Encontrei minhas origens

Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
....... livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
...... cantos
em furiosos tambores
....... ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei

 

(p. 136.)

Treze de Maio

Treze de maio traição,
liberdade sem asas
e fome sem pão

Liberdade de asas quebradas
como
........ este verso.
Liberdade asa sem corpo:
sufoca no ar,
se afoga no mar.
Treze de maio – já dia 14
o Y da encruzilhada:
seguir
banzar
voltar?
Treze de maio – já dia 14
a resposta gritante:
pedir
servir
calar.
Os brancos não fizeram mais
que meia obrigação
O que fomos de adubo
o que fomos de sola
o que fomos de burros cargueiros
o que fomos de resto
o que fomos de pasto
senzala porão e chiqueiro
nem com pergaminho
nem pena de ninho
nem cofre de couro
nem com lei de ouro.
O que fomos de seiva
.......................de base
..................... de Atlas
o que fomos de vida
.......................e luz
chama negra em treva branca
.......................quem sabe só com isto:

que o que temos nós lutamos
para sobreviver
e também somos esta pátria
em nós ela está plantada
nela crispamos raízes
de enxerto mas sentimos
e mutuamente arraigamos
....quem sabe só com isto:
que ela é nossa também, sem favor,
e sem pedir respiramos seu ar
....a largos narizes livres
bebemos à vontade de suas fontes
... a grossas beiçadas fartas
tapamos-destapamos horizontes
....com a persiana graúda das pálpebras
escutamos seu baita coração
....com nosso ouvido musical
e com nossa mão gigante
batucamos no seu mapa
....quem sabe nem com isso
e então vamos rasgar
a máscara do treze
para arrancar a dívida real
com nossas próprias mãos.

 

(obra reunida, p. 249).

 

 

 

The walk talk man

Entrei no shopping pela porta da frente
Lá estava ele como sempre: fechado e bem fardado
Fora dali, lá na área, no baba do pagode outra pessoa
Agora era o homem do rádio transmissor – The Walk Talk Man
Sente mesmo um certo orgulho de si aquele irmão bem colocado
Se encaixa como limo no mármore entre samambaias
         e as cascatas
Eu vi quando ele passou um rádio lá tentando se ocultar
         nas dobras da parede
E ele se duplica fixo firme múltiplo presente e premente – sentinela
Em cada etapa de meu passeio pelo campo minado de inimigo
Eu prevejo um tiro de morteiro uma bala devidamente perdida
Mas passo ante as vitrines que me espelham de corpo inteiro
         de cabeça erguida
Embora eu invadindo aquele espaço mais pareça
         o cristão lançando às feras
O terrível contrassenso daquela bela paisagem romana
Algo que se faz bárbaro na ostentação daquele templo ariano
Em cada canto uma câmara oculta enquadrando classificando
          o meu corpo
Pesquisando espreitando esquadrinhando mirando destacando
          me pedindo um sorriso
Não entendia muito bem a causa que envolvia a minha pessoa
Afinal de contas já acreditei que todos eram irmãos
          neste país de miscigenados
Tudo sempre e tanto correria como manda o figurino
Eu realmente acreditava
O culpado maior de minha intranquilidade foi este mulatinho
         Isaías Caminha
A rebeldia de Lima Barreto botou fogo na minha consciência perdida
Eu também era uma vítima alheia aos atos e sentimentos
         sem causa explicada
E me sentia como um estrangeiro naquela que diziam a minha terra
As plumas os chapéus os ternos os sapatos dos que desfilam nesta casa de horrores
Parecem povoar de animais vorazes a grande floresta
         em que me encontro
Mas esta mata não é ponto de chegada
É passagem no trajeto de nossa permanência
Porque é nosso o mistério de caminhar descalços
sobre as brasas acesas da fogueira de Xangô
E para o coração de cada irmão sempre sério e bem fardado
The Walk Talk Man
Há uma flecha redentora de Oxóssi
          e Ossain queimando a erva da memória.

(Gramática da ira, p. 86-87)

Outra Nega Fulô

O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
– ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
a blusa e se pelou.
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
– Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
– Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
– Ah, foi você que matou!
– É sim, fui eu que matou –
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!

 

(Cadernos Negros 11, p. 56-57).

A falência dos heróis

Então, meu chapa
O que é que você vai fazer agora?
Agora que a tempestade devolveu portugal à europa?
Agora que pero vaz de caminha é epígrafe do massacre
         dos amerídios
Agora que se percebe à luz do dia a alma embranquecida de
         felipe camarão e henrique dias
Agora que tiradentes é joguete nas mãos de escravocratas atenuados
         por paris
Agora que dom joão fugiu de sua briga para criar a sua eterna
         dívida externa
Agora que os pedros são garras dom império que mantiveram a canga
Agora que caxias virou algoz de negros brasileiros e exterminador
         de paraguaios
Agora que demos as costas para a princesa de maio
Agora que descobrimos a cor renegada de machado
Agora que deodoro é precursor de fernando henrique e fernando
          collor
Agora que flagramos rui barbosa queimando a nossa história
Agora que getúlio vargas é uma veia exposta do nazismo
Agora que pelé não faz mais gol-contra com a sua bola branca
Agora que só lhe restou memória de ayrton senna de mônaco e
          a sombra itálica de rubinho Barrichello
No seu país do hipismo de remo de vela do tênis do vôlei
          do automobilismo
E agora?
Agora chegou a hora de procurar sua nova cara
Então, chefe,
Em quem é que você vai mandar agora?
Quem é que você vai açoitar agora?
Quem é que você vai enforcara agora?
Agora que chegou a hora de botarmos as mangas de fora
Olhar nos seus olhos e perguntar: quem é você agora?
Agora que se comemora os Caetés devoradores do bispo sardinha
Agora que Cuhambembe volta a liderar a resitência nativa
         dos tamoios
Agora que a África reunida é a capital do corpo e do imaginário
Agora que a Negritude fez renascer suas civilizações antigas
Agora que se inscreve Acotirene nas linhas da beleza e da resistência
Agora que Zumbi é o grande Capitão que não mataram
         na República dos Palmares
Agora que se mostra a insubmissão de João de Deus
Agora que se sabe da educação refinada e da arte de Ahuna
Agora que Luiz Gama é o poeta elegido e divulgado
Agora que Cruz Souza é o poeta repensado e reeditado
Agora que Lima Barreto é um escritor fora da sarjeta
         que lhe desejaram
Agora que a grande Mãe Senhora liberta do cativeiro mental
Agora que a Grande Rainha Ginga refaz a ancestralidade
Agora que se rememora a cada dia um Vinte de Novembro
Agora que na escola é Abdias, Mano Brown, Lélia Gonzales
          e Milton Santos
Agora que se visualiza o universalismo de Ali, Mandela,
          Fela Kuti e Fanon

Agora que Xangô veio acertar as contas!
Ele que é o mais belo e trança os cabelos
Ele que é o mais correto e não dá a outra face
Ele que castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores
Ele que é atrevido, violento e justiceiros
Ele que faz rolar a cabeça dos infratores
Ele que tem a pele preta
E agora?

(Gramática da ira, p. 123-125)