundamental importância nesta obra. Porém, é possível também apreender no livro um movimento de interiorização, de subjetivação, de procura e descoberta. “Cheiro d’água” representa essa busca interior e um movimento de autoanálise: “escreverei um poema/ sem uma palavra sequer (...) será escrito na calma/ em gotas lacrimejantes/ contornará meus instantes/ até escorrer pela palma/ secando todas as dores/ e umedecendo minh’alma”.(YAKINI, 2012, p.39). Do mesmo modo, “ser silêncio” representa a subjetivação através do silêncio como forma de anulação: “me deixe ser silêncio/ só silêncio. Em “desejo” as imagens são predominantemente eróticas e sensuais, mas a sensualidade aponta para o sexo não apenas como ato carnal, mas sim como descoberta e forma de reflexão através da inversão, da subversão, do profano: “dessacralize meus orikis”. O sexo como ato de explorar e transcender os sentidos: “mas leia-me.../ com tesura e vontade/ devagarinho,/ com a língua”.(YAKINI, 2012, p.56).

Em Acorde um verso, todas as poesias fazem jus ao título. Trata-se de boa literatura negra, que explode em sentidos, que penetra em nossa alma humana, oferecendo um verdadeiro despertar. É Poesia que transcende, que nos tira da comodidade do lugar comum.

Referências

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

YAKINI, Michel. Acorde um verso.São Paulo: ECDE, 2012.

* Harion Custódio é graduando do bacharelado em Letras na Fale/UFMG.

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