Joãozinho acomodou-se no chão ao lado de uma caixa cheia de revistinhas. E uma coisa o deixou intrigado. Lá fora, no lusco-fusco da noite que chegava, ele poderia jurar que viu, escondido entre as flores do jardim em uma moita de capim-cidreira, um molecote, menor do que ele, com uma carapuça vermelha na cabeça, atento ao que se passava na casa. Em um segundo ele sumiu, num pé-de-vento que agitou as folhas das roseiras.

Joãozinho pensava no assunto quando ela chegou. Entrou na sala azul como se fosse a lua, a quem os índios chamavam Jaci, quando surgia por sobre os telhados das casas da cidade na primavera, clareando tudo. Seus olhos, atentos, pareciam dois favos redondos de mel, dourados e doces. Trazia nas mãos uma sacola cheia de livrinhos, que entregou à professora com um abraço. Todos a saudaram com carinho, seu sorriso era o mais lindo que ele já vira!

Joãozinho ficou meio abobado, olhando a menina de blusa florida e saia comprida, assentada em uma cadeirinha com rodas de bicicleta, que ela girava com as mãos delicadas como se de fada fossem. Ficou assim, olhando, até que a história acabou e a professora fechou a mala, despedindo-se das crianças. Joãozinho então puxou conversa, queria saber quem era aquela menina, a filha da lua, que àquela hora já iluminava a rua e o quintal. Ela deu-lhe o seu melhor sorriso:

– Eu me chamo Luana, ela disse. E você, quem é? Perguntou. Sua voz era tão doce como as jabuticabas do quintal da vovó, bem mais do que canas que chupava lá no sítio, tinha o mesmo gosto dos docinhos de coco que sua mãe fazia para as festas de fim-de-ano.

(A menina da cadeira, p. 9-12).

 

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Chegaram à sorveteria. Era uma lojinha bonita, toda colorida. Mas, pena, não tinha como Luana entrar em sua cadeira de rodas. Tinha quatro degraus para subir e a calçada estava toda esburacada em frente, não ia dar, não! Seguiram em frente, chegaram a uma doceria onde também vendiam sorvetes. Também não tinha rampa, Joãozinho ficou triste. Em outra também não tinha, as calçadas eram como muros a separar a rua dos lugares aonde queriam ir.

Perto da praça onde tinha muita gente conversando encontraram um menino chamado Ariel, que usava óculos escuros e segurava um cachorro pela corda. Era um menino especial, que não enxergava como as outras pessoas. Onde todos viam cores e formas, ele, mesmo sem visão, conseguia enxergar algo mais, parecia que via a alma da gente! Resolveram ir juntos até o coreto da praça. No caminho, Ariel, o novo amiguinho de João, quase caiu em um buraco que ninguém viu. Se não fosse tatu, o esperto cão-guia, ele teria ido parar no hospital. Pararam em frente à sorveteria, na pracinha do coreto. Era o único lugar em toda a cidade que tinha rampinha, Luana poderia enfim entrar, como qualquer criança, e pedir um delicioso sorvete de maracujá, seu predileto. Todos ficaram felizes, principalmente o dono, Seu Hélio, que tinha sempre um sorriso aberto e cantava no coral da igreja. Ele achava uma falta de respeito a cidade ser assim, tão difícil para as pessoas com alguma limitação

(A menina da cadeira, p. 15-16).

 

 

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Joãozinho teve então uma ideia. O negócio era juntar um montão de gente e fazer uma passeata, igual à que ele vira na tevê. Poderia começar chamando o pessoal da biblioteca, onde ele conheceu Luana, chamar os coleguinhas da escola. Podiam fazer cartazes. Chamariam seu Hélio pra cantar, tinha um grupo de percussão na biblioteca, que ensaiava à noite, podiam ir tocando. Podiam parar em frente à casa do prefeito e exigir rampas em todos os lugares, na escola, no teatro, nas praças, nas sorveterias principalmente. Todos gostaram da ideia, já estava na hora de fazerem alguma coisa para a cidade ficar melhor pra todo mundo. Começaram logo os preparativos, Joãozinho escreveu numa cartolina uma palavra nova, que aprendeu na escola. A professora ensinou que o que todos queriam e seus amiguinhos mais precisavam era acessibilidade.

(A menina da cadeira, p. 18-19).

 


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