Relíquias da Cultura Nacional

Não fossem as duas medalhas toscas penduradas no pesco­ço, o corpo do malandro Zé Menino teria sido jogado no canal do Mangue. Seria um mero incidente de carnaval. O carro alegórico que o atropelou tinha proporções gigantes­cas, sendo o mais luxuoso que o Grêmio Recreativo Acadê­micos Imperiais trouxera naquele ano para o desfile. Quem sentiria falta do velho Menino?

Mais da metade da escola já desfilava sob as luzes da Pas­sarela do Samba quando ocorreu o imprevisto. É claro que, no momento exato em que o carro passou por cima dele, ninguém, ou quase ninguém, percebeu. Só viram o corpo do sujeito quando uma das rodas laterais emperrou. "Tira esse velho bêbado daí, tá tirando o rumo do carro, Anda rápido com isso!", gesticulava, aos gritos, o diretor de har­monia. Realmente, Menino atrapalhou o mais belo carro do Acadêmicos Imperiais, que naquele ano trazia o enredo Relíquias da Cultura Nacional.

O mastodonte vinha fechando a apresentação da escola, à frente apenas da ala da diretoria, e reproduzia um antigo botequim, com os tradicionais azulejos em preto e branco cobrindo as paredes. O palco móvel tinha na boca de cena mesinhas de madeira com tampos imitando mármore e, ao fundo, um grande balcão de boteco, com o boneco de um galego de grossos bigodes diante de uma caixa registradora, daquelas do tempo do Onça.

Mas o grande show estava nas mesinhas do bar. Esculpi­das em gesso, as réplicas dos velhos sambistas eram perfeitas. Num encontro de bambas inimaginável, confraternizavam entre copos de cerveja e cachaça, com seus violões, flautas e pandeiros, figuras como Nelson Cavaquinho e Noel Rosa la­deando Ismael Silva. Logo a seguir, se podia ver Pixinguinha fazendo uma firula na flauta, para deleite de Donga, Bide e Cartola. Geraldo Pereira, lá atrás, vinha cochichando alguma coisa no ouvido de Sinhô, enquanto Carlos Cachaça, alheio a tudo, erguia um pequenino copo no ar, fazendo jus ao nome.

O problema é que o velho preto achou de ter troço ali, na concentração, bem no meio da pista da Presidente Vargas, a alguns metros da entrada da Marquês de Sapucaí. O aciden­te, segundo um dos empurradores do carro, ocorreu quan­do o homem pulou na frente do Mestres do Samba – esse era o nome do carro – e ficou estupefato, admirado com o que via. Segundo o rapaz, ele já estava caído quando foi atropelado. Talvez, tivesse sofrido um infarto. Mas, naquele momento, nada parecia interessar ao diretor de harmonia. A escola tinha que passar e, é claro, com a sua principal alegoria. "Joga esse velho no Mangue", ele ordenou a dois operários da escola.

Entre mulatas esculturais desnudas, corpos suados e alas de malandros estilizados, um repórter iniciante corria de um lado para o outro com sua caneta e seu bloquinho nas mãos. Ele ficou sabendo lá na frente que o Mestres do Samba havia atropelado gravemente "uma passista". Veio correndo em direção à concentração entre as alas, seria sua chance de ter um furo de reportagem. Chegou a ser agarrado por um dos seguranças da escola, mas conseguiu se desvencilhar e continuou correndo. Chegando à outra ponta, viu o carro majestoso se preparando para entrar na Avenida. Na ala dos diretores, logo atrás, procuraram minimizar o caso. Já esta­ria tudo resolvido, "o importante agora é o carnaval", dizia um deles.

No entanto, o repórter não se convenceu. Como quem não quer nada, seguiu em direção à área da armação. A Aca­dêmicos Imperiais, enfim, estava por inteiro na pista, mas seu espaço na concentração ainda não havia sido ocupado pela escola seguinte. Ouviu, então, um vendedor de cerveja comentar com um freguês, ao abrir o isopor para pegar uma lata, algo como: "Ninguém respeita mais ninguém. Vê só, foram jogar o pobre coitado no Mangue, como lixo".

O jovem escriba pediu uma gelada e passou a apurar de­talhes sobre o "lixo" do qual o ambulante falava. Confir­mou que não se tratava de uma passista, mas de um velho que se colocou diante do carro gigante. "Passaram com o corpo ainda agora para lá". Essa foi a senha para ele largar um punhado de moedas contadas sobre o isopor e correr no rastro do cadáver.

À beira do canal do Mangue destacava-se uma confusão maior do que o repórter poderia supor, com um bate-bo­ca geral entre seguranças oficiais e não oficiais. O foca se aproximou e finalmente viu no meio do bolo o corpo do homem jogado ao chão, pronto para ser lançado no canal fétido que rasga a avenida Presidente Vargas.

Quem impediu tudo foi uma velha baiana vendedora de cocada, que chamou um guarda e denunciou o descaso com o corpo do homem. Mas, ainda assim, o fato seria consu­mado, sobretudo porque o guardinha não tinha autoridade alguma. A ordem, conforme os seguranças da escola disse­ram, era apagar a história do atropelamento. "O Homem não quer problemas com os homens", teria dito um deles.

A velha, percebendo que o jovem curioso não era sambis­ta nem segurança, mas alguém de fora interessado no caso, o chamou num canto.

– Ele foi um grande compositor no passado, muito respei­tado no Estácio, era da minha Unidos de São Carlos. Você já ouviu falar na pioneira Deixa Falar? Ele foi um dos fundadores – disse a ambulante quase sussurrando no ouvido do rapaz. E mostrou que sabia mais do cadáver do que se supunha:

– Abre a camisa dele; ele carrega no peito um pouco de quem ele foi.

Apesar de não entender muito aquela prosa, o repórter pediu licença aos homens que discutiam em torno do cadá­ver e fez o que a velha mandou.

Havia ali duas medalhas: uma com o símbolo do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, em 1964, onde se lia "Menção Honrosa - Ala dos Compositores", e a outra cunhada com uma gravação rudimentar da Escola de Samba Unidos de São Carlos, de 1965, com o brasão da Cidade Ma­ravilhosa. Não se sabia exatamente a origem das medalhas ou a sua importância verdadeira. Mas, seja como for, servi­ram de pretexto para o repórter blefar.

– O velho tem condecoração da Prefeitura da Cidade. Se não respeitarem o presunto, vocês vão se ferrar! – disse para os leões de chácara.

Boêmio de larga reputação, Zé Menino aprendeu a com­por nas rodas e batucadas do Largo da Prainha, da Pedra do Sal e da Praça XI - berços do samba carioca. Como compo­sitor, jamais registrou qualquer das suas músicas, já que não considerava esse o seu principal ofício. Aliás, seu principal ofício sempre fora uma incógnita. Improvisou jongos com João da Baiana, virou noites com Geraldo Pereira, cantaro­lou com Ismael, flertou com Pixinguinha. Cansou de correr da polícia por causa de batucadas, não só nos botecos como nas giras nos terreiros.

– No fundo, no fundo, ele se viu no carro, junto com os velhos amigos. Conviveu com a maioria deles. Ele era um deles – disse a velha ambulante para o repórter, que perce­bia a grande história que tinha nas mãos. Mas quem estaria interessado?

O fotógrafo da mesma revista para a qual o foca escrevia o encontrou ali, diante da velha.

– Pô, você sumiu. Eu fiz a foto da madrinha de bateria, você tem que pegar umas palavras dela. Ela tá arrasando. Pode dar capa!

O blefe sobre a importância do presunto fizera efeito, e os seguranças resolveram voltar para o desfile. Aos poucos, a atenção de todos retornava para a Avenida. Atônito, o re­pórter olhava o cadáver de Zé Menino, já sem um dos sa­patos e sujo, na beira do Mangue. Mas, a cabeça do jovem estava longe, muito longe dali. O Grêmio Recreativo Acadêmicos Imperiais começava a levantar as arquibancadas. As relíquias do Brasil que a esco­la levara para a passarela emocionavam a todos. O prefeito da cidade, após beijar a bandeira da agremiação, desmanchava-se em lágrimas diante do carro Mestres do Samba. E discursava de forma eloquente para as câmeras de televisão:

– Foram eles que escreveram a nossa história, por isso nós os reverenciamos. São as relíquias da cultura nacional, são os nossos mestres! Os donos do carnaval!

(Circo de pulgas, 2014, p. 33-38).

 

 

Festa de Preto-velho

Eu calculo as horas, somo o tempo, conto a vida. Do alto dos meus 80 anos, nada mais me surpreende, mas tudo me diverte. Sou um preto-velho, e por isso sou considerado por muitos um sábio. Mas não é bem assim. A verdade é que eu sei muito pouco. Aprendi no curto tempo de escola e com a vida duas ou três coisas, e olhe lá.

Hoje tem festa no Terreiro de Caridade João de Aruanda, bem aqui em frente. É 13 de maio, Dia de Preto-Velho. Há um desfile de carros e gente bacana na frente do templo. A casa tem fachada de mármore e uma pequena cachoeira artificial no jardim, mas houve um tempo em que nem pin­tura o terreiro tinha. Agora, o nome João de Aruanda brilha numa moldura em neon, dá gosto de ver.

O povo não para de chegar. Uma mulher alta, ruiva, tra­jando um longo vestido branco, carrega nas mãos uma bra­çada de rosas da mesma cor. Ela aguarda diante da Cacho­eira de Oxum o marido que ainda procura uma vaga para o carro espaçoso. Parece que está com dificuldades. Ao mes­mo tempo, chega uma van que descarrega oito pessoas de uma só vez para a festa, que deverá varar a madrugada. Nós, os preto-velhos, merecemos.

O cheiro do defumador domina as imediações e assim fi­cará por um bom tempo, sendo substituído mais tarde pela fumaça espessa de mais de uma dezena de cachimbos ace­sos. Eu gosto da cantoria e canto alto os pontos mais boni­tos: "Oxalá, meu pai, tem pena de nós, tem dó, a volta do mundo é grande, teu poder é ainda maior". Vejo mais afli­ção do que esperança nos olhos de toda aquela gente bem-ves­tida. O que esse velho poderia fazer por elas?

É curioso ver aquelas madames e aqueles senhores de pa­letó comerem a feijoada. Assim como no tempo da senzala, não tem garfo, não tem colher, não tem faca. Come-se com as mãos. Eles não sabem fazer aquele bolinho com a farinha. A maioria prefere nem comer. Esse tipo de coisa me diverte. Muitas daquelas pessoas eu já conheço de vista, imagino os seus embaraços. Aperto os olhos por causa da miopia – a visão do velho está cansada – e revejo o vereador de tantas eleições. Está ali em busca de mais um mandato.

As saias branquinhas das vovós incorporadas rodopiam no terreiro ao ritmo dos atabaques. Os vovôs também dan­çam, enquanto o povo bate palmas cadenciadas. É uma fes­ta bonita. Eu me divirto em assistir à jovem russinha dan­çando como uma velhinha. Dizem que é neta de general. Ano passado doou alta soma de dinheiro para a casa. O zím­bo foi suficiente para que fosse concluída a obra na sede campestre, na Costa Verde. Cê sabe, alguns trabalhos têm que ser arriados na mata...

É bonito ver toda aquela gente que chega e que sai se ajoe­lhar em frente à imagem do preto-velho, logo na entrada do terreiro, ao lado da Cachoeira de Oxum. Como eu fico na direção da porta, cá de fora olho pra ele e ele lá de dentro olha pra mim cá fora. Não precisamos dizer nada. Na verda­de, um é a cara do outro, parece até um espelho: carapinha branca, roupa puída, pés descalços, o pito numa das mãos. Somos filhos da África.

Todos se benzem diante do meu irmão; pedem licença para entrar e para sair. Alguns jogam até dinheiro. E ele me olha nos olhos, imóvel, me fitando o tempo todo. Eu sei que se ele pudesse se levantaria dali e me daria o coité com café que acabaram de colocar à sua frente. Mas, que impor­ta? A noite está fria, mas eu ainda tenho folhas de jornal para me cobrir. A marquise é grande, me protege do sereno. Por isso, não saio desse canto por nada. A rua é minha casa. Vou dormir ao som de atabaques e de uma boa cantoria. Afinal, é Dia de Preto-Velho. Tudo me diverte.

(Circo de pulgas, 2014, p. 39-41).

Como nascem os mortos

Marujo empurrou com cuidado a porta de ferro, que já esta­va semiaberta. Um rastro de sangue no chão de pedra con­firmava sua suspeita: os garotos se refugiaram ali. Meio que pisando em ovos, o homem foi entrando lentamente com o seu cajado no recinto malcheiroso, iluminado apenas por um feixe de luz. Um amontoado de gente começava a se for­mar do lado de fora do velho chafariz de Mestre Valentim, no berço da cidade de São Sebastião.

Com a mesma rapidez que surgiam curiosos por todos os lados, diversas versões sobre o que ocorria circulavam de boca em boca. A primeira delas dava conta de que se trata­vam de assaltantes de banco. Momentos antes houvera um tiroteio entre a polícia e bandidos na avenida Rio Branco.

Com a confusão, os bandidos conseguiram fugir. A infor­mação de que um PM havia morrido na troca de tiros logo foi desmentida. Na verdade, a polícia só apareceu meia hora depois. O tiroteio teria sido com seguranças particulares.

O zum-zum-zum aumentava na medida em que os mi­nutos se passavam e nada acontecia, além do fato de o ve­lho marinheiro ter sido o primeiro a chegar ao local e ter entrado sem receio algum no chafariz, que, mais do que peça histórica, transformou-se ao longo do tempo em abri­go para a população de rua. Transeuntes do Largo do Paço e comerciantes viram quando os meninos chegaram ali. Eram quatro na realidade. Dois tinham sido feridos: uma garota e um garoto, que foram carregados para dentro pelos outros dois, que saíram rapidamente do local e, antes de fugir, avi­saram a Marujo sobre o acontecido.

Senhor dos mares em tempos idos, Marujo, outrora conhe­cido como Almirante, era um negro respeitado entre os me­nores que sobreviviam por ali pedindo trocados, cometendo pequenos furtos, cheirando cola. Apoiado sempre num velho cajado – na verdade um pau de jequitibá talhado –, cochi­lava durante o dia, mas varava as noites sem dormir. Excluí­do dos mares, foi vendedor de peixes da feira da Praça XV e, com o fim do mercado, passou a viver sob as marquises do Arco dos Teles. Mas era nele que os meninos confiavam.

Marujo ouviu sem espanto o relato do garoto maltrapilho e ofegante: "Mira queria uma camisa da Seleção. A gente pegou uma do cesto da loja e saiu correndo. Os seguranças vieram atrás e largaram o dedo na gente. Deixamos os dois lá no barraco da praça. Tá saindo muito sangue", disse o moleque, que, logo em seguida, sumiu entre os carros com o comparsa. O velho levantou com algum esforço e foi ver o que estava acontecendo.

Após entrar no chafariz, o mendigo sumiu no breu da es­curidão. Isso fez com que o burburinho aumentasse entre o povo, que aumentava cada vez mais do lado de fora. As pes­soas não entravam com medo de que os bandidos armados as fizessem de refém. E era isso que acreditavam ter aconte­cido com Marujo. "Fizeram o mendigo de refém", falavam uns aos outros.

Um policial militar de arma em punho foi abrindo cami­nho no meio da multidão e entrou no abrigo. Todos ficaram em silêncio. Minutos depois ele saiu, meio atordoado, com a arma guardada no coldre e as mãos sujas de sangue. Ma­rujo surgiu logo atrás, com um bebê nas mãos. Mira estava grávida, mas antes de morrer entrou num prematuro traba­lho de parto e deu à luz um menino.

O burburinho se desfez rápido, com cada um seguindo para um lado apressadamente. A época era de copa do Mundo, e o Brasil entraria em campo naquela tarde. O Pai do menino também estava morto.

(Circo de pulgas, 2014, p. 71-73).


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Maracatu de Real Realeza

 

- A boneca é de cera
- É de cera e madeira
- A boneca é de cera
- É de cera e de madeira
 
A menina saiu com esta louvação no ouvido e, em alguns momentos, surpreendia-se repetindo-a em bom tom, rua afora.

Um dia chamaram sua avó de Calunga e ela cresceu fortalecida com as lições extraídas do maracatu, lugar de pertencimento da Calunga, a boneca sagrada.

Do mesmo modo, tão logo a menina percebeu o quadro colorido na parede com a imagem de um cotejo, a avó iniciou-a no conhecimento dessa história real:

“Negros e negras de diversos lugares da África foram trazidos para serem escravizados no Brasil. Trabalhavam duro no canavial ou no serviço domésticos ou ainda nos serviços de rua, tudo para acumular dinheiro para os proprietários. Eram trabalhadores e trabalhadoras que não tinham salário mas produziam riquezas para alguém.

Os domingos, porém, eram dias de folga. Eles e elas juntavam-se e começavam a criar formas de comunicação, já que ali estavam pessoas de línguas diferentes. Dançar era uma atividade agregadora, comum a todos os grupos ali reunidos, então dançavam.

[...]

A formação de um maracatu deu origem a muitos outros em diversos lugares em Pernambuco. Onde nasceu o primeiro? A história não registrou, mas eles lá estavam com o formato de uma corte real africana, com todos os direitos e deveres distribuídos entre sim.

Havia alegria porque se organizaram em um só povo, em outras palavras, como uma nação”.

Agora a menina olha o quadro com um cortejo de maracatu sabendo que aquela imagem lhe acompanhará em cada maracatu que passar. E no seu ouvido ressoa:

- A boneca é de cera.

- É de cera e de madeira.

 

(In: Maracatu de Real realeza. p. 1-9)

 

 

Biriba Berimba

 

 

 

Berimbau estava numa roda de capoeira fazendo o maior som e percebeu o outro berimbau, seu vizinho, desafinando a cada nota. Tanto perdeu a afinação que por ele mesmo retirou-se da roda.

Berimbau continuou o toque, ora por outra olhava o companheiro, desolado num canto. Desejava terminar sua função e ir lhe prestar apoio.

Assim fez, encontrando Vara cabisbaixa, o arame torto, a cabaça, o caxixi sem graça, Berimbau perguntou:

- O que aconteceu com você?

- Eu não sou uma vara de biriba, o meu tempo de validade venceu.

- Oh, eu posso dar um jeito. Faço a sua substituição pela biriba e todos seremos felizes por muitos e muitos anos.

- Mas se eu for substituída, serei outro berimbau.

- Berimbau não é só uma vara e sim, o conjunto, a vara em forma de arco, o arame, o caxixi, a cabaça, a vareta.

- Está bem, você tem razão, vamos nessa!

Vara, desajeitada, seguiu ai lado de Berimbau à procura de biriba.

[...]

 Entre as biribas encontradas naquela pesquisa, selecionaram uma de melhor condição, isto é, altura e galhos adequados à envergadura.

- tiraram um galho e chegaram com esta surpresa para Vara: ele seria substituído, arame, caxixi, vareta, cabaças antigas continuaram na sua companhia. Vara abraçou os ex-companheiros.

[...]

Berimbau apresentou o jovem e lhe deu novo nome: Berimbau Vara, o toque de Angola confirmou o batismo do nome e a festa continuou com a exibição dos múltiplos toques.

[...]

Atravessaram o dia inteiro naquela festa e se recolheram quando o infinito apresentava uma faixa avermelhada e ia desaparecendo enquanto as primeiras estrelas iam aparecendo. Neste encontro um som de longe: be rim baú be rim baú be rim baú be rim baú... eram eles se despedindo.

Como um só arame faz um som tão bonito?

 

(In: Biriba Berimbau. p. 3-15)

 

 

A semente

 

 

 A menina não acreditou na notícia que leu no jornal que enrolava as batatas compradas na mercearia:

No dia 13 de outubro de 1855 chegou ao porto de Serinhaém, litoral de Pernambuco, a última leva de escravos traficados da África. O tráfico estava proibido desde 1831, mas a lei foi sempre ignorada (...). 
 

Ouviu o gracejo das colegas que acompanharam a leitura e apressou-se para chegar em casa e ouvir a mãe, que sabe tudo, explicar aquela história.

- Escuta, mãe, o que está escrito aqui!

 Abriu o pacote e as batatas caíram, o que interessava era ler. A mãe sentada no batente da cozinha, ouviu, balançou a cabeça, confirmando:

- Foi isso mesmo. Minha bisavó e meu bisavô vieram nele. Algumas vezes a ouvi contar esta história, aliás, ela contava depois que a gente insistia muito, pois isto lhe causava muitas saudades. Quando o navio atracou, logo os homens foram separados das mulheres e esta foi a última vez que ela viu meu bisavô. Ele foi vendido para longe e não conheceu a filha que a bisa trazia bi ventre, minha avó.

- Então a sua vó foi escrava?

Foi, todos que vieram naquele navio foram transformados em escravos, não interessava o que eram na África. Nos engenhos de cana-de-açúcar faziam tarefas distintas, uns iam cortar cana, outros serviam à casa-grande, tudo às ordens do senhor. As mulheres escravizadas cuidavam da cozinha, das crianças, davam de mamar às crianças recém-nascidas da casa grande, vendiam quitutes na rua, umas eram alugadas para outros engenhos como ama-de-leite, arrumadeira, passadeira, cozinheira. Depois ficavam sem eira nem beira, podiam ser revendidas novamente e o dinheiro era do senhor.

- Puxa, mãe, como eles aguentavam tanto trabalho?

- Bem, não aguentavam de bom gosto, mas a vigilância era grande. Alguns conseguiam fugir.

- A bisavó fugiu?

- Não, ela continuou esperando que o avô voltasse um dia. Com o passar dos anos, ela desiludiu-se com a volta do amado, abriu a latinha que ela sempre guardava no bolso da roupa, retirou a semente lá de dentro, aproveitou uma saída do engenho, e a plantou. E disse à filha que aquela árvore que ia nascer li representava os homens e as mulheres que vieram naquele navio.

 - A tal árvore só pode ser o baobá, você sempre disse que ele é uma árvore africana, feito nós.

 - Bem lembrado.

 - E quem ficou por aqui?

 - Algumas pessoas, inclusive minha avó.

 - É por isso que tem muita gente negra na região?

 - É. Quem não fugiu, ficou por aqui, aos trancos e barrancos. Uns continuaram no eito, mesmo depois da libertação.

 - Puxa, mãe, por que você não me contou esta história há mais tempo?

 - Porque esta é uma história dentro das outras que você já conhece. Lembra daquela dos Palmares?

 - Lembro: Ipojuca, Serinhaém, Palamares, todas nos levavam ao quilombo dos Palmares? Mas os Palmares foi muito antes do último navio, eu sei.

A mãe sorriu da esperteza de Kizzy. Apanhou as batatas e colocou-as para cozinhar. No dia seguinte, na escola, a menina contou a história do último navio negreiro e a professora fez o recreio à sombra do velho baobá. As crianças não se cansaram de fazer roda para abraça-lo.

E nunca mais ninguém caçoou de Kizzy.

 

(In: Baobás de Ipojuca. p. 7-12)

 

 

Cinco Cantigas para você contar

 

 

Hoje eu quero lhe contar, criança, sobre umas cantigas de brincar ou de ninar que aprendi com meus avós. As cantigas são cantadas há tanto tempo e tantos anos que ninguém sabe quem são seus autores. Toda mãe da minha cidade, quando era da minha idade, cantou também com os amiguinhos. E vocês vão aprende-la para contar para seus netinhos.

As cantigas, umas falam de violência e outras em sabedoria. Agora a gente vai recria-las na forma de uma história para os nossos dias.

As cantigas para você contar depois aos amigos, criança, é que a gente quer um mundo melhor, nisto a gente tem esperança.

Um lembrete: um cravo nunca brigou com a rosa em frente a uma sacada.

Escravos de jô
Jogavam caxangá
Tira bota
Deixa o zambelê ficar
Guerreiro com guerreiro
Fazem zigue-zigue e zás!...
(popular)

 

Foi assim que meu avô fugiu da tirania do senhor. Meu avô dizia que foi um negro fujão, tantas vezes era pego, tantas vezes fugia, porque não aceitava a escravidão. Cada dia era dia de um negro fugir para a realidade e de zigue-zigue e zigue-zigue e zás!... fugia do capataz.

Na outra senzala a situação não foi diferente. Com a escravidão ninguém era contente, só o senhor, que vivia dessa exploração.

Os negros brincavam na capoeira e, de golpe em golpe inventado, viram o jogo aprimorado para se defenderem do capitão do mato.

Vovó também dizia que seus tios e suas tias eram escravos-de-ganho e outros viviam na asa grande. Para ekles a casa-grande era pequena como uma gaiola e se sentiam feito passarinhos presos, para fugir dali dariam qualquer preço.

Os tios e mas tias iam vender na rua tudo o que o engenho produzia. Á tarde prestavam conta ao senhor e tão pouco poupavam para a sua alforria!...

As ruas eram largas... mas não podia reunir mais de três escravos havia sempre um capataz de olho... mesmo assim os códigos de luta funcionavam e a senha pregava rebelião. Maior do que o medo do chicote era o desejo de libertação.

Os tios e as tias também aproveitavam para alimentar os velhos que viviam nas calçadas sem roupa, sem comida, sem casa, depois da lei dos sexagenários. O senhor sanguinário não podendo deles tirar mais lucros os jogou ao pé do muro. Os sábios negros velhos! Quantas vidas sofridas, tantas vidas ensinadas, agora abandonadas pelas calçadas.

“Vou m’embora pra um quilombo, nada de chicote no lombo; no quilombo eu sou livre, não tenho senhor, não” – dizia vovô, negro fujão, que não temia capataz e de zigue-zigue e zigue-zigue, zás! Era um guerreiro, escravo nunca mais.

 

(In: Cinco cantigas para você contar. p. 2-5)

 

Pai Adão era Nagô

 

 
   Olorum criou a terro. o mar, o ar. Olorum nasceu antes de tudo. 
Olorum é o princípio. Ele criou Obatalá e Oruunmilá e deu poder para Eles criarem outras criaturas e queria que todas vivessem em hamornia. Um dia, umas criaturas humanas resolveram tirar lucro de outras e, com armas potentes para este feito, invadiram a região delas e abalaram a harmonia que tentavam manter. Esta era a África.

Quando os africanos eram seqüestrados da sua terra para outras terras do outro lado do mar, eles deixavam sua família. Seus pertences materiais, seus companheiros, só trazendo consigo a roupa que vestiam. Amontoados no porão do tumbeiro, eram encarregados feito objetos ou animais, vendidos ou leiloados. E iniciaram uma vida de trabalho duro sem nenhum direito. Só tinham o dever de trabalhar, trabalhar, trabalhar. Essa forma de trabalho era chamada de escravidão.

Trabalhando desde o nascer até o por do sol, o africano era prisioneiro do “senhor”, o homem que lhe comprara e delegava ao capataz a vigilância constante para evitar qualquer descanso ou fuga. Nenhum capataz, porém, consegue vigiar ou prender a crença de um povo. E o africano trouxe com ele a sua crença e a guardava no íntimo de sua vontade, do seu entendimento. Sabia que Obatalá, aquele que criou os homens, não os criou para serem escravizados. Sabia que Orunmilá, aquele que cuidava do destino dos homens, cuidaria do seu destino e da sua descendência.

O africano não tinha o direito a nada: não tinha casa, não estudava, não passeava livremente, só podia fazer o que era da vontade do “senhor”. O “senhor” não sabia, porém, que ele guardava a sua fé nos orixás e com eles conversava em qualquer lugar que estivesse.

Os Orixás estão representados na natureza: nas plantas, nas matas, nas águas, no vento, no arco-íris, nos minerais, nos raios, na chuva, na terra, na pedra, nos vegetais, nos animais... pois o africano aproveitava dos momentos de trabalho, conversava e fazia ofertas para os Orixás pedindo proteção e força para a sua descendência continuar a lutar. E desta maneira ele se fortalecia apesar dos castigos do “senhor’”.

Foram várias as nações africanas sequestradas para o Brasil e aqui foram misturadas, o “senhor” achava que, procedendo assim, enfraqueceria a luta contra a escravidão , porque difícil elas se comunicarem umas com as outras. Puro engano. Um grupo destas nações era de origem YORUBÁ. Os Yorubás eram muito organizados, preparavam fugas e enfrentavam o capataz ou o “senhor”, se fosse preciso. O “senhor” e seus capatazes chamavam os Yorubás de Nagô, que queria dizer piolhento, porque eles eram muito agitadores. O nome nagô passou a ser orgulho para eles e de Nagô se chamaram e chamaram a sua língua Yorubá de Nagô. O candomblé era Nagô, eles eram Nagô.

 

(In: Pai Adão era Nagô. p. 3-6)

 

  Eu, o Coco

 

Perguntaram-me porque eu sou uma dança dos quilombos. Eu vou lhes contar uma história: até onde eu sei, além de ser um refúgio após a fuga, o quilombo era o lugar de reorganização da vida criativa, uma nova vida. A terra era de quem ali chegasse, portanto, poderia arar, colher, criar animais, caçar, pescar. Gozar dos mesmos direitos e deveres.

As crianças eram acompanhadas pelos mais velhos e pelas mais velhas, responsáveis pela transmissão do conhecimento produzido por casa etnia que ali vivia. À sombra das árvores, elas ouviam as histórias ancestrais.

Da minha parte, eu lhes digo: mesmo sendo uma árvore estrangeira, gozei de boa adaptação aos diversos solos sem me incompatibilizar com as palmeiras nativas. Por isso, fui disseminado do litoral do sertão, passando pelo agreste.

À noite, os quilombolas se reuniram em volta da figueira, uma reunião para o descanso da labuta – hora de discutir idéias. Uma das idéias dessas reuniões foi celebrar a minha presença na economia quilombola. Nada melhor do que dançar em minha homenagem.

Dançar sempre fez parte da vida dos quilombolas, mesmo na senzala, dançar pela morte. Dançar faz bem ao espírito e ao corpo, aprenderam com os antigos.

 [...]

Coco – deram o nome à dança, o meu nome,quer louro maior? Acreditem, fiquei muito, muito orgulhoso. 

A partir daí, as noites eram animadas com o Coco: batidas de pés, batidas de mão batidas de tambor.

 

 (In: Eu, o Coco. p. 3-9)

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Trechos da biografia de Zumbi dos Palmares

 

Esta história começou exatamente cem anos antes.

Numa noite qualquer do ano de 1597, quarenta escravos fugiram de um engenho no sul de Pernambuco. Fato corriqueiro. Escravos fugiam o tempo todo de todos os engenhos. O número é que parecia excessivo: quarenta de uma vez. Fora também insólito o que fizeram antes de optar pela fuga coletiva armados de foices, chuços e cacetes haviam massacrado a população livre da fazenda. Já não poderiam se esconder nos matos e brenhas da vizinhança – seriam caçados furiosamente até que, um por um, tivessem o destino dos amos e feitores que haviam justiçado.

(Zumbi, p. 7).

 

****

 

[...] Houve, naturalmente, diversas outras razões para a escravidão brasileira, até mesmo a crença num absurdo: os pretos africanos seriam, pela sua própria natureza inferior, destinado pela Providência a escravos dos brancos europeus. Frequentemente a nossa espécie se inclina a crer em absurdos; e frequentemente essas crenças desempenham papel histórico.

Os compradores do açúcar brasileiro eram quase sempre os vendedores de escravos ao Brasil – e, em destaque, capitalistas holandeses. Pode-se mesmo dizer, em suma, que sem os holandeses o Brasil não teria existido como tal. (Teria, no entanto, existido de outra maneira? Os historiadores, em geral, detestam perguntas assim. De minha parte, gosto particularmente desta, pois como verão a certa altura deste livro, Zumbi dos Palmares só passa de vilão á herói num outro Brasil).

Portugal e Holanda eram, portanto, sócios e amigos na exploração do Brasil e da África – daqui tiravam açúcar; de lá, seres humanos. Vai que em 1580, a Espanha se apodera de Portugal e, por tabela, de seus domínios. A Holanda, arquiinimiga da Espanha, vê ameaçados, repentinamente, seus excelentes e vitais negócios. Fez o que faria qualquer merceeiro se lhe viessem tomar a loja: pegou em armas. Em 1624, os navios de guerra da West Indian – que se confundia com o próprio governo da Holanda – apareceram diante de Salvador. Em 1630, diante do Recife.

Esta invasão holandesa – ela duraria 24 anos – trouxe, está claro, inúmeras consequências. Afrouxou, por exemplo, a vigilância de ferro sobre os pretos escravos. Foi como um furacão que deixasse no seu rastro destruição – e desordem.

(Zumbi, p. 12).

 

****

 

A criatura que chamamos Zumbi nasceu livre em qualquer ponto dos Palmares, em 1655. Talvez no começo do ano, quando a água nas cisternas é pesada e morna; talvez no meio ou mesmo no fim, quando o chão está coberto de buritis podres.

Um dia se saberá bastante sobre ele. Milhares de documentos amarelos, difíceis de ler, guardam a história do preto pequeno e magro que venceu mais batalhas do que todos os generais juntos da História brasileira. Esses papéis dormem em Évora, na Ajuda, em Lisboa, Recife e Maceió, aguardando estudos pacientes.

 

[...]

 

Tudo começou com um Brás Rocha que atacou Palmares em 1655 e carregou, entre presas adultas, um recém-nascido. Brás o entregou, honestamente, como era do contrato, ao chefe de uma coluna, e este decidiu fazer um presente ao cura de Porto Calvo. Padre Melo achou que devia chamá-lo de Francisco.

Não podia, naquele momento, está visto, adivinhar que se afeiçoaria ao pretinho.

Se pode imaginar que não foi das piores a infância de Francisco. O padre talvez lhe batesse, como mandava a época, mas não lhe faltou alimento e médico. “Quem dá os beijos, dá os peidos”, dizia o povo. Padre Melo achava Francisco inteligentíssimo: resolveu desasná-lo em português, latim e religião. Talvez olhasse com orgulho o moleque passar com o turíbulo, repetir os salmos.

Francisco apreciava, certamente, histórias da Bíblia. Havia esta, por exemplo: Um sacerdote por nome Eli, velho e piedoso, aceitou na sua casa um menino chamado Samuel. Samuel era obediente e esperto. Certa noite, recolhidos os dois, Samuel ouviu que lhe chamavam: “Samuel! Samuel!” Isso foi antes que a lâmpada de Deus se apagasse no templo do Senhor: ali dormia a Arca de Jeová. Samuel foi até o quarto de Eli: “O senhor me chamou? Estou aqui...” “Não te chamei, filho – respondeu o velho. – Torna a te deitar.” Aconteceu uma segunda vez: alguém, de dentro da noite, chamava o garoto. “Não chamei, meu filho. Torna a te deitar.” Na terceira vez, Eli compreendeu de quem era a voz: “Vai te deitar, e quando te chamarem de novo responde: Fala, porque o teu servo ouve.” Assim fez, e a Voz queria que ele a seguisse; e deixou um recado para o sacerdote: que julgaria a sua casa para sempre, pela iniquidade que ele bem conhecia, porque fazendo-se os seus filhos execráveis, não os repreendeu.

Numa noite de 1670, ao completar quinze anos, Francisco fugiu.

 

[...]

 

Francisco se chamava agora Zumbi.

Onde encontrou esse nome? No Congo e em Camarões, o deus principal se chamava Nzambi; em Angola, diziam ser zombi o defunto, e zumbis, no Caribe, são mortos-e-vivos, criaturas sem descanso, mesmo no Além. Mais uma vez, dependeremos dos papéis históricos para algum dia decifrar o mistério do rebatismo de Francisco: do passado distante, ele zomba de nós.

É mais fácil responder a esta pergunta: por que escravos fugidos mudavam de nome?

Para os povos ágrafos, como eram a maioria dos africanos trazidos para cá, e os indígenas, naturais daqui, o nome é uma coisa absolutamente vital. Na Senegâmbia, uma criança só era gente depois que seu pai lhe gritava ao ouvido, no meio do mato, o nome que lhe queria dar. [...]

Era, pois, uma violência extra o que faziam os traficantes europeus ao comprarem um negro: lhe davam um nome cristão. Não o faziam por maldade: precisavam esvaziar o africano de sua cultura. [...]

O tráfico separava, para sempre, as famílias. [...] funcionando como liga entre pessoas desenraizadas tão violentamente. As autoridades proibiam ajuntamentos de pretos da mesma terra; fazendeiros não compravam mais de dois pretos da mesma “raça”: pavor de que voltassem a ser gente.

 

[...]

 

Francisco, retornando a Palmares, com quinze anos, passou a se chamar Zumbi. E constituiu, livremente, sua família – um pai, irmãos, tias e tios. O principal destes se chamava Ganga Zumba.

Ganga Zumba, que chegou a Palmares no tempo da invasão holandesa, era, ao contrário de Zumbi, um africano alto e musculoso. Tinha, provavelmente, temperamento suave e habilidades artísticas – como, em geral, os nativos de Allada, nação fundada pelo povo ewe na Costa dos Escravos.

Em 1670, quando Zumbi voltou, Palmares eram dezenas de povoados, cobrindo mais de seis mil quilômetros quadrados. Trezentos anos depois, nomes sonoros saltam dos papéis históricos: Macaco, na Serra da Barriga (oito mil moradores); Amaro, perto de Serinhaém (cinco mil moradores); Subupira, nas fraldas da Serra da Juçara; Osenga, próximo do Macaco; aquele que mais tarde se chamou Zumbi, nas cercanias de Porto Calvo; Aqualtene, idem; Acotirene, ao norte de Zumbi (parece ter havido dois Acotirenes); Tabocas; Dambrabanga; Andalaquituche, na Serra do Cafuxi; Alto Magano e Curiva, cerca da atual cidade pernambucana de Garanhuns. Gongoro, Cucaú, Pedro Capacaça, Guiloange, Una, Catingas, Engana-Colomim... Quase trinta mil viventes, no total.

(Zumbi, p. 27-30).

 

****

 

Impossível dizer o que tinha em mente: os negros, como os índios, são mudos para a História. Tinha medo, talvez, de que o inimigo se nutrisse da capitulação de Ganga Zumba e – bem-informado, agora, sobre as defesas de Palmares – viesse, com a ajuda dele, assestar o golpe final. Pode-se presumir, também, que Zumbi já houvesse tomado uma certa decisão – mas era cedo, ainda, para revelá-la.

Zumbi mandou degolar quem tentasse se mudar para Cucaú. Aumentou o exército, incluindo nele, por bem ou por mal, todos os homens adultos de Palmares. Transferiu mocambos, desativou alguns e redistribuiu parte da população segundo critérios militares. Organizou um sistema de espionagem e apoio no mundo do açúcar. Transformou Macaco numa gigantesca fortaleza. A ditadura militar vestia Palmares para a guerra final.

Enquanto isso, o que acontecia com Ganga Zumba em Cucaú?

As terras não eram más, nem as águas. O problema era a vizinhança: os pretos se sentiam inseguros, inteiramente nas mãos dos senhores de engenho e dos capitães-do-mato. O governador mandara cercá-los, todo o tempo, por índios e mamelucos hostis. Não se cumprira quase nada do tratado de paz. Grupos de provocadores queimavam as roças dos pretos e, com pouco, penetravam na aldeia – sem licença de Ganga Zumba – para “reaver escravos fugidos”. O Grande Chefe se despedia, uma a uma, de suas ilusões.

 

[...]

 

Zumbi diferiu, entretanto, de muito desses campeões da guerra numa coisa: não combateu para conquistar territórios e glórias. Foi, no entanto, um guerreiro implacável, incapaz de hesitar diante do sangue e do fogo. Desde que se sentou no trono que fora de Ganga Zumba, na praça central da Cerca Real do Macaco, seu corpo pequeno e magro se transformou numa flecha apontada para o coração do mundo escravista. Ele transformou o povo inteiro de Palmares – quase trinta mil pessoas – num arco retesado.

(Zumbi, p. 35-37).

 

****

Zumbi dos Palmares vencera dezenas de batalhas aplicando com engenho as regras da guerra do mato. A única vez que buscou o combate frontal, em posição fixa, fracassara miseravelmente. Perdera talvez para sempre o domínio da serra da Barriga, onde começava a se estabelecer agora – entre brigas e equívocos – a chusma de vencedores: bandeirantes, comandantes militares e aristocratas de Pernambuco e Alagoas.

Então dividiu seus homens (cerca de mil; a conta de Jorge Velho parece exagerada de propósito) e voltou à guerrilha. Povo, não tinha mais. Um dos seus bandos, sob chefia de certo Antônio Soares, foi emboscado perto de Penedo. Prenderam-no e o enviaram sob forte guarda para o Recife.

No caminho, a guarda se encontrou com a bandeira de André Furtado. Brigaram pela posse do preso importante. André Furtado o sequestrou, para lhe aplicar, por longo tempo, violentas torturas: queria o esconderijo de Zumbi. Nada conseguiu, até que mudou de tática: lhe garantia a vida e a liberdade se cooperasse.

Zumbi confiava em Soares, e quando este lhe meteu a faca na barriga se preparava para um abraço. Seus olhos devem ter brilhado, então, de estupor e desalento. Seis guerrilheiros apenas estavam com ele naquele momento – cinco foram mortos imediatamente pela fuzilaria que irrompeu dos matos em volta. Zumbi sozinho matou um e feriu vários.

Foi isso nas brenhas da serra Dois Irmãos, por volta de cinco horas da manhã de 20 de novembro de 1695.

No dia seguinte, o cadáver chegou a Porto Calvo.

Não estaria bonito de ver. Tinha quinze furos a bala e inumeráveis de punhal. Lhe tinham tirado um olho e a mão direita. Estava castrado, o pênis enfiado na boca. Banga, único sobrevivente da guarda de Zumbi, os escravos Francisco e João e os fazendeiros Antônio Pinto e Antônio Sousa testemunharam, perante os vereadores, que aquela pequena carcaça, troncha e começando a feder, era, indiscutivelmente, o temível Zumbi dos Palmares.

Depois de lavrado o “auto de reconhecimento”, a Câmara mandou separar a cabeça – seguiria só para o Recife, acondicionada em sal fino. Lá chegando, mandou o governador espetá-la na ponta de um pau comprido, na praça principal|: curtissem os brancos sua merecida vingança e vissem os pretos que não era imortal.

Muitos anos ela ficou ali, ao sol e à chuva, alta no coração do mundo do açúcar.

(Zumbi, p. 47).

 

As Pérolas de Cadija

 

Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

“Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.”

Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

– Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

– Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites de horrorosos caminhos.

– Quem vai cuidar de meu irmãozinho? – perguntou a menina.

– Carrega contigo – respondeu a mulher com um sorriso mau. – Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!

Cadija partiu. Atravessou rios e matas.

Só faltava atravessar urna savana para chegar a Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e a do irmãozinho, começavam a roncar.

– As-Salam! (A paz esteja sobre você) – cumprimentou um cameleiro.

– As-SaIam! – respondeu ela.

– Está pensando em atravessar a savana sozinha? – perguntou o homem.

– Estou.

– Não faça isso. Sabe quem mora aí? O Quibungo.

– Quem é? – perguntou Cadija.

– Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.

– E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...

– Ah! - falou o cameleiro, atirando o manto para as costas.

– Se não encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior, o Abutre Mortal, também chamado de Arranca-Corações. Ou um ou outro.

Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu uma brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:

– Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.

Era um iska, o djin que mora no vento.

– E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre Mortal?

– Aí não posso fazer nada – respondeu o iska. – Ou um ou outro.

Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viagem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

– Onde vais, flor do meu encanto?

– A Dakar, lavar esta colher, que minha madrasta me mandou.

– E essa criança que você leva aí? Deixa ver.

O guerreiro se abaixou para fazer gracinha. No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.

O Quibungo mastigou e morreu.

Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:

– Me ajude, pelas barbas do profeta...

– Se eu pudesse... – respondeu ela.

– Só tenho esta colher.

– Eu sei – disse o mendigo. – Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a lua. Você vai ver.

Cadlja assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.

Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Devia ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.

Pegou o irmãozinho e foi para casa. Tinham se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.

Abrindo o saco de pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:

– Onde foi que você arranjou esta riqueza? Temos bruxa aqui em casa e eu não sabia!

– Foi no mar – respondeu. – Meti a colher e foi só.

A mulher fingiu agradecer. E falou para a sua filha verdadeira:

– Se essa boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais pérolas que vinte Cadijas juntas.

Pegou um camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã do décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:

– Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.

Quando ela abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.

Quanto a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.

Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só que, aqui, a fada existe na forma de um anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.

(Gosto de África, histórias de lá e daqui, p. 3-8).

 

O Filho de Luísa

 

Uma boa história pode começar de qualquer maneira. Esta começa com uma quitandeira da Bahia.

Chamava-se Luísa O sobrenome deixo para dizer depois.

Luísa era pequena, bem negra e tinha lábios roxos – diferente de quase todo mundo, que tem lábios cor-de-rosa. Outra coisa: a maior parte dos negros da Bahia, naquele tempo, escrava. Luísa não. Por quê?

Não sei. Quando começou esta história, ela já era livre – nada, nada sabemos dela antes disso.

Luísa também não era cristã, Era um problema? Para as autoridades era. Tinham receio de negros que não fossem cristãos. “Se acreditam em outros deuses”, pensavam, “podem pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir, o deus cristão.”

Para Luísa, porém, ter outra religião não era problema.

Ela achava que todo mundo pode ter a sua. Quanto mais religiões e deuses, melhor. Quem estava certo nesse ponto? Não sei. Queria apenas contar urna história e já estou enredado em discussão.

Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer, que se considerava estranheza.

Namorava negros e brancos. Não olhando a cor, se apaixonava dia sim, dia não. Tinha uma queda especial por sujeitos de mão cabeluda.

– Beleza não põe mesa – dizia para as amigas. – Tem mão cabeluda? É meio caminho andado.

Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira.

Luísa o primeiro que viu foram as mãos. Servia. Uma hora que Luísa saiu do balcão para pegar uns tomates, Oliveira sapecou-lhe um beliscão no pescoço. Luísa respondeu com uma ombrada que jogou Oliveira no chão. Era a paquera da época. Naquele mesmo dia começaram a namorar firme. Aí não teve mais beliscão nem ombrada.

Não há mal que sempre dure. Nem bem. Luísa fazia parte de uma sociedade secreta de negros malês. Eram negros de religiões não cristãs, que preparavam uma revolta pela liberdade de todos os escravos da Bahia.

Religiões não cristãs, na verdade, eram duas: a mulçumana e o candomblé. Luíza era mulçumana e simpatizava com o candomblé, de forma que era a pessoa ideal para o movimento.

Em fevereiro de 1835, estourou a revolução dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o diabo amassou. Castigada com duzentas chibatadas, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia, quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi ao juiz com uma conversa comprida: ia se responsabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

Luísa, é claro, ficou muitíssimo agradecida. Foram andando pela rua e ela contou uma coisa para ele: estava grávida e tinha sido uma sorte não perder a criança. Oliveira também contou uma coisa: era jogador profissional de cartas. Estava vendo aquele chapéu de pissandó, aquela medalha de São Judas Tadeu de ouro trinta quilates? Tinha ganho no sete-e-meio.

Quando fez nove meses, nasceu um menino.

Batizaram-no Luís, mas não vou dizer o sobrenome.

Era negro fosco como Luísa e tinha a testa alta e o nariz fino como Oliveira. Não sei se disse que ele era português. Oliveira gostava sinceramente de Luísa. Então, dando sorte no jogo, abriu uma Loja para ela vender doces de alfenim.

Luísa continuava agradecida. Jurou que não ia mais se meter em revolução. Em troca, Oliveira jurou que ia procurar trabalho honesto e largar os ases e os curingas.

Nenhum dos dois cumpriu o prometido. Um dia estourou nova revolução de malês. Luísa combateu e voltou a ser presa. Oliveira arrumou uma dívida grande no jogo. Aí, pegou o filho:

– Vou te apresentar a um velho amigo, no cais da Ribeira. Quando se aproximaram desse amigo, falou: “Esse é um filho, que te falei”. Piscaram o olho. O homem, zaque! Botou algemas no garoto.

– Pai, manda ele me soltar! – pediu Luisinho.

Oliveira foi escapulindo de mansinho:

– Perdão, meu filho. Mas foi tua mãe que mandou te vender.

Você ainda vai ser feliz.

Luisinho, acorrentado no porão, chorou até o Rio de Janeiro.

Os anos passaram. Do Rio, Luís foi vendido pra São Paulo. Subiu a pé, acorrentado pelo pescoço, a Serra do Mar. Era inteligente e determinado como a mãe – que, agora posso dizer, se chamava Luísa Mahin. O sofrimento da escravidão não o destruiu. Uma das suas tarefas era estudar com os filhos do senhor.

Aproveitou para aprender o que eles tinham preguiça de aprender.

Se tornou rábula, que quer dizer advogado sem diploma.

Começou provando no tribunal que tinha direito à liberdade, pois era filho de uma mulher livre. Em seguida, iniciou – junto com outros estudantes e jornalistas – a Campanha Abolicionista.

Conseguiu, ele sozinho, libertar mais de mil escravos, provando na Justiça que eles tinham direito à liberdade porque tinham sido escravizados depois da proibição do tráfico. Seu nome e sobrenome:

Luiz Gama.

Um dia, voltou à Bahia e procurou o pai. Tinha morrido. Procurou a mãe. Não acreditou nunca que ela o tivesse vendido. Luísa tinha partido. Mas o nome de Luís Gama ficou, para sempre, na História do Brasil, como uma figura pioneira da Campanha Abolicionista.

(Gosto de África: histórias de lá e daqui, p. 9-14).

Texto para download

 

Quissange

 

Um leve som de quissange

Varando a varanda fluindo

Rara beleza, perfeito som

Visão noturna, madrugada furtiva

Dança de desejos

Guardados ardis

Poucos toques, beijos

Sem outonos, primaveris

Nós dois sem dilema

Você moça de Angola, Benin

Eu com calma de griot

Vou fazer meu melhor poema

E guardar todos os incensos, marfim

Lábios e sonhos

Prova cabal de que a África é aqui.

(Encantadas, p. 28)

 

 

Negra I

 

Negra, negra

O que fizeram não se perdoa

Mas você, ainda assim, me acolhia

No seu colo.

Quando a noite nos escondia

Na sua cálida placenta

E te roubaram o fruto ainda verde

Para servir na roça

E te rasgaram na senzala

E ainda assim me dás a mão

E te quero minha

E te quero toda

Pois, somos um só

Pra juntos começarmos de novo

E de novo tudo

Só que agora com cores bem diferentes.

(Encantadas, p. 107)

 

 

 

Tanclau

 

(Ou de como o negão descolou hospedagem

dos Federais)

 

Para início de conversa, o caso que vou contar não será mera coincidência com fatos do real que teimamos em dizer que é vida.

Já se vão alguns anos desde que encontrei no IPCN, numa daquelas reuniões, um rapaz chamado Tanclau. Fiquei pensando qual seria a origem do nome, bem falante, simpático, fizemos amizade e quase fundamos, depois de muito papo sobre afro-blocos, o que não chegou a ser o Afoxé Leí.

Tanclau era compositor e também atendia pelo nome de Armandinho. Naquela época o IPCN, um dos poucos movimentos negros que tinham sede própria, andava muito cheio, inclusive de alguns militantes sem pouso que lá descolavam um teto.

De profissão regular, nosso herói era cozinheiro de um hospital próximo e desenvolvia uma prática de militância legítima, facilitando o almoço da rapaziada que vivia a perigo. Diariamente, nos horários de almoço e jantar, ajeitava as coisas de modo que a moçada entrava na cozinha do hospital (pelos fundos) e defendia a boia.

Na verdade, Tanclau tinha uma solução para cada caso. Polivalente, além de cozinhar, nos feriados e domingos guardava automóveis, lavava e polia por um preço módico, batia um couro na Mangueira, de sobra fazia uns sambinhas que arrendava para blocos do sexto e sétimo grupo. Em suma, era, como diria Gonzaguinha, um malabarista da sorte, equilibrista da dor.

Esse papo todo é para nos situar no que ocorreu em Salvador, segundo confissão do próprio, nos idos de setenta e seis, e que veio resultar no batismo africano.

Naquela época, obscura para o contexto geral, vivia-se o "milagre” (que resultou nas inflações da vida), e o solo pátrio abrigava, com desmedida falta de pudor, torturados, torturadores e presos políticos nos mais diferentes rincões.

Tanclau andava no Mercado Modelo defendendo uns cobres com a venda de fitas do Bonfim, jogando capoeira para turista, dando uma de guia, entre outras malabarices da sorte e equilibrices de sobrevivência. De carteira assinada, só mesmo como compositor de Bloco Afro (a polícia não aceitava), fazia três anos. O Ilê Aiyê tinha nascido e inaugurado a revolução ijexá no carnaval e no comportamento de consciência que podemos ver na Bahia.

Num certo dia, temporada de verão, Salvador pululante de gringos, profetas, vampiros, hippies e poetas, a briosa Polícia Civil resolve "sanear" as áreas em torno do Mercado Modelo, onde os turistas se concentravam e, logicamente, as empresas de turismo recolhiam suas largas divisas.

Imaginem o clima de uma "blitz" na Praça Cairu. Critérios: se não fosse gringo, não tivesse carteira assinada ou terno e gravata, cana!

Nessa, Tanclau, crioulo de muitas convicções, vestido de bata africana e sem carteira nenhuma, dançou!

Tanclau havia trabalhado no Porto, trabalhado, digo, uma calça Lee para lá, um perfuminho para cá, isqueirinhos, radinhos de pilha e toda sorte de bugigangas contrabandeadas que as pessoas compram, às vezes sem saber para quê. Para exercer o nobre ofício de moambeiro, Tanclau, eclético como sempre, aprendeu com os colegas aquele inglês de beira de cais, que praticava com os embarcadiços das mais diferentes nacionalidades, vindo a se tornar até intérprete quando surgia produto novo ou desconhecido do vocabulário da região.

Aí, justo aí, os tiras dançaram!

– Documentos?

– I don't understand you, sir.

– É gringo?

– Pardon?

– Gringo preto? Só pode ser africano!

O chefe da operação, informado da presença, nas proximidades da viatura, de um gringo crioulo e não acreditando na existência de tal fenômeno, estanca em frente de Tanclau, com seu traje afro e ar de quem não está entendendo chongas.

– Africano?

– Yes, sir.

– Passaporte?

– I lost it, sir...

– Putz!

Tanclau explicou, com gestos e pondo os bolsos para fora, que não tinha nada.

– Gringo sem documentos vai para a Polícia Federal!

E assim foi.

Transferido o problema do "africano" sem passaporte para a esfera da Polícia Federal, encontrava-se Tanclau, com todas as honras que no solo pátrio damos aos não falantes da nossa língua (lembram-se do Biggs?), frente ao coronel-chefe da Divisão Baiana dos Federais que, no fundo não era muito versado em inglês, muito menos em iorubá (língua para a qual nosso herói volta e meia apelava).

– Vou chamar o professor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos para localizar a origem desse negão e ver o que fazemos para mandá-lo de volta.

Tanclau, a essa altura, já se via embarcando para qualquer país africano o que, na verdade, sempre foi seu sonho escondido: ver a terra dos avós.

Quando o tal professor chegou, correu-lhe um suor geladinho pela espinha: – E agora?

O professor pergunta:

– Where are you coming from?

– La Kara, sir.

– La Kara?

– Yes, sir, a region of Togo.

– Oh! Togo, beautiful country!

O professor fala ao coronel: – É africano mesmo!

Tanclau não explodiu de rir na hora por motivos óbvios relaxou a tensão. Afinal, sua mentira tinha colado.

Do modo que puderam se entender, Tanclau contou ter sido roubado e que se encontrava sem passaporte, sem dinheiro e, o pior, sem navio. Quase me esquecia a história do navio: havia aportado em Salvador uma embarcação de bandeira togolesa na semana anterior aos fatos agora relatados. De um dos tripulantes da mesma, nosso amigo tinha comprado umas calças para revender. Contou então que perdera a embarcação da qual seria um dos passageiros. Constatado na lista de atracação do porto o tal navio, ficou tudo confirmado e o coronel se deu por satisfeito. O álibi estava perfeito!

E como acomodar o "africano"?

O único jeito era alojá-lo nas instalações do Departamento de Polícia Federal. Afinal, se improvisada uma cela especiais, não chegaria a um apartamento, mas quebraria um galho.

Lá estava Tanclau, casa, comida, algumas roupas gentilmente doadas por agentes e, o melhor, uma possível viagem para a África.

Mas, azar quando ataca não há santo que tire. Azar de crioulo, então, só acaba depois de sete luas. Estava tudo correndo muito bem. Tanclau morando há duas semanas no quartel dos tiras, com livre trânsito de entrada e saída, vizinho de cela de um preso político muito simpático quando numa noite infeliz, depois de comer um mocotó: sono pesado e sonho! Sonhou, e alto! Falou, praguejou, se bateu, berrou, riu, e o pior, tudinho em português, aquele português safado, amalandrado, cheio de gírias e etecéteras! Não deu outra, o vizinho (o tal preso político) ouviu tudo e, entre meio pasmo e gozador, decidiu sacanear os tiras. Não se sabe bem como, mas o tal preso tinha lá seus contatos externos, e foi a conta! No dia seguinte ao miserável sonho, oito da manhã em ponto, nosso herói foi acordado por um batalhão de repórteres e fotógrafos, que tiveram acesso ao departamento calçados na história de entrevistar um possível líder africano.

A Tarde, entre outros diários, deu a manchete, em letras garrafais:

"Polícia Federal cai no 'Conto do Africano"'.

Claro que nosso amigo não resistiu ao tiroteio de perguntas do pessoal da imprensa e entregou tudo tintim por tintim.

Com aquela, o arrogante coronel-diretor da Divisão Baiana não contava! Estava "secretariável" junto governo do Estado, promessa séria do governador, e logo assumiria a pasta da Segurança. Ser enrolado pelo negão? Era demais!

Dar sumiço no tal (na época era muito comum) daria muito na pinta, uma vez que a imprensa em peso interessou-se pela matéria.

Transferiu de imediato seu hóspede para a delegacia de Jogos e Costumes, agora na qualidade de preso especial. Pior a emenda que o soneto!

Diariamente, os noticiários acompanhavam o caso e Tanclau passou até a dar entrevistas coletivas, apurando volta e meia uma grana "a título de algumas declarações exclusivas" de como enrolou a tão competente instituição, de suas artimanhas anteriores, de suas pretensões futuras e tudo mais que causa a sensação num caso assim.

Ficou menos de uma semana na tal delegacia.

“Forças ocultas” contrataram para o agora acusado dois excelentes advogados que impetraram ''habeas corpus" pela condição de primário do nosso amigo. Posteriormente, Tanclau soube ter sido o próprio coronel que queria dar um fim ao caso e garantir sua já comprometida nomeação.

Quando deixou a delegacia, um carro o aguardava e foi levado por três acompanhantes misteriosos à presença do tal coronel:

– Seu crioulo filho de uma digníssima dama, para que lugar do Brasil você quer se pirulitar agora para não levar um couro de ficar manco?

– Bem, doutor, desculpe, para o Rio de Janeiro eu topo ir.

– Mas você vai tear calado, seu sacana?

– Claro, doutor, desculpe, coronel, afinal de contas burro é uma coisa que não sou!

– Muito bem, vou te dar uma passagem agora mesmo e você vai embarcar no próximo ônibus.

Ganhou a tal passagem, chorou mais uma graninha pra viagem, juntou seus panos e se mandou (foi escoltado até a rodoviária!).

Usa o nome de Tanclau até hoje, digo hoje porque não o vejo faz algum tempo, ou melhor, na semana passada cruzei com um negão cheio de terno e colete, em altos papos com um sujeito com pinta de barão. O negão era a cara do Tanclau.

Não é por nada, mas decidi conter esse caso e, volta meia, dar uma olhadinha nas colunas sociais. No meio dessa crise, grana difícil do jeito que anda e se levando em conta a versatilidade de Tanclau, nunca se sabe...

 

Nossos malungos têm artes

que não se aprendem na escola

por isso aprendemos bem cedo

pouquinho depois de nascer

a rir da miséria e do medo

e resistir, sobreviver.

 

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 85-92)

 

 

Zumbi...dos

Daqui de onde estou,

Ouço os primeiros ruídos.

Abafados, subterrâneos,

Como os sussurros cuidadosos,

Por meus avós também ouvidos.

Da nova gente que surge,

Com a coragem de herança,

Legadas por Zumbi,

Quase esquecida pela força,

Quase sangrada pelas alegorias,

Quase morta pelos passos na avenida.

Daqui de onde estou,

Sussurro também cauteloso,

Para despertar outros ouvidos,

E destravar outras bocas,

Para sussurrarmos todos um dia,

E fazermos um barulho,

Que será tal,

Que se transformará,

Em fala!

E das falas virão os gritos,

Não de dor, mas de vitória,

Como são vitoriosos os sussurros,

De nossa gente agora,

Pois estão acordados,

Para dizer,

Com a força de Ganga Zumba

E a altivez de X:

Que somos!

Faremos!

Bem alto!

Como as torres de Palmares.

(O arco-íris negro, p.64)

 

 

Meu Sonho Não Faz Silêncio

Meu sonho jamais faz silêncio

E a ninguém caberá calá-lo

Trago-o como herança que me mantém desperto

Como esta cor não traduzida em versos

Pois se fariam necessários muitos e tantos versos

 

Meu sonho vara madrugadas

Som alto

De timbales que se arrebentam em cânticos

E trago-o como Olorum na crença

Que não me pune em pecados

Mas

Enche-me o peito grávido de esperanças

Como malungos marcando ao sol de novembro

Subindo as serras

Defesa e guerra

Meu sonho jamais faz silêncio

É a lança brilhante de Zumbi

A espada de Ogum

É o ê, o rumpi, é o rum

É a fúria sem arreios

Terra farta dos anseios

Desacato, ato, sem freios

 

Vôo livre da águia que não cansa

Me faz erê, me faz criança

 

Meu sonho jamais faz silêncio

É um griot velho que me conta as lendas

De onde fisga tantas lembranças

E com ele invado chats, pages, sites

Na intimidade de corpos em dança

Perpetuando o gosto pelo correto

Meu sonho é pura herança

Rastro

Dos que plantaram, lutaram, construíram

O que não usufruo

Areia que moldada em vaso

Onde não nos cabe culpas

É lúcido ao sol dos trópicos, charqueada ao frio

É como um fio

 

Grita alto e bom som

Que o seio do amanhã nos pertence

Carregamos toda pressa

 

Meu sonho não faz silêncio

E não é apenas promessa

 

Planta em mim mesmo, na alma

Palmares, Palmares, Palmares

Pelo que de belo, pelo que de farto

Muitos Palmares

 

Carrega como o vento escritos

Versos de Jônatas, Oliveira, Colina, Semog e Cuti

Alimenta e nutre

Lembrando que esta cor me mantém desperto

E não tenho sustos

 

Sentinela que tange o eterno quissange

Entende a volúpia do calor que me abriga

Desfaz a mentira, destruindo a intriga

 

Meu sonho jamais faz silêncio

Como um Ilê Aiyê acordando a liberdade

Descobrindo amante ávido o sexo pulsante da existência

Desejo de navegar todos os mares

Comandando todas as fragatas, naves

 

E nos lança em um solo de Miles

Nos recria em um solo de Coltrane

Clássico como Marsalis, Jazz como Marsalis

 

E que nem tentem que faça silêncio

Pois voltaria gritando em um texto de Sohiynka

ás que completa a trinca

Torna-se um canto de Ella, Graça, Guiguio, Lecy

Gente negra, gente negra

Jamelão, mangueira

Brilho da mais brilhante estrela

Nunca se estanca, bravo se retraduz em sina

 

Só não lhe cabem

Crianças arrancadas da escola

Pela fome que rasga gargantas

E nos promete vê-las

Alimentadas todas, cultas

Meu sonho é uma negra criança

Que luta

Ergue Quilombos, aqui, ali

Em cada mente, em cada face

Impávidos como Palmares, impávidos Ilês

Em todos os lugares

Meu sonho não faz silêncio

Porque feito de lida

Teimoso como esta cor

Para sempre será desperto e certo

Mais que vivo, é a própria vida.

(Negras intenções, p. 65-67)

 

Águas do Paraguassu

As águas do velho Paraguassu

São Abebes, espelhos, luzes profundas

Donde emergem perfeitas, belas

Kayalas e Dandalundas

E vão todas elas ao Rumpayme Ayono Runtoloji

No fim da tarde, quando é mais suave a brisa

Para conversar, sem alarde, com Gaiacu Luíza.

Lembram das velhas de línguas trocadas

Capazes de paralisar jovens,

Estendendo-os nas calçadas, gelados ate os ossos

Pelo desrespeito para com seus lábios grossos.

 

As águas do velho Paraguassu

Testemunha de tantas magias

Lavam-se de tantas mágoas, águas de alegrias

Fazem renascer em cada um de nós

Guerreiros, Rainhas, Amantes, Feiticeiros

Mães e Filhos de Santos.

 

São tanto assim de poesia, que nos fazem crer

Cada vez mais nas promessas

Nas lanças, nos cantos das festas

As águas do velho Parágua reconstroem a herança

Perpetuam ensejos, refazem esperanças

Regam Áfricas inteiras permanentes nestas terras

Descartam tênues fronteiras, pretextos e guerras.

As águas porque são águas, fluidos sem tormentas

Dançam entre otás as danças dos ventos

Os ventos aos sopros, todos abraços

Entram pelo ori, chamados pelos toques

Vivos em seus passos de Angola, Ketu, Jeje, Nagô

Inquices de qualquer nação

Voduns, fartos, enchentes

Orixás, vertentes, todos nossos de coração.

 

Águas que me fazem retomar as canoas dos acertos

Atrever-me, opondo-me aos preconceitos

Entendendo Iroko, árvore, ele mesmo sua morada

Branca Gameleira.

E cuidar das ferramentas, dormir nas esteiras

Saber de peixes, ouro, estrelas, aconchego e Ojás

Simples como chão de terra batido

Como simples são os sentidos

Como simples são inquices, Voduns e Orixás.

 

 

Águas, seculares águas sobre nossas cabeças

Bênçãos, Agôs, Mucuius, Colofés

Como nos cobre de bênçãos nossa Mãe

Quando subimos ou descemos ao mundo

Do alto da Levada

Bênçãos em todas as línguas, todas as estradas

Ewe, Fon, Gun, Quimbundo, Ioruba, Mahi,

Quicongo

Umbundo

E nos faz atrevidos...

Sabemos vodunces, iaôs, muzenzas

Em todos os sentidos

Iansã é oya, Dandalunda é Oxum

Xangô é Sobô, Jeje é Nagô

Angola é Ijexá

Somos, pois, um só povo

Para aprender todos os toques em todos os cantos

E queremos ver-nos dançando

Em todos os terreiros, para todos os santos

E vamos além deste sonho menino

Fazer o mais correto pelas Águas que protegem

Das dores, desatinos, e nos preparam, nos regem

Para viver todo Rito, celebrar o planeta e a vida

Cumprindo nossos destinos.

(Cadernos Negros 25, p. 94-96)

 

Maio

Quero ler na noite, cor, irmão

o rosto dos irmãos, braços, peitos

todos lindos, nus, descendo todas

as colinas, transpondo barreiras

se espalhando na semelhante

marca serpente do asfalto.

 

Quero ver colares, gritos, danças

e assumir como vestido agora

o manto brilhante do que vem,

o ato, o desacato, a consciência,

e descobrir depois de tudo a luta pela

felicidade interior de ser negro.

(O arco-iris negro, p.41)

 

 

Entradas e Serviços

(Para Milton Nascimento)

 

Quando eles chegaram

eu estava absorto

no meu tempo

trabalhando ferro,

plantando,

fazendo

minhas próprias guerras.

 

Tinha as portas abertas

pois pouco sabia deles

entraram com suas armas

me tiraram da cama

justo quando descansava.

 

Me puseram correntes

e caminhei

os mares

no ventre fétido

de grandes barcos.

 

Cheguei em terras

que haviam tomado de outros

fiz tudo por aqui

enquanto eles

de braços cruzados,

bebiam meu suor.

 

Seu tédio era tão grande

que ainda lhes dei

chula, samba, mambo

blues, rumba, calipso

jazz

para vê-los, pelo menos

mexer suas carcaças inertes.

 

Hoje vendo esse passado

posso, devo dizer

não.

Estou mais do que farto

de entrar pela porta dos fundos.

(Atabaques, p. 15)

 

 

Quilombos

 

(para Abdias Nascimento e Lélia Gonzales)

 

 

Memórias I

 

queria ver você negro

negro queria te ver

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria viver.

 

O gosto da liberdade

sentido

cravado

no peito

correr,

sentir os campos

ter

a vida

 

Angola Janga

terra

de negros

livres

 

Ali toda vida

Toda raça

Raiva

vontade

África

África (tão subitamente roubada)

Sonhos (tão subitamente assassinados)

Liberdade (tão subitamente trocada pela escravidão)

 

 

Memórias II

 

negro correndo livre

colhendo, plantando por lá

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria ficar.

 

O ódio do feitor

é pegajoso, fecundo

ele pode emprenhar

até as mentes mais estéreis

com seu pênis de chicote.

 

Os feitores esparramam se gozo

nas costas dos malungos

Guinés

Ardras

Congos

Agomés

Minas

Cafres

e o sangue jorrou com tanta força

que em Angola, fui Nagô,

irmão de Haussá

Jeje, Tapa e Senty.

O cheiro nauseante do esperma

da tortura

fez com que ficássemos juntos

usando nosso ódio mais comum.

 

 

Sonhos I

 

o rei de Portugal

mandou ao meu povo matar

se Palmares ainda vivesse

em Palmares queria estar

 

Cumbe na Paraíba,

Alagoas, Macaco e Subupira

Mangueira, São Carlos,

Portela na Avenida

são quantos?

 

ontem morri

em Andalaquituche,

Tabocas,

Amaro,

Acotirene

 

Hoje no Juramento,

Borel,

Turano

Salgueiro

 

morro subindo morro

rolo ladeira cada dia

com decidido ar de

defunto novo

quando desce a noite

vejo em cada fundo de prato

o reflexo da luz da vela

e sonhos para devorar

 

 

Sonhos II

 

te vejo meu povo feliz

Teu sonho querendo sentir

Se Palmares ainda vivesse

Pra Palmares teria que ir

 

Você já pensou

se Domingos Jorge Velho

e sua malta

Não houvessem tido tanta sorte?

 

já pensou naquele país da serra da Barriga?

sei que talvez não,

é difícil imaginar uma terra

onde não fosse possível ver

uma negra ter

que mostrar a bunda

abrir as coxas

tirar das entranhas

o pão de cada dia

onde não fosse possível ver

criancinhas

de dez

oito

seis anos

voltando às quatro da manhã

depois de vender chicletes

e o último resquício de dignidade

nos cruzamentos da cidade.

 

 

Notícias

 

por menos que conte a história

não te esqueço meu povo

se Palmares não vive mais

faremos Palmares de novo

 

Ontem um distinto senhor me disse:

– Filho não pense nessas coisas

(naturalmente mandei-o à merda)

 

 

Insônias

 

Saudades das Tuas noites

fogueiras que eu não vivi

Palmares, Estado Negro...

(vivo pensando em ti)

 

Como não estar

Na podridão do Mangue

nas ratazanas da zona

na multidão de bucetas infectas

como não estar

no barulho da britadeira

Na comida azeda

na marmita fria

como não estar

na fome do meu filho

Já nascido

com jeito de morte

como não estar

no lixo das madames

no cheiro da gordura da pia

nas bostas dos barões boiando na latrina

como não estar

no trem lotado

no barraco caindo

No camburão

na porrada nos dentes

no lodo do fundo de cada cela

 

Como,

se tudo isso sou eu?

 

Quilombos

meus sonhos

sofro de uma insônia eterna

de viver vocês

 

Vivo da certeza

de renascê-los

amanhã,

 

Se um distinto senhor vier me dizer

para não pensar nessas coisa

vou ter de matá-lo

com um certo prazer.

 

Por menos que conte a história

Não te esqueço meu povo

Se Palmares não vive mais

Faremos Palmares de novo.

(Atabaques, p. 19-23)

Texto para download

 

Identidade

 

Nasci de pais mestiços

Fui registrado como branco

Mas com o tempo a cor escura se fixou

 

Negro, negrinho

Você é negro sim,

A primeira ofensa!

Eu era negro sem saber

 

Adolescente, ainda recusava minha origem

Aprendi a ser o negro passivo, inferior

Reagia: sendo esta raça assim,

Não sou negro não!

Recusei a herança africana

Desejei a brancura

 

Mais tarde soube

A inferioridade era um mito

A passividade uma mentira

O conhecimento trouxe a consciência

Aceitei minha negrice

Me assumi!

 

Encontrei uma bandeira

Negritude!

Identidade rasgatada

Ser negro é importante

É se identificar com minhas raízes.

(in: Cadernos negros 1, p. 35)

 

 

Havia miséria, houve quilombo

 

Era Rodésia

panela de opressão

humanidade escura escrava, escória

racismo raiz de lucros

brutal brancura pirateava tudo

plano para mil anos

 

No âmago da escuridão

alquimia

favelas podem ser quilombos

pretume intenso recupera a vida

coragem e coração

pés, mãos

metrancas, marretas

foices, picaretas

rodopia Rhodes*

o pirata-estátua no chão

raivas e risos recriam o mundo

 

Na praça do povo

o maldito pirata aos pedaços

Rodésia rodou

começa Zimbabwe-Nzambi

 

* Cecil Rhodes, herói nacional da Rodésia racista.

Poema inspirado pela leitura do livro ZENZELE, de J. Nozipo Maraire

(in: Cadernos Negros 23, p.70)

 

 

Bela e crespa

 

Negar-se faz mal à cabeça

pixaim vira coisa ruim

cada fio crespo perseguido feito caça

lisura é troféu, quase brancura

 

A mesmice é maioria, moda, mania

praga consumista

e a consciência mal vista

 

Nem toda alma se entrega

exceções são surpresas belas e crespas

a mulher pele parda senta ao lado e fascina

combina charme e caracóis carapinhas.

(in: Cadernos Negros 27, p. 86)

 

 

Apostando na ignorância

 

Aos humildes, palavrório despolitizante

a mestiçagem como democracia mágica

virá com o tempo

e movimentos de ancas

para traficantes de sonhos fáceis

 

Engravatados têm malandragem e pé na coisinha

tapinhas nas costas

medalhas e fotos

nada de concreto, planos, prazos, cotas

só performance para primeiras páginas

blábláblá branco versus novembro negro

 

A fusão de peles e cores deveria ser muito mais

é o truque da trapaça

telas e páginas do Brasil, oficinas do império da brancura.

(in: Cadernos Negros 27, p. 88)

 

 

Periferias

 

Terceiro mundo jovem e sua segunda pele

a fantasia de um black dos States

fazer de conta, curtir é da hora

mas a realidade não é Hollywood

 

Paulicéia globalizada

brancuras controlam tudo

o ser escuro

queira ou não queira

periferia

rabeira

e tudo às claras

artiganda da propamanhas

percebe quem sabe ler

artimanhas da propaganda

 

Hipocrisia é o nó do país desigual

sobram becos

e sonhos sem saída

hip-reali-hop pode ser show

igual futebol, samba, novela

as carências, num palco não cabem

universidade também para afros

só se a gente for quilombada

na democracia deles

realiwood não é hollydade.

(in: Cadernos Negros 29, p.142)

 

 

Publicidade

 

Não vivemos, não vivo nu

nem moramos no Xingu

mas, publicitários daqui nos condenavam à margem:

“...não são consumidores”

 

 

Ação de publicitários do Brasil

inovação pra nós, se há, só a gotas

a tradição nos afoga em repetições racistas

 

 

Cabeça de publicitário branco

território das desculpas

no lugar da culpa, cinismo

solo fértil e raízes do racismo

o horizonte poluído até hoje.

 

 

Orgulho de ser brasileiro?

quero fogo nesse outdoor.

(in: Cadernos Negros 29, p. 139)

 

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