Prefácio a 15 poemas negros1

Florestan Fernandes*

 

Ignoro as razões que levaram Oswaldo de Ca­margo a dar-me o privilégio de prefaciar a presente coletânea de poemas. Não sou crítico literário. Tam­pouco tenho competência ou sensibilidade para apre­ciar judiciosamente sua produção poética. Considero a crítica literária uma especialidade complexa e difí­cil, que exclui a improvisação e requer não só talento e bom gosto, mas sensibilidade, erudição e imaginação criadora. Sendo evidente que não reúno essas condi­ções (pelo menos em relação à capacidade de ser crí­tico literário...), entendi que o convite se endereçava ao sociólogo, algum tanto conhecedor da situação do negro na sociedade brasileira. Às vezes, uma condi­ção exterior à obra de arte pode ser significativa pa­ra a sua compreensão e interpretação. Talvez o autor procurasse, portanto, alguém que pudesse "explicar a sua poesia à luz de sua condição humana das in­fluências e motivações psicossociais que ficam por trás da sua maneira de ver e de representar, poetica­mente, emoções, sentimentos, aspirações e frustrações que poderiam ser entendidas como parte da ex­periência de vida do negro brasileiro.

Todavia, ao ler e reler Um homem tenta ser anjo (1959) e as poesias colecionadas nesta obra, chego à conclusão de que Oswaldo de Camargo é, essencial­mente, um poeta. O fato de ser negro tem tanta im­portância quanto outras circunstâncias (como a de ser brasileiro, católico marcado por experiências mís­ticas singulares etc.). O que conta, em sua obra, é a poesia. Embora ela exprima, em várias direções, a con­dição humana do seu criador, sobre ela e não sobre outras coisas deveria falar o seu intérprete. Ora, fale­ce-me autoridade para isso. Um poeta jovem, que vem de uma estreia recente, pretende algo mais que uma “apresentação” convencional: espera que o apre­sentador diga aos outros o que ele próprio sabe acer­ca de seus versos, de suas intenções e do sentido de sua poesia. Nada que me sentisse capaz de fazer, pelo menos com justiça, propriedade e o devido respeito pelo autor, pelo público e por mim mesmo...

Abriam-se diante de mim dois caminhos. Um, o de lamentar as limitações da nossa celebrada “forma­ção humanística”. Bem mal vai um país no qual um professor universitário treme diante das responsabili­dades do juízo estético. Não é só o padrão de educa­ção que entra em jogo. É todo um sistema de vida in­telectual que sofre um impacto negativo. Penso, em particular, na negligência dos críticos especializados, que só existem para os produtores de arte de prestígio consagrado, subestimando ou negligenciando a ener­gia moça pela qual se processam a afirmação e a re­novação das grandes ou das pequenas literaturas. O segundo caminho seria o de avançar os resultados de minhas modestas reflexões. Os que não podem con­centrar-se na própria medida do raciocínio poético já dão algo de si indicando o que percebem, o que sentem e pensam. Por consideração especial pelo au­tor, não me neguei a isso. Acho sinceramente, porém, que ninguém lucrará nada com ideias tão minguadas de verdadeiro teor crítico.

Em uma civilização letrada, o poeta representa um dos produtos mais complicados do condicionamento educacional, intelectual e moral. É um con­trassenso pensar-se que o negro brasileiro encontre na poesia (como em outros campos da arte) veículos fáceis de autorrealização. Há toda uma aprendizagem técnica, difícil de conseguir-se e de completar­-se. Vencido esse obstáculo, erguem-se as verdadei­ras barreiras humanas, que estão dentro e fora do próprio negro. De um lado, temos as contingências de um meio intelectual ainda mal polido e parca­mente aberto às aventuras da inteligência criadora. Ele se fecha com facilidade, movido por molas que as convenções escondem ou disfarçam, especialmente diante das ocorrências que fogem às normas e à roti­na. O produtor de arte negro é, em si mesmo (isto é, independentemente da qualidade e da significação de sua poesia ou seja lá o que for), uma aberração de todas as normas e uma transgressão à rotina, num mundo organizado por e para os brancos. De outro lado, acham-se as fronteiras que nascem da situação humana do negro na sociedade brasileira. Pode-se imaginar que existem várias gradações na linguagem poética e que a poesia não seja incompatível com ne­nhuma situação humana, reconhecível objetivamen­te. Embora isso pareça incontestável, só a força de um gênio permite superar as limitações sufocantes das barreiras que anulam o próprio sentido da dignidade do eu, aniquilando pela raiz as impulsões criadoras da inteligência humana. Em consequência, os "poe­tas negros" do Brasil caem, grosso modo, em duas categorias extremas. Ou são réplicas empobrecidas do "poetastro branco", ou são exceções que confir­mam a regra, ou seja, episódios raros na história de uma literatura de brancos e para brancos, o que se po­deria exemplificar, em relação à poesia, com uma fi­gura tão conhecida corno a de um Cruz e Sousa. Não existe uma vitória autêntica sobre o meio. A "inteli­gência negra" é tragada e destruída, inapelavelmen­te, antes de revelar toda a sua seiva, como se não im­portasse para o destino intelectual da nação.

A produção poética de OswaIdo de Camargo sus­cita, em termos dessas ponderações, novos ensina­mentos. Ela foge ao primeiro extremo e evita, apesar das qualidades visíveis do poeta, o segundo, demons­trando que o negro intelectual, liberto dos precon­ceitos destrutivos do passado, tende a identificar sua condição humana, e extrair dela uma força criadora quase brutal e desconhecida, bem como a superar-se pela consciência da dor, da vergonha e da afronta moral. Em outras palavras, começa a delinear-se uma poesia negra e dela constitui uma floração rica e exem­plar a presente coletânea. Mais que sobre qualquer outra coisa, é sobre essa poesia que gostaria de medi­tar, servindo-me da oportunidade que os versos de Osvaldo de Camargo me oferecem.

Na medida em que expressa a condição humana do negro no Brasil, essa poesia afirma-se como uma poesia de ressentimento e de profunda humilhação moral. Não evidencia apenas desalento e mortifica­ção: a depreciação social da cor atinge o equilíbrio da pessoa, convertendo o poeta na voz do drama psico­lógico de uma coletividade. Já no livro anterior (Um homem tenta ser anjo), sente-se o tom acre e soturno do protesto negro:

Meu Deus! meu Deus! com que pareço!?
Vós me destes uma vida, Vós me destes
e a não consigo levar...
Vós me destes uma alma, Vós me destes
e eu nem sei onde está...
Vós me destes um rosto de homem,
mas a treva caiu
sobre ele, Deus meu, vede que triste,
todo preto ele está 2


Mas é nos poemas desta coleção que o referido protesto atinge seu clímax, desvendando toda a amargura triste e revoltada de brasileiros que se envergonham de ser gente:

Recolho o pensamento e me debruço
nesta contemplação, assim me largo...
E, preso ao ser que sou, soluço e babo
na terra preta de meu corpo amargo...

(Excerto de "Canção amarga")

 

Deslembrado de mim, me recordei:
folha no chão, estrume, antigo som
de fonte e sobre a preta face
essa tristeza que sempre haverei...

(Excerto de "Relembrança")

 

Quem vos disse, senhores, que pareço
em desespero com qualquer rapaz?
Se me amargo a contemplar-me, sou
a luta entre o ser nada e o ser demais...

(Excerto de "Pergunta")

 

Profundamente em mim uma lâmina se enterra...
Se enterra e não vale recuo, nem o meu grito breve
às horas rubras desta tarde de hoje...
[...]
Já não sei que fazer para alegrar minh'alma!
E é preciso sofrer para salvar meu sonho!

(Excerto de “Profundamente”)

 

Não sei meu rumo nesta rude terra,
nem sei a que destino me consagro...

(Excerto de "4 sequências, III")

 

Pelo amor das lindas horas
em que sonhais só co' o amor,
parai um pouco, senhoras,
somos os homens de cor,
que vêm tecendo coroas
de tristezas pela estrada...
Voltamos de muitas noites,
há noite dentro de nós,
pelo amor dos que vos amam,
escutai a nossa voz!
[...]
Encontramos a esperança
toda em pranto debulhada...
E nos perdemos na noite,
não achamos a alvorada;
queremos subir na vida,
não encontramos a escada...
E estamos diante de vós,
pranteando o não sermos nada...

(Excerto de "A modo de súplica")

 

Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia;
quer ouvir?
"Sou um negro, Senhor, sou um... negro!"

(Excerto de "Grito de angústia")

Tentei multiplicar os exemplos de propósito. Sob várias facetas, eles nos mostram o negro torturado por avaliações que decorrem da aceitação de uma imagem do próprio negro construída pelo branco. As contradições, as ansiedades e as frustrações, expres­sas com tamanha autenticidade poética por Oswaldo de Camargo, emergem da mesma matriz. Avaliando­-se através de critérios de julgamento e de expectati­vas morais recebidas do branco, o drama de ser negro corresponde, literalmente, à impossibilidade de afir­mar-se em um mundo moldado pelos brancos e para os brancos. Desde a infância, o negro é modelado para viver nesse mundo, como se não houvesse diferenças entre negros e brancos; mas as portas fecham-se diante dele, quando tenta atravessar os tortuosos corredores que conduzem a tal fim. Existe, pois. um "brancor" no negro, o qual só pode ser reconhecido e é válido como estado subjetivo do espírito:

Rosa, rosa, o meu brancor existe,
mas inexiste e meu corpo chora;
rosa, meu pensamento existe,
mas existe e meu corpo sofre...
Percebo o brancor que em mim existe
irrevelado e isso me faz triste...
Quero ser ave!
O azul sei que existe...
Ah, minha alma, chora! 
3


Daí resultam contradições morais. A brancura e a infância surgem como obcecações que traduzem
valores supremos:

Eu vi de branco a menina e esse sonho
jamais me escapou...
E meus dedos sem visgo em vão tentaram
sustar do sonho névoa e brevidade...
E não sei que eco de orfandade
lembrou-me então a mim que eu estava só,
só como o sonho que era único:
branca menina de sandálias brancas...
Como tudo era branco, branco, branco!
E quando me revi estava só...
E minha vida estava branca, branca, branca, 
como meu primeiro caderno de escola...

(Excerto de "Um homem tenta ser anjo")


Ah!
que medi muito mal a distância da vida,
e julgara comigo: "hei de ir muito longe",
mas tombou sobre mim uma idade imprecisa
e eu invejo agora o menino que fui.

Eu invejo agora o menino que fui,
leve, andando nas pedras de tantas montanhas;
e, porque me tornei tristemente um homem,
para breve serei uma sombra, só sombra.

Muitos restos de mim larguei já pelas ruas;
infelizmente me gastando vou...
numa esquina qualquer muitas mortes me esperam,
e eu espero também qualquer morte que venha... 

(Excerto de "Ronda")

Ambas, a brancura e a infância, constituem po­larizações centrais em sua poesia. Uma, como expres­são do mundo vedado objetivamente ao negro, embora acessível pela participação subjetiva. Outra, como fase da vida em que as proibições são menos drásticas ou passam despercebidas.

O drama psicológico e moral do negro, sentido e descrito nesse plano, em que o ego aprofunda as con­tradições e as hipocrisias da "democracia racial brasi­leira", não consubstancia um estado de marginalida­de nem uma atitude de rebelião. Eventualmente, o "brancor" chega a ser desmascarado:

                    Tenho em meus gestos um rebanho inteiro
                         de atitudes brancas, sem sentido,
                     que não sabem falar...
                 
                   (Excerto de "A manhã")

Contudo, o jogo dos contrastes evoca a manhã e a noite em termos da oposição entre o branco e o ne­gro. Não há o desafio moral da escolha nem o apego ambivalente à herança cultural do negro ou do bran­co; trata-se do universo mental que o negro se cons­truiu, no qual ele deveria ser uma coisa, mas é outra:

Eu penso que a manhã não interpreta bem
a superfície escura desta pele,
que pássaro nela vai pousar?

Ai da tristeza de meu corpo, aí,
o pássaro conhece a manhã,
e sabe que é branca a manhã,
mas não ousa enterrar-se de novo
na noite...
[...]
Eu, no entanto, permaneço ao lado
da manhã e das cantigas...
A noite, a grande noite está pousada em mim
escandalosamente!

(Excerto de "A manhã")

O que subsiste, pois, é o desalento ressentido, que transparece melhor onde se afirma uma ligação espiritual com os ancestrais africanos e escravos:

Meu grito é o estertor de um rio convulso...
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito...
[...]
Meu grito é um espasmo que me esmaga,
há um punhal vibrando em mim, rasgando
meu pobre coração que hesita
entre erguer ou calar a voz aflita:
ó África! Ó África!
Meu grito é sem cor, é um grito seco,
é verdadeiro e triste...
[...]
Por que é que grito?

(Excertos de "Meu grito")


Em suma, o negro não repudia nada — nem a ex­
periência ancestral, nem o universo criado pelo bran­co, nem a condição humana que nele encontra. A sua revolta nasce de uma injustiça profunda e sem remédio, que só ele sente por ser posto à margem da vida e da justiça humanas, vítima de um estado ex­tremo de negação do homem pelo homem. Em nome de um código ético rude e egoísta, o branco ignora as torturas, os conflitos e as contradições que cimentam sua concepção "cristã", "cordial" e "democrática" do mundo, condenando à danação todos os negros que aceitem com integridade e ascetismo essa mesma concepção do mundo, com suas opções e valores morais.

Ainda é cedo para emitir juízos definitivos sobre essa poesia negra, associada à liberação social progressiva do branco e do negro na sociedade urbana e industrial brasileira de nossos dias. Dois pontos, todavia, poderiam ser aprofundados. Primeiro, na sua forma atual, fixando o drama moral do negro de um ângulo meramente subjetivo, ela não transcende nem mesmo radicaliza o grau de "consciência da situação" inerente às manifestações iletradas do protesto negro. É certo que ela expõe as coisas de maneira mais grandiosa, chocante e pungente. Diante dela, até os relutantes ou os indiferentes terão de abrir os olhos e o coração: há torpezas sem nome por detrás dos iníquos padrões de convivência que regulam a integração do negro à ordem social vigente. No entanto, essa mesma poesia se mostra incapaz de sublimar atitudes, compulsões e aspirações inconformistas, que a poderiam converter numa rebelião ativa, voltada para o processo de redenção social do negro. Segundo, ela se divorcia, de modo singular, dos mores das populações negras brasileiras. Por enquanto, a poesia que serve de veículo ao protesto negro não se vincula, nem formal nem materialmente, ao mundo de valores ou ao clima poético das culturas negras do Brasil.

As duas constatações possuem amplo interesse. Elas não pressupõem nenhuma sorte de restrição ao nosso poeta ou ao tipo de poesia que se procura cultivar com vistas ao drama humano do negro. Mas revelam de forma expressiva o poder de condicionamento externo da obra de arte. Se o "meio negro brasileiro" tivesse um mínimo de integração, os dilemas morais descritos poderiam ser focalizados à luz de experiências coletivas autônomas. Existiriam conceitos e categorias de pensamento que permitiriam apreender a realidade sem nenhuma mediação ou alienação, através de sentimentos, percepções e explicações estritamente calcadas nos modos de sentir, de pensar e de agir dos próprios negros. Na medida em que o negro, como grupo ou "minoria racial", não dispõe de elementos para criar uma imagem coerente de si mesmo, vê-se na contingência de ser en­tendido e explicado pela contraimagem que dele faz o branco. Mesmo um poeta negro do estofo de Oswaldo de Camargo não escapa a esse impasse, de enorme importância histórica: até onde ele perdu­rar, o negro permanecerá ausente, como força social consciente e organizada, da luta contra a atual situa­ção de contato, sendo-lhe impossível concorrer efi­cazmente para a correção das injustiças sociais que ela encobre e legitima.

Já o segundo ponto tem mais que ver com a di­nâmica da criação literária. Os padrões de produção artística e de gosto literário imperantes aboliram, lar­gamente, o influxo contínuo e produtivo das heranças culturais de que foram portadores estoques étnicos ou raciais considerados como “inferiores”. Ao aderir a tais padrões, o artista acaba sacrificando, sem o saber, riquezas potenciais insondáveis, algumas ligadas às suas energias pessoais, outras vinculadas à influência do ambiente social imediato. Um simples paralelo per­mitiria ilustrar claramente o que pretendo dizer. To­me como exemplo o futebol: em sucessivas gerações sempre contamos com alguns “magos da pelota” ne­gros e através deles conseguimos enriquecer gradati­vamente a nossa “arte de jogar”. Em grande parte, isso se deve à liberdade de expressão conferida ao jo­gador negro, que não encontra réplica na esfera da produção artística, sufocada por preconceitos de vá­rias espécies ou se elimina o concurso do negro e o aproveitamento de sua contribuição criadora, ou se estiola sua capacidade de renovação, submetendo-o a um processo de reeducação que o transforma, sem nenhum sarcasmo, em um escritor branco de pele preta. Embora não devamos levar o paralelo com o futebol longe demais, o que parece aconselhável seria uma reação positiva, pela qual o intelectual negro (e como ele qualquer intelectual identificado com determinada parcela da heterogênea civilização brasileira) repudiasse os freios que o isolassem do éthos de sua gente. Certas perdas culturais são irrecuperáveis; perdemos o poeta negro que recriava as tradições poéticas tribais. Todavia, precisaríamos perder também a própria faculdade do poeta negro de exprimir-se, através de sua poesia, como e enquanto "negro"? Se se desprendesse da tutela total do branco, é presumível que o escritor negro brasileiro estaria em condições de contribuir melhor para o enriquecimento da nossa literatura.

Um poeta da envergadura de Oswaldo de Camargo, se persistir em aperfeiçoar-se e em trabalhar duramente, poderá marcar com sua presença tanto os movimentos sociais e culturais do meio negro quanto a renovação de nossa poesia. O "grande homem de cor" torna-se, em si mesmo, cada vez menos importante em nossa sociedade. Em compensação, os frutos de sua contribuição pesam cada vez mais no fluxo da vida humana. Ninguém melhor que um poeta para revitalizar as aspirações igualitárias, um tanto adormecidas atualmente, que orientaram os grandes movimentos sociais negros da década de 1930. Ninguém melhor que um poeta para sugerir novos ru­mos no aproveitamento construtivo das energias in­telectuais dos “talentos negros”. Fala-se muito que vivemos numa era pouco propícia à poesia. Não obs­tante, o poeta conserva o fascinante prestígio que ad­vém da magia da palavra, indissoluvelmente associada à linguagem e ao raciocínio poéticos. O seu exemplo não só se propaga, como também cala fun­do. Isso é tão verdadeiro hoje como o foi no passado, embora muitos ignorem que não existe civilização sem poesia.

A questão está na qualidade da poesia. Em re­gra, o poeta negro brasileiro tende a entregar-se ao fascínio pela poesia de efeito dramático. A poesia de auditório, que adquire viço e arrebata os corações quando se atualiza através de um recital, com acom­panhamento ao piano. Aqui e ali Oswaldo de Camar­go fez concessões a esse tipo de poesia, enrijando-a com a substância crua da verdade e com sua admi­rável intuição poética. Malgrado o êxito invariável dessas composições, nas reuniões intelectuais das as­sociações culturais negras, elas estão longe de justifi­car as preferências que merecem. Os caminhos que unem a redenção social do negro à emancipação in­telectual do Brasil repousam sobre processos civilizatórios que reclamam uma poesia suscetível de inspi­rar e dirigir a ânsia de aperfeiçoamento contínuo do homem. Ela transparece em muitos versos e em al­guns poemas de Oswaldo de Camargo, principalmen­te naqueles em que o protesto negro encontra eco mais sentido e profundo. Se ela se tornará mais participante e militante, ou não, é impossível prever. Tudo depende do interesse que o poeta tiver pelos problemas humanos de sua gente e do sentido que imprimir, em função disso, às suas atividades criadoras. De minha parte, gostaria imenso que ele completasse o círculo de sua evolução intelectual, arrostando os ângulos inexplorados do protesto negro e libertando-se de influxos que ainda retém suas produções poéticas no limiar das experiências humanas do negro brasileiro.

Notas

1. Nota presente na edição de 30 poemas de um negro brasileiro (2022): texto publicado na primeira edição de 15 poemas negros, lançada em 1961 pela Associação Cultural do Negro. A obra é reproduzida integralmente neste livro, acompanhada de poemas presentes em O estranho (1984) e na antologia Luz & breu (2017).

2. Oswaldo de Camargo, Um homem tenta ser anjo. São Paulo: Supertipo 1959, p. 55.

3. Oswaldo de Camargo. Um homem tenta ser anjo, op. cit., p.73.

Referências

CAMARGO, Oswaldo. 15 poemas negros. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Associação Cultural do Negro, 1961.

CAMARGO, Oswaldo. O estranho. São Paulo: Roswita Kempf, 1984.

CAMARGO, Oswaldo. Luz & breu: antologia poética 1958-2017. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2017.

CAMARGO, Oswaldo. 30 poemas de um negro brasileiro. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

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* Intelectual orgânico, Florestan Fernandes (1920-1995) marca presença na história das Ciências Sociais brasileiras como um de seus mais destacados pensadores, sobretudo no tocante às questões raciais que marcam o período pós-abolição. Dentre suas publicações, destacam-se Brancos e negros em São Paulo (1959, coautoria Roger Bastide), A integração do negro na sociedade de classes (1964), O negro no mundo dos brancos (1972), A revolução burguesa no Brasil (1974) e O significado do protesto negro (1989).

 

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Farol das almas

 

Itamar Vieira Junior

 

 

Em 1842, num espaço de três meses, dois navios que haviam saído do porto de Uidá, no Benim, carregados de homens e mulheres que seriam escravizados na Bahia, encalharam quase no mesmo ponto da costa, três léguas ao norte de Salvador. A região, ainda pouco povoada, não dispunha de iluminação para navegação noturna, soube-se que havia poucas embarcações que poderiam resgatar o contingente embarcado; as do primeiro navio logo foram ocupadas para salvar a tripulação e alguns homens escravizados, talvez os mais fortes, sendo que a maior parte, inclusive todas as mulheres, morreu em alto-mar; o segundo navio não tinha sequer embarcação para toda a tripulação, e os ocupantes de diferentes etnias morreram sem que a Armada Nacional fizesse qualquer esforço para salvá-los. Esses incidentes levaram o governante da província a considerar a urgência de se construir um farol que guiasse o transporte marítimo com segurança até o porto da capital. Dois anos mais tarde, foi concluída a construção do Farol da Pedra do Peixe Duro.

Sob ordens da Armada, desembarcamos as peças vindas do estrangeiro e que seriam usadas para a casa de luz a ser erguida na Pedra do Peixe Duro, como o povo tupinambá chamava o lugar. Eram peças grandes de metal, bastante pesadas, desembarcadas perto da costa em pequenos barcos., mas carregadas por nós, homens cativos. Aos poucos, levantamos uma base de concreto por cima das pedras em que o mar quebrava, onde ficaria a casa de luz. Estávamos atentos às ordens dos engenheiros e cuidando dos movimentos certos para que nenhuma avaria prejudicasse nosso trabalho.

Estávamos também cansados, mas havia em muitos de nós urna grande alegria por estarmos contribuindo com essa tarefa. Dia após dia, a casa de luz que construíamos foi crescendo em meio ao mar e à areia, numa região onde nunca havíamos estado, mas que enchia nossos olhos das cores dos muitos pássaros e da vegetação rasteira. Fazia dias e dias que não víamos a cidade, porque estávamos num ponto distante. Éramos vinte e dois homens e uma mulher, que tinha sido levada apenas para cozinhar para os homens cativos. As noites eram quase frias, de grande vento, e houve uma noite muito bonita em que vimos osupa surgir imensa e amarela no horizonte das águas. Quando os engenheiros viram a grande luz, disseram que a que construíamos seria como osupa.

Tínhamos o corpo marcado pelo trabalho. Alguns de nós apresentavam cicatrizes na pele, nas costas, nas pernas, no rosto. Quase todos tinham também retidas na alma. Apenas um de nós havia feito a travessia de navio de lá para cá. Ele nada contava, quase não falava, mas tínhamos certeza de que havia enlouquecido ao ver corpos sendo atirados ao mar -- era o que os africanos diziam — e também ao perceber que não pertencia mais a lugar nenhum.

E nossos pés descalços caminhavam todos os dias até as pedras, e as subiam na maré baixa para, com nossas forças, levantarmos a casa de luz.

Quando ela ficou pronta, já não éramos mais vinte e três, dois homens haviam morrido de exaustão, não por este trabalho, mas por tudo que tinham feito na vida. À noite, quando a casa de luz estava acesa, também não parecia em nada com osupa, corno os homens da Armada haviam falado. Era uma luz pequena que surgia e sumia, surgia e sumia, sem fazer diferença para nós que estávamos na terra. Mas eles se entusiasmavam. Deixaram tudo pronto para a visita do governante da província, e alguns de nós permanecemos por lá para ajudar na manutenção, nos primeiros tempos que o homem quis clarear a noite.

Foi a mulher que cozinhava para nós que perguntou, em segredo, quem acendia a casa de luz. Os homens da Armada, dissemos. Ela lamentou não achar justo que aquele monstro de ferro que cuspia luz à noite servisse para guiar as embarcações que traziam os nossos para morrerem de maus-tratos e trabalho. Não era só para isso, dissemos, mas também era. E vimos, cada um à sua maneira, que de dia ela espreitava pela janela de onde estava e era capaz de nos dizer quais embarcações abrigavam almas aflitas, e que buscavam nela conforto. Era como se ela mesma fosse um emissário no alto da casa de luz, que nos informava o que os navios traziam.

Ainda vimos osupa surgir grande e enfeitiçando os homens na terra, até que a cozinheira da Armada voltou para a cidade. Foi quando aquela mulher, que nos assombrava com sua magia, que encontrava e falava além do vento com as almas embarcadas, passou a cozinhar para eles. Nunca nos esquecemos desse dia, porque logo depois da ceia eles caíram num grande sono. Mesmo nós, que não dormimos, andamos como se estivéssemos em sonho. Não sabemos dizer ao certo quem apagou a casa de luz nem quem nos ordenou que seguíssemos com os barcos para o mar em direção ao pequeno lume no breu da noite. Nem soubemos dizer por que os homens brancos a quem estendemos as mãos para os nossos barcos foram afogados também por elas. Nem mesmo sentimos culpa, porque nossos corpos eram guiados por tudo o que sonhávamos, e foram nossos braços marcados que conduziram nossos irmãos do mar para a terra, e da terra para as veredas da liberdade.

(In: Doramar ou a odisseia. São Paulo: Todavia, 2021, p. 24-6)

 

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Griot & guerreiro

Lélia Gonzalez*

 

A poesia de Abdias Nascimento tem muito a ver com sua pintura e seu teatro. Exatamente porque cada registro nos remente a outro, numa espécie de circularidade, tematizando, em suas respectivas linguagens, um campo cultural alternativo àquele totalitariamente imposto pela cultura dominante: Abdias “poeteia, pinta e teatraliza” porque e enquanto negro. A força metafórica dos seus versos, a força colorida das formas de seus quadros, a força dramática de suas peças, ele não buscou nas escolas ocidentais especializadas em “fazer artistas”, mas nesse campo cultural alternativo, repito, reelaborado e recriado pelo povo negro em nosso país. É do axé (para os nagôs) ou do muntu (para os bantus), é dessa força vital doadora da existência e da transformação dos seres que ele retira a energia que perpassa os três registros em que sua criação artística se expressa.

Como nos diz Muniz Sodré, o "muntu, assim como o axé, existe nos animais, minerais, plantas, seres humanos (vivos e mortos), mas não como algo imanente: é preciso o contato de dois seres para a sua formação. E, sendo força, mantém-se, cresce, diminui, transmite-se em função da relação ontológica do indivíduo com os princípios cósmicos (orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descen­dentes" (1983, p. 129-130).
Não é por acaso que, no poema de abertura, "Padê de Exu Liber­tador", o autor invoca esse princípio da existência individualizada e também princípio dinâmico de comunicação, veiculador de axé que é Exu, dizendo:

(...)
imploro-te Exu
plantares na minha boca
a teu axé verbal
restituindo-me a língua
que era minha
e ma roubaram
(...)

É recebendo o axé plantado por Exu (e atente-se para o planta­do), que eu posso retomar a língua que me foi roubada: é absorvendo esse axé que retomarei o conhecimento de um saber que me foi tirado pela violência física, pelo terrorismo cultural, pelo etnocídio a que fui submetido por aqueles que escravizaram meus ancestrais e que, hoje, me exploram e discriminam, afirmando sua "superioridade" e sua "ci­vilização"; é retomando o "meu falar antigo/ por tua força devolvido", que não me perderei nas armadilhas das abstrações vazias que só fariam me arrancar do chão que piso com pés desnudos e ligeiros na dança do aqui e do agora, onde passado e futuro estão presentes. Por isso mesmo, com teu axé, "percorrerei as distâncias do nosso aiyê/ feito de terra incerta e perigosa"...

Por outro lado, é importante ressaltar que esse poema de aber­tura não ocupa tal lugar por mero acaso. Ele aí está como elemento in­dispensável à abertura do ritual que cerimonializa as atividades da co­munidade-terreiro. E falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típi­cas da cultura negra. "Todo ritual, diz-nos Muniz Sodré (op. cit., p. 130), implica num conjunto de procedimentos (verbais e não-ver­bais) destinados a fazer aparecerem os princípios simbólicos do grupo, aquilo que os gregos acabaram chamando de verdade (alétheia)”. E é fazendo o seu padê de Exu que Abdias "abre os trabalhos" rituais para que sua verdade, sua negra verdade de homem negro, possa surgir no xirê de sua vida de an-danças por esse aiyê, "feito de terra incerta e peri­gosa". E, na invocação dos orixás, convertido em griot, ele conta can­tando, ao ritmo do rum-rumpi-lé e do agogô, o percurso e os caminhos do filho de Josina, a de braços escarificados em "buquês de queima­duras e cicatrizes" pelos tachos de pasta fervente de goiaba.

De Exu a Oxalá, em terras africanas ou da diáspora, os orikis/poe­mas se seguem, cumprindo os procedimentos do ritual nagô/bantu. Em linguagem ocidental, diríamos que é este o modo de estruturação do livro.

"Mãe" é, sem a menor dúvida, um dos melhores poemas do texto, dada a sua grande riqueza metafórica. O elemento líquido — desde "as águas primordiais de Olokurn" (que nos remetem a Isis, Oxum e a todas as grandes-mães míticas), ao leite e ao sangue — constitui o mar por onde o griot/poeta navega suas lembranças de infância, suas an-danças solimônicas com amigos/irmãos, suas denúncias de negro revoltado, seus soluços de sensibilidade ferida, seu amor generoso pelos de sua linhagem. Na verdade, ele narra o seu mergulho no ventre da vida.

O axé, implorado no poema de abertura, manifesta-se na força da palavra que navega "do Egito antigo a Oshogbo a Franca", cantando o amor que exalta Josina doceira, mãe-de-leite de filhos alheios, senhora do saber das ervas que curam os males e as mazelas dos que a ela recorriam (e que não foram poucos). Josina, a do amor valente, "jamais enfraquecido/ na queixa ou na lágrima". Josina, mulher negra oprimida e explorada pelos senhores da terra francana, terra que "se alimentou/ do teu suor/ dos teus ossos/ de tua carne/ golpeada pela necessidade". Josina, mulher de José, "não o carpinteiro/ mas o sapateiro". Josina, mãe de Benedito, Rubens, Dedé, Oliveira metalúrgico, Antônio, Abdias e Ismênia, brotados das águas e do sangue de seu ventre (não cheio de graça, mas de axé). Josina, a dos braços vigorosos "nos quais/ navego teus abraços/ nesses braços que são teus/ traço a ternura dos lábios meus/ à flor borbulhante do sangue/ que chamusca tua pele escura/ no tacho da tua existência/ tão curta de alegria/ tão sofrida de vivência/ raiz fincada na terra ao/ infinito de tua compaixão/ unicamente parti­lhada/ à graça pura da doação". Ninguém melhor que o poeta negro para cantar o amor à mulher-mãe.

Mas o canto à mulher-filha também se faz presente em "Evoca­ção da Rosa", oferecido a Yemanjá, a quem conheci nas terras geladas de Búfalo, qual um raiozinho de sol dos trópicos exilado. E o que se tem, na "Evocação da Rosa" é mais uma doação de amor paterno que fala da própria infância para a infância da filhinha distante. E, na histó­ria da gatinha Rosa, fica uma espécie de apelo que, dada a continuação do xirê da vida, tenta dizer à filha-criança, ainda não mulher: — Vê? Temos algo em comum. Eu também já fui criança.

Já em "Lucina" se delineia o amor à mulher-amada, metonimi­zada em Lua. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, des­vela a sensibilidade do amante (filho de Oxum, é bom não esquecer) em seus doces apelos à amada: "Vem Lucina pálida/ que ao teu luar/ beijarei teu lunar" ou, então, "Vem Lucina pálida/ genuflexo beijarei teu sexo". Mas eis que o queixume do amante, que deseja sua "rosa da noite/ se abrindo toda da lua ao reflexo", explode no grito alegre do africano "ministro alufá/ Xangô servidor do sexo/ bebedor de aluá" que, em tempo de lunação, clama por lues, "lues não/ Tragam-me luas Lanas/ venham luandas aruandas" ... E neste poema de amor, onde nosso griot fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios das danças e contra-danças do ato de amor (perplexo, complexo, re­flexo, luniflexo, desflexo etc). Mas só no finalzinho do poema, encon­trei aquela que, a meu ver, o caracteriza sem rodeios: amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, nosso griot fala de um escafandrista que mergu­lha em profundas águas enluaradas...

Aliás, a história desse poema é bastante curiosa. Primeiro, porque "Lucina" foi o primeiro poema publicado do autor (em Paris, na revis­ta Le temps des loups, n° 45, 1969). Segundo, porque se trata de seu único poema por encomenda: justamente para fazer parte de uma anto­logia que tematizava a Lua, com a contribuição de poetas de todas as partes do mundo. Vivia-se, naquele momento, o impacto do lançamen­to do Sputnik e demais satélites artificiais. Por essas e outras, ele nada teria a ver com o xirê que estamos acompanhando. Mas quem é que po­de determinar os desígnios da criação poética? Sobretudo quando ela se faz sob a égide dos orixás, esses doadores de axé?

Os passos do ijexá, cantado pelo griot/ poeta, conduzem-nos ao solo sagrado de Oshogbo. E aqui, o cântico se eleva, intensificado pelo toque dos atabaques, agora na exaltação da Grande-Mãe Mítica. Em sua "Prece a Oxum", o filho-peixe mensageiro, num relato indignado, de­nuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacri­ficam milhões de crianças negras aos ídolos de seus terrorismo colonialista. E mais, sob a hipocrisia do que chamam de "sincretismo", obri­gam-nos a, "em lugar do vosso sagrado nome/ invocar nomes profanos/ nossa senhora da conceição/ nuestra señora de la caridad del cobre/ fe­tiches pagãos insanos".

Na denúncia indignada, afirma-se a heterogeneidade em face da ideologia dominante ocidental que, em sua fome de controle absoluto, só permite a afirmação da diferença, justamente porque esta não passa de um disfarce da sua exigência totalitária de homogeneidade trans­parente.

Chegamos agora ao ponto culminante do nosso xirê. Aqui, a hete­rogeneidade se afirma, plena de axé, no canto forte do griot e no toque acelerado do adarrum. Pisando firme no espaço sagrado dos orixás, dos ancestrais, do mito e do rito, a dança também se acelera. E do peito do griot explode um oriki tonitroante de conclamação à luta, imagem ter­rível de Xangô Justiceiro. Pontuado pelo ritmo candente dos atabaques, aqui e ali marcadamente nomeados, o brado ecoa vibrante, arremetendo contra a "descivilização ocidental", etnocida em sua "universalidade" ditatorial, letal em seu unitarismo sectário ("na sola dos pés sangren­tos/ temos dançado/ o madrigal da escravidão/ o minueto do tráfico/ o fado do racismo/ agora na pele flamejante dos tambores dancem eles o nosso bailem de guerra/até despontar aquela aurora/ de dançar o afoxé/ da nossa batalha final vitoriosa").

Por tudo isso, há que desfraldar a bandeira tricolor, não aquelas do imperialismo ocidental, mas a do pan-africanismo, "úmida do san­gue negro derramado/ no combate vermelho sempre continuado/ pela integridade verde da herança nativa poluída". Em sua dança de guerra, transfigurado em Ogum, com o ixé de Oxum em seu peito fincado, nos­so griot de novo 'firma o ponto" da heterogeneidade: "Somos a semen­te noturna do ritmo/ a consciência amarga da dor/ florescida nos toques anunciadores/ da perenidade das coisas vivas".

Empunhando o agadá, "obrigação a Ogum e lfá", o griot/guer­reiro conclama seu povo a transfigurar o tempo do chorar e reclamar em tempo de afirmação do próprio ser, através da luta semeada com deci­são, ampliada "com ardor e paixão", às custas da "incompreensão/ do inimigo ou do irmão". Pois só o ser-em-luta é capaz de se desvencilhar das armadilhas do louvor e do egoísmo, do desejo de glória ou do medo da morte, todas elas armadilhas, sobretudo a última, "do insensível mundo branco". Afinal, 'Tempo de viver/ (ensina Ajacá)/ é tempo de morrer". E para aqueles que ainda titubeiam, continua: "uns já estão mortos/ vivendo/ nós estaremos vivos/ morrendo"...

"O Agadá da Transformação", a meu ver, é como um testamen­to mito-poético que o guerrilheiro Abdias lega a seus irmãos. Mas há que estar no campo alternativo da cultura negra para que o axé/muntu nele contido possa ser absorvido, afim de que se apreenda o seu segredo. Laroié!

No xirè de sua vida, nosso griot canta muitos outros orikis, dançando-os ao ritmo do opanijé, do ijexá, do alujá, do adarrum e tantos outros, ao passar por terras míticas e/ou reais. Deles aqui não falei, para não ser repetitiva ou por efeitos de minha própria limitação. Mas diante de um deles me curvo em silêncio respeitoso, já que a minha iniciação até aí não chegou. Refiro-me ao oriki de encerramento, "Axexê em Oxalá"...

E, retomando o canto de outro poeta, ficamos por aqui:

Tá contada a minha história
Verdade, imaginação
Espero que o Sinhô
Tenha tirado uma lição:
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
(...)

Afinal, a lição que nos foi dada aqui é a de que, inclusive, a gente tem o modo da gente pra contar a nossa história. ORAYEYEO! AXÉ/ MUNTU! 

Rio de Janeiro, 18/01/1984

 

Referências

GONZALEZ, Lélia. Griot e guerreiro. Prefácio a NASCIMENTO, Abdias. Axés do sangue e da esperança (orikis). Rio de Janeiro: Achiamé/RIOARTE, 1983.

SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Ed. Codecri, 1983.

______________________

*Lélia Gonzalez, pensadora e ativista, é autora, entre outros, de Por um feminismo afro-latino-americano (2020) e Primavera para as rosas negras (2018). Para mais informações consultar http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1204-lelia-gonzalez.

 

Texto para download

 

Dois nós na noite
(monólogo em um ato)

 

Cuti

 

Personagem

JUDITH

Mulher negra. Idade entre 30 e 40 anos. Cabelos crespos.

 

Cenário

Residência de classe média. Um sofá, poltronas etc.

O televisor deve estar, a princípio, longe do sofá.

 

PRIMEIRO QUADRO

 

Judith, de pé, olha o corpo de um homem negro estendido sobre o sofá. Senta-se em uma poltrona.

 

JUDITH: Por que, meu amor? Por quê? Que revolta eu te causo, assim tão violenta? De repente, me pego pensando ser a razão de tudo, de tudo o que te magoa. Até o fato mesmo de ser...

 

Levanta-se, como diante de uma ideia ousada que não tem muita segurança para expressar. Caminha sob um foco.

 

É... Bem... Sabe, eu sempre senti isso em você, mas... Como é que eu ia dizer, sem me sentir diminuída, sem que você me chamasse de complexada, de atrasada de... De tudo!? Mas... Você se lembra das fotos? Você guarda fotografia de todas elas! Todas?... bem, não sei, talvez... E eu devo conviver com isso. Ora, fotos, o que são fotos? Vivem na gaveta com teus papéis, na gaveta de teus documentos... São documentos também. Talvez decretos, projetos de lei, leis, medidas-provisórias ou mesmo... É, quem sabe, a sua própria constituição. Você as mantém desde quando namorávamos. Você, tão trabalhador, tão honesto e, ao mesmo tempo, sedutoramente despojado, colorido, à vontade, cabelo black is beautiful, uma conversa louca, um mundo verbal, fantásticos universos saindo da sua boca como pássaros brilhantes espargindo luz por todos os lados, deixando-me multicor nos meus afetos, na minha redenção, tirando-me do cativeiro que a educação tinha me colocado junto à solidão. Você, você, você maravilhoso, príncipe dos meus sonhos... Meu hippie, meu iuppie, meu homem fervoroso de tantos fogos inusitados, tesão sempre nova, a primeira cama onde se abriu a minha rosa-choque, minha romã desfolhada em flor... Lembra do apelido?... Ah, sempre eu me sentia fruto, folha, flor nos teus braços. Nossa nudez única, sem abismo, sem sobressalto, denso rio de prazer noturno...

 

Volta-se, procurando o interlocutor. O sofá e o homem se perderam na escuridão. Orgulhosa.

 

Viu como eu sou poeta? Viu como sei pintar minhas emoções, com liberdade entre os lábios, com este vento interior que move a capacidade de falar, de refletir, de analisar, de ver o mundo? Eu posso me expressar livremente.

 

A luz sobre Judith vai se extinguindo ao mesmo tempo em que ressurge sobre o sofá, onde se vê um enorme peixe fisgado, na mesma posição anterior do homem. A linha se perde no alto. Do escuro.

 

Eu posso. Sim, eu posso!

 

O rosto de Judith reaparece em um espelho suspenso. Profunda decepção.

 

Sim, eu posso... (Soletra) Des – de – que – vo – cê – es – te – ja – dor – mim – do... (Vai pintando os lábios com um batom vermelho e brilhante) E por que isso?

 

Inicia-se o som de carretel de vara de pesca, bastante acelerado, mas o peixe vai sendo içado lentamente, marcando, assim, um contraste de ação com o movimento. A imagem de Judith desaparece do espelho e a personagem ressurge. Agressividade crescente.

 

Sabe por que, meu amor? Quando você dorme, quando você chega com sua bebedeira encharcada, sua lama alcoólica de tanto desespero sem razão aparente, e cai balbuciando palavras de tons polidos, entremeadas de “meu amor, eu te amo” e me designa por uma lista imensa de flores brasileiras, como se procurasse uma que me definisse... Depois desse turbilhão de pouco fôlego, meteoro de palavras no seu céu confuso, aí, no momento em que percebo você incapaz de me ouvir e ver, então tenho a certeza inquestionável de estar só, inteiramente só com todos os seus documentos. Sim, os documentos que você guarda na gaveta, aqueles rostos acariciados por suas mãos... Penso: teriam sentido um prazer real num beijo real, lábios com lábios, língua com língua, saliva com saliva? Quando o conheci, você bebia pouco. Talvez antes nem bebesse essa mistura explosiva que o eleva às alturas e, ao mesmo tempo, joga-o neste estado. Tenho a certeza de que este sono é apenas a incapacidade progressiva de me ver. O arrependimento tardio. Eu sou bonita, não sou? Mas, e as fotos, e elas todas, os documentos mais importantes da sua vida? Onde vai, meu amor? Que céu é esse que você procura com tanta bebedeira inexplicável, esse tropeçar em angústias?...

 

Pausa. O som do carretel de vara de pesca diminui de intensidade. O peixe está alto. Ganha brilho. Balança, sem movimento ascendente. Dirigindo-se ao público como se o interlocutor lá estivesse.

 

Eu sei. Eu tenho certeza. Você foge de mim, foge sim, nem adianta mentir. A ternura agora já não pode mais me seduzir. Chega! Quem o quiser encontrar... Não, não precisa caminhar nos seus sonhos, não necessita percorrer a sua biografia, passar pelos seus sucessos profissionais e decepções, ou lembrar a infância difícil, nem necessita percorrer as reuniões do Movimento Negro, onde nos conhecemos. Não é nessas paragens que podemos encontrá-lo. Não é nelas que se situa o céu no qual você mergulha, mergulha, mergulha... (Em desespero) Mergulha completamente bêbado! (Pausa) Não... Quem quiser topar com você é só abrir a sua gaveta, é só abrir seus guardados...

 

O peixe mergulha no alto e desaparece em meio a forte luminosidade, um espargir de luz.

 

SEGUNDO QUADRO

 

Judith ressurge cercada de sete manequins brancos e femininos. Cada manequim traz uma peruca diferente. Estão vestidos para vitrina, em posições diversas, porém harmônicas no seu conjunto. Ainda Judith dirige-se ao público, como se nele estivesse o seu destinatário singular.

 

É só olhar para o rosto de cada uma delas, é só fixar o olhar 3 X 4 de cada uma delas para perceber onde se encontra o final da viagem que você inicia no vício e passa por essa reiterada tentativa de suicídio. Aqui, eu sei, é o descanso da sua enorme mentira que eu sou, querido. (Dirige-se a um dos manequins) Não é mesmo, Kátia? Qual o descanso que você proporcionava a ele, hein? (Retira a cabeça do manequim e passa a dialogar com ela) Ah, certamente é este céu que ele procura em mim e não encontra. O azul, onde se esconde os anjos, a pureza, o dia que todos regozija... É isso, Kátia? Só pode ser. Você tem os dentes podres, um nariz tucano... Ah, ah, ah... O teu bafo de sardinha estragada... Ah, ah, ah... Ele me contou... Você abriria a boca e ele... (Para o público) Não é, meu amor? (Voltando-se para a cabeça do manequim) E ele quase desmaiava. Teve uma certa vez que até sentiu ânsia de vômito e saiu com uma desculpa de que havia comido sardinha deteriorada. A sardinha era você, minha santa, era você!...

 

Judith atira a cabeça do manequim. Para si.

 

Só podia ser esse azul. Ou, quem sabe...

 

Vai em direção à cabeça que fora lançada e dela retira a peruca como quem escalpela, colocando-a sobre a sua própria cabeça. Para si.

 

Talvez... Pode ser que eu fique bem assim, mesmo sem o azul... (dirige-se a outro manequim) Você não acha, Cristiani? Afinal, no meio dos olhos sempre haverá um negro sem fim, o milagre preto da visão. O que está em volta é só enfeite, seja castanho, verde, claro, escuro e até azul. É através do preto que o mundo se forma no espírito, é através do preto...

 

Apanha o manequim e coloca-o em posição mais visível, distanciado dos outros.

 

Através do preto que se bebe a imagem do mundo. É o preto que nos amamenta de forma novas... É o preto que nos amamenta.

 

Vai retirando a cabeça e os braços do manequim. Por fim, separa o tronco da parte inferior e abraça-o. Para o torso do manequim.

 

Não é mesmo o preto que nos amamenta? Diga, Cristiani!

 

Pausa. Põe-se a fitar longamente as mamas do manequim e começa a suga-las sensualmente. Enlevada, para o público.

 

Está bem, querido, está bem... Assim... Eu sei que você queria era isso mesmo. Não era? Tetas leitosas, sem contraste com o leite, não é mesmo? Não foi isso, querido, não foi?...

 

Abandonando abruptamente a sensualidade. Para o busto.

 

Ele chegou a pronunciar o teu nome, entendeu? Eu me chamo Judith! Não tenho seios volumosos como os teus... (Desafiadora) Mas, por outro lado, queridinha, ah, ah, ah... Eu tenho bumbum, sabia? Sabe o que ele me falou de ti? Ah, não sabe? Ele me disse que quando passava as mãos pelo teu traseiro, ele se confundia. Só faltavam os pelos para parecer o teu dianteiro. Em você não se aproveitava nada além dos seios. Feia! Feia! Horrorosa, achatada, vaca leiteira!...

 

Atira o torso do manequim. Passa em revista os cinco outros manequins.

 

Preciso furar os olhos de todas vocês. Vocês olham, mas se negam a ser vistas. O olhar de vocês está sempre algum degrau acima. Minha sensação é a de quem gravita em volta, satélite dessa tal beleza, essa sedução, essa coisa que me violenta e me impulsiona a ser o que não sou. Essa necessidade de ser igual, igual, igual...

 

Para, como se tivesse esquecido de dizer algo para alguém que se distancia. Apelativa.

 

Cristiani, espere... Esqueci... Você pode me emprestar? Bem, pode ser que seja útil para mim. Ahn? Ah, sim. Um dia eu te devolvo.

 

Apanha a peruca do chão e coloca-a sobre a que está usando. Arruma-as.

 

Obrigada, querida. Ah, sim, ele vai gostar. Tenho certeza. Adeus. Lembranças em casa. (Voltando-se para o público) Fiquei bem, querido?

 

TERCEIRO QUADRO

 

No palco surge apenas a luz de um televisor fora de sintonia. Comerciais em off, vai sendo revelado o sofá sobre o que está situado o televisor, no mesmo lugar em que antes estivera o homem e depois o peixe.

 

COMERCIAL 1: (Voz sedutora) Shampoo Nuage deixa seus cabelos macios, sedosos, irresistíveis... Com Nuage ele se sentirá muito mais próximo do céu e lhe entregará todas as estrelas de carinho... Nuage, o seu shampoo... E o dele.

COMERCIAL 2: (Voz agressiva) não deixe seu cabelo assim: duro, quebradiço, sem cor e sem brilho! Use o alisante perfeito para qualquer tipo de cabelo. Alisabosa, o único feito com babosa selecionada. Vá correndo à primeira farmácia e... (Aliciante) Deixa o vento ventar...

COMERCIAL 3: (Voz serena) Em matéria de cabelo, eu descobri. Prático, tanto na embalagem quanto no uso. Nada de ficar ensaboando, lavando. Não. Você passa após o banho e... Quando ele chegar, você perceberá o efeito nesses olhos que serão só seus. Hummm... Faça o teste. Amaciante Look for Me, a lembrança dos cabelos mais íntimos...

 

A televisão é desligada.

 

QUARTO QUADRO

 

Judith sustenta a metade de um manequim (da cintura para baixo). As pernas deste estão sobre os ombros da personagem, que mantém o rosto voltado para o colo do manequim. Os quatro outros se encontram agora totalmente cobertos, cada qual com um pano roxo, tipo saco até os pés. Esses manequins movem-se muito lentamente.

 

JUDITH: Marina, você é minha maior inimiga. Era aqui que ele mais feliz se morria. O que você possuía no meio dessas pernas que o seduzia tanto? Me contaram que você era prostituta de luxo... Não importa o luxo. Era prostituta! Ele, assim mesmo, vinha fundear a vida entre seus loiros pelos, esse “trigal macio”, como dizia um poeta. (Pausa) Você deve ser muito funda, de forma que ele não te alcance nunca, por mais que penetre a sua carne. Assim, ele deve vir sempre tentar de novo, tentar te machucar... Deve ser isso. Porque ele me confessou que a única coisa que queria com todas vocês era atingir um objetivo muito definido: fazê-la gemer! O quê? Prazer? Não, não era prazer. Era de dor. Ele me disse. (Pausa) Me disse? Ora... Ora... Era como se tivesse dito. Não é preciso o uso da palavra para demonstrar o impulso que nos projeta adiante... Exatamente como ele devia se projeta em você: “A mulher mais funda que eu conheci”. É, ele me falou isso, sim. Falou? (Para a plateia) Você me falou isso, meu bem? Ou quase isso? Talvez nem tanto, ou não com essas palavras... (Para o colo do manequim) Ora! Não devo me preocupar com uma puta. Loira, mas puta.

 

Atira a parte do manequim. Para. Apanha-a. Analisa-lhe as reentrâncias. Mira a “vagina” do manequim, chamando.

 

Meu bem, volte! Saia daí, por favor. Esse lugar não tem saída. O suicídio é o final deste túnel. Os gemidos são todos falsos... Meu amor, volte! É de você que eu preciso.

 

Lança de novo a parte do manequim. Apanha, em seguida, uma peruca loira.

 

Se você quiser eu me enfeito mais, dou um trato no visual... olha, veja se eu fico bem assim?

 

Neste momento os manequins cobertos já estão distanciados uns dos outros. Judith coloca a terceira peruca sobre as duas que já estão sobre a cabeça. Sedutora.

 

Você gosta? Então, meu bem... Saia daí, saia... Essa gaveta o sufoca. Essas fotos mantêm você aprisionado. Eu o quero livre no meio do meu abraço. Não é ciúmes, não. Acredite. Saia, meu amor, saia...

 

QUINTO QUADRO

 

Luz sobre o sofá, onde o corpo do homem reaparece, na mesma posição do início. Um balão de gás, em forma de coração, mantém-se a um metro de altura do corpo, flutuando, a ele ligado por uma “corrente”, na direção do peito. A corrente deve flutuar também. Judith surge com um véu de grinaldas sobre as perucas. Tem nas mãos um buquê de flores. Judith, contrita, para o público.

 

Heloísa, Marina, Julieta, Cristiani, Eugênia, Kátia, Marília... Sim, padre! Sim, padre! Marília, Kátia, Eugênia, Cristiani, Julieta, Marina, Heloísa... Sim, padre! Sim, padre! Julieta, Marina, Heloísa, Cristiani, Eugênia, Kátia, Marília... Sim, padre! Aceito como meu legítimo esposo este homem negro, meu príncipe encantado, até que a sorte nos separe ou nos apare as arestas, ou nos ampare na ternura e no sexo e nos livre destes fantasmas. Sim, padre! Sim, padre!

 

Balançando a cabeça, Judith vai tirando da cintura uma faca, e continua o movimento afirmativo, ora ao vazio, ora à faca. Atrás da personagem, como os quatro cantos de um ringue, surgem os manequins cobertos. Uma corrente branca, grossa, liga-os. Bate o sinal para início da luta. Judith entra no ringue com a faca. Vai lutar contra os manequins cobertos. Um por vez.

 

Deles eu sempre tive repulsa. Não tive e não quero ter a pimenta no sexo para temperar a voracidade deles. Todos chegaram cheirando a podridão do passado, querendo mais uma preta, mais um hímen para sua coleção. Ou então, ah, uma mulata na passarela da sedução. Não. Não.

 

Judith levanta a faca, sustentando-a na direção do manequim. Com a outra mão, toca-o com cuidado.

 

Ele é meu. Meu. Resto de vocês, mas é meu.

 

Rasga o pano que cobre o manequim. Revela-se a cabeça careca de um manequim feminino e preto. Judith, assustada, recua. Recua até tocar com as costas outro manequim. Volta-se e trava com ele outra luta de palavras e gestos.

 

Trégua? Não. De onde me vem este querer um homem negro por pior que seja meu precipício? Mas vocês, a brancura de vocês... (À parte) Não é, meu bem?

 

O balão-coração desliga-se do corpo e sobe com a “corrente”. Um foco de luz persegue-o. O corpo jaz na máxima penumbra.

 

Essa brancura com mau hálito, dentes podres, putana, ladra, inhaca nos sovacos, imoral, tudo o que quiser... Seduzindo a sede, seduzindo... Cedo, muito cedo, ele ainda menino (tenho certeza!), o olho aceso nessa beleza...

 

Judith rasga o pano de outro manequim, que se revela igual ao anterior, novamente apavorando a personagem, fazendo-a recuar.

 

De nada adianta se esconder de mim. Eu aceito sim, seu padre! Eu aceito, sim. Não adianta fugir. (Para outro manequim ainda coberto) Sei que você se encobre. Eu sou eu, não você. Seu rosto não é o meu rosto. De todos aqueles estupros na senzala, o que posso sentir é nojo, imenso nojo da miséria violando nosso útero, a humilhação castrando nosso desejo de viver. Nojo, imenso nojo. E esta sensação amarga nas entranhas da alma: ver meu homem querendo amor na desforra para provar a sua virilidade, essa maneira estúpida de conquistar o prazer de viver... (Pausa tensa) Mostra a tua cara, beleza do chicote, do tronco e dos inúmeros suplícios e vícios!...

 

Judith rasga o pano roxo do terceiro manequim. É também um manequim preto. Ato contínuo, ela se volta para o último, cravando-lhe a faca no peito. Soa o sinal do término de assalto da luta. Judith arranca as perucas e sai do ringue.

 

SEXTO QUADRO

 

Judith em off. Gravação de telefonema.

 

Sim, mamãe. De novo... só que reclamava de dores. Sempre reclama. Disse que foi atropelado. Mancava repetiu as mesmas coisas de sempre, que me amava, falou o nome das flores, perguntou pelas crianças e adormeceu gemendo. Está com a roupa um pouco suja... Sim, também falou aquelas bobagens, pronunciou aqueles nomes... Sim, parecia estar mais embriagado do que nunca. Mamãe, o que faço? Estou sem coragem pra nada. Ele está frio, gelado, não está gemendo mais... Eu não sei, não sei, não sei...

 

Luz sobre o sofá, onde se encontra apenas uma gaiola branca com um pássaro preto dentro. De pé, um manequim preto, nu, de grinaldas (é um manequim feminino), com uma faca espetada nas costas, sustenta um buquê de flores, direcionando-o para a gaiola. Ouvem-se vários cantos de pássaros num crescendo.

 

Fim desta peça.

 

(In: Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro, 2.ed., 2009, p. 7-22)

 

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Cuti - Padê poemas

 

Segundo a tradição, Exu é a divindade responsável por fazer a comunicação entre os homens e os orixás. Não só responsável, mas o único capaz de conectar Aiyê e Orun, sem Exu não existiria religião. Talvez por isso seja uma figura recorrente nas mais diversas culturas africanas, porque apenas com Exu é que as outras divindades do panteão podem exercer os seus poderes.

Os mais velhos ensinam que Exu deve sempre ser reverenciado primeiro, por ser ele o orixá portador dos princípios dinâmicos do mundo. Por isso que no início de toda cerimônia pública ou privada nas religiões de matriz africana é oferecido um padê a Exu.

No alguidar é servido uma mistura de farinha de mandioca – ou farinha de milho, cachaça e dendê, também pode ser encontrado mel, se for Exu fêmea, como oferenda principal, mas a disposição de qualquer alimento ou bebida votiva a Exu é considerado um padê. E ele pode ser tanto uma oferta humilde para que Exu abra os caminhos, quanto um elemento apaziguador.

Nesse sentido, os padê poemas, videopoemas do Cuti, até o momento único autor negro a fazer poemas nesta modalidade dentro da literatura afro-brasileira, são ao mesmo tempo mensagens que o Exu de Cuti comunica aos seguidores de suas redes sociais, assim como oferendas ao Exu que cada um carrega dentro do ori. Exu aguça a criatividade e dá alento para que exposto aos horrores, siga sempre sorrindo, portanto, seguir Cuti no Instagram é uma benção, cada padê poema é um copo de água potável lambendo a rede de um rio quase seco.

 

Padê poemas selecionados

Gota que não se esgota”

Exercitando a utopia”, padê poema 156

Pesos e mordidas”, padê poema 155

“Poema para mais um irmão assassinado”, padê poema 148

“Apelo a contrapele”, padê poema 145