Prólogo

 

Quem de vocês já teve um filho arrancado dos braços, aos prantos, olhos de horror, e morto, executado por dezenas de tiros de revólveres e metralhadoras?

Eu tive.

Quem de vocês foi surpreendido na calma de um domingo depois do almoço, enquanto sua filha de 15 anos cantarolava num canto da sala do casebre, e seu filho, uma criança, ainda por completar 18 anos, comentava sobre a viagem que faria no dia seguinte, mas teve a viagem interrompida por dezenas de rajadas de metralhadoras?

Eu fui.

Quem de vocês, mãe, aos gritos, rangendo os dentes como uma cadela recém-parida, descabelada, protegendo a cria, enfrentou de mãos vazias mais de dez policiais brutamontes, fortemente armados, que com coturnos arrombaram seu portão de ferro, chutaram sua porta, invadi­ram sua casa e, depois de tudo, acertaram sua criança com dezenas de tiros de fuzis e metralhadoras?

Eu enfrentei.

Ninguém passou as dores que eu passei naquele dia, ninguém.

E por isso não quero mais lembrar de nada. É mexer na merda, e quanto mais se mexe mais fede. De nada adianta eu relembrar agora. Não vou ter meu filho de volta e nada vai acontecer. Nenhuma mãe merecia ver a cabeça da criança que saiu de seu ventre estourada daquele jeito; os pedaços de miolo escorrendo por um dos lados da parede.

Mas eu vi e não esqueço, meu senhor!

Eu não esqueço os gritos do meu filho nem das porradas que tomei daqueles policiais. Meu olho arroxeou na hora e ficou assim, veja: desse tamanho. Eu vi a minha filha de 15 anos – o nome dela é japinha, não é nome de batismo – sendo espancada por eles, porque ela queria defender o irmão franzino. E queria se abraçar a ele, que agora aterrorizado se jogou no cimento duro debaixo da cama; se escondendo de quê? Eles me esbofetearam, socaram Japinha, e meu filho, mesmo sendo metralhado ali, gritava para eles: "Minha mãe, não! Não façam “Minha mãe, não! Não façam nada com ela nem com minha irmã!”.

Eis aqui o sangue derramado pelo vão da sala. Se satisfaça, senhor jornalista.

Eis aqui a minha mágoa e minhas lágrimas. O que elas dizem a você?

Eis aqui a minha dor de mãe-órfã.

Eis aqui o meu silêncio.

Eu quero esquecer tudo. De nada vale a pena lembrar. Nada vai trazer meu filho de volta.

Era uma tarde de domingo no Iraque, comum a qualquer outra, não fosse o que se veria momentos depois. Kaká tinha chegado em casa bem cedo da manhã. Veio de onde, criança?! E ele respondeu me beijando na beira do fogão, porque eu aprontava o café, que tinha passado a noite com uma nega, e dizendo isso foi dormir até o meio-dia. Eu fico preocupada quando ele some, porque as coisas no Iraque não estão mole, não. Lugar de pobre é assim mesmo, lugar de pretos mesmo que não sendo. Faz o quê, quantos anos? Nem me lembro mais. Só sei que Kaká tinha 2 anos e Japinha, que teve esse nome por causa do olho puxado, porque ela é negra mesmo como todos nós, ela era bebê quando a gente veio aqui e ocupou esse pedaço de chão. Fizemos a marcação e construímos aos poucos a nossa casa. Foi uma guerra com a polícia da prefeitura, dizendo que defendia a propriedade privada, o terreno dos magnatas. Sei que tinha uma guerra lá pelos lados do Oriente, onde Jesus nasceu, e, como na televisão se falava muito que era a guerra do lraque, a gente colocou o nome da comunidade de Iraque, porque também aqui a luta foi braba. Numa confusão com a polícia que veio derrubar alguns barracos, num 7 de setembro, um tiro de policial assassinou dona Dasdores, uma anciã de 72 anos que batalhava um pedaço da terra pra duas de suas netas sem pai. É assim que acontece. Não tem Malvinas, que foi do tempo de uma guerra também, e por isso os ocupantes de lá do bairro das Malvinas botou o nome por causa da guerra? O bairro da Coreia é mais antigo. Aqui é Brasil, mas a nossa comunidade se chama Iraque. Nos últimos tempos, o bicho aqui tá pegando, com essa coisa de crack, drogas, assaltos, violência. Morre gente toda semana, todos meninos ainda. Fim de semana é um tiroteio só, salve-se quem puder! Morre mais gente que na guerra verdadeira lá do lraque, do outro lado do mundo.

Foi assim com Kaká, meu filho.

Os PMs caminharam em trote entre a entrada principal da favela e o meu casebre de número 341-E, de uma das inúmeras ruelas transversais aqui do bairro. Traziam armas levantadas pelos punhos e caras enfezadas. Estavam caçando um “marginal”, eles gritavam desde a entrada lá da frente da favela, e faziam bastante alarde disso enquanto seguiam ao endereço que queriam.

Era uns meio-dia e meio daquele domingo quando Kaká se levantou da cama. Cama é força de expressão pra designar quatro pedaços de tábuas pregadas entre si, com um lastro também de madeira acolchoado por pedaços de papelão e um fio de espuma sintética encardida pelo tempo. Kaká era apelido também, porque o nome de batismo do meu filho é Roberto Carlos dos Santos, porque eu sempre fui fã de Roberto Carlos. Eu sou uma manteiga derretida, não vou mentir pra ninguém: adoro música romântica. Pra mim, não tem outro cantor melhor que Roberto. As músicas dele fazem a gente mais gente, mais humana. Tenho várias. Não há quem não sinta um aperto aqui, ó, no peito. Eu queria era de ter dinheiro pra assistir um show dele ao vivo. Mesmo de longe. Roberto Carlos: aquilo sim é que é cantor! Eu sei cantar algumas dele, quer ver? Onde você estiver, não se esqueça de mim, Mesmo que exista um outro amor, que te faça feliz, Eu quero apenas estar no seu pensamento, Por um momento pensar que você pensa em mim. É linda! Leide Laura, me leve pra casa, Leide Laura, me conte uma história, Leide Laura, me faça dormir, Leide Laura... E essa, e essa: Eu quero ter um milhão de amigos, E bem mais forte poder cantar... É ou não é uma coisa? Debaixo dos caracóis, De seus cabelos, Uma história pra contar, De um reino tão bonito... Tem essa também, assim ó (desculpe, que eu não tenho voz): " De saudade eu chorei, E até pensei que ia morrer, Juro que eu não sabia, Que viver sem ti eu não poderia. Ai, ai, Roberto! Me faz esquecer coisas, me lembra é coisa! O senhor? O senhor também gosta? Bem se vê. E quem nâo?! Eu, uma apaixonada? Sai pra lá! Convivi com um homem, como se casada fosse. Deu, deu, acabou, acabou: deixe eu sozinha, viu? Com os meus filhos. Não preciso de ninguém, muito menos de um rueiro de marca maior. Me embuchou, mas eu quem quis. Gostava mais da rua do que de casa. Já eu gostava mais dele quando ele estava doente. Por quê? Porque a pessoa doente é mais sincera, mais leal, mais apegada à gente. Quando meu filho já estava na barriga, eu decidi: vai se chamar Roberto Carlos. Depois é que chamaram ele de Kaká, os colegas de rua. Aí pegou: Kaká pra lá, Kaká pra cá. Mas no documento é Roberto Carlos dos Santos, em homenagem ao meu ídolo. Ainda por completar 18 anos de idade, no final do ano. Magro, mas comia, porque eu nunca deixei faltar comida em casa, mesmo sendo pai e mãe sozinha. Era assim: tição, cabo-verde, negro de pele lisa e macia, sem uma mancha, tez afilada e cabelos lisos, de cabo-verde. Depois de se levantar, ele foi escovar os dentes, ainda tomou café com pão e depois saiu pra vida. Era domingo e o dia bonito. “Não vai comer não, menino?” – eu perguntei porque o feijão já estava quase pronto e eu não gosto de comer tarde, mesmo sendo domingo. No máximo, eu gosto de comer até as 2 da tarde, acompanhada de uma maltzebier. Ele ficou de voltar, mas eu e Japinha almoçamos, nós duas somente porque já era quase 3 e ele não apareceu na hora: estava por aí com as suas companhias – e é isso que me preocupava.

(Diasporá, p. 6-9)

 

Morte e vida virgulina

 (excerto)

III

 

– Brasil, você acha que Peter Tosh fez essa Coming in Hot pra sacanear o Coming From the Cold de Bob?

A onda agora era café da Costa Rica. Crime freelancer numa cidade dominada por um sindicato só. Era realmente coisa de louco, na mira de ladrão, na lista da polícia. Sair na rua era uma aventura. Disfarce, chapéu, óculos, mas como disfarçar o Angolano? Já tava quase famoso. Os meninos passam anos na função até ganhar destaque, ele não precisava fazer esforço. Quase dois metros, magro e pleno na elegância natural africana, somente alguns vincos fundos no rosto entregavam as durezas atravessadas na vida, mas nem uma pista sobre a idade. Qualquer roupa que usasse o transformava num Chicaqo’s Jazzman from the 30's, e isso não é o que se pode considerar como um bom disfarce. Só no centro conseguia passar batido no meio dos africanos das galerias. Aí o dinheiro que não se pode gastar. O Angolano, juntando pra voltar pra Luanda, na espera de refazer a vida na Reangola da Odebretch e da OAS. Esperanças... sonhos.

Já tinham parado em diversos cafés do Brasil, café da Colômbia, o melhor do mundo. Café do Equador. Agora era da Costa Rica. Bom, espesso, amargo e forte. Era o único luxo que o super-herói se permitia.

– Claro que sim, Tosh ainda tava mordido por que Bob tinha colocado o nome dele na frente da banda. Tinha casado com a namorada dele, tava fazendo turnê internacional...

– A Europa escolheu Bob porque era mestiço, meio inglês, Peter era preto, elogio à mestiçagem.

– Lógico que não, Bob era mais talentoso, era mais poético, mais popular, Tosh era mais limitado poeticamente falando.

– Você está misturando drogas no seu café, Brasileiro, você já ouviu música como Pick Myself Up? Já viu a letra de African?

– E você já viu músicas como Babylon Sistem, como Redemption Song?

– Aí você se engana, a maior parte das músicas gravadas por Bob depois da separação, já tinha sido gravadas pelos Wailers no estúdio One. Bob só fez amaciar pra os ouvidos europeus e americanos. O que Bob fez? Um disco de amor pra suas amantes brancas! Tenha paciência, Brasil.

– Todo mundo sabe que Bob era fichado na CIA, por apoiar o exército de libertação do Zimbábue. Ele era um revolucionário.

– Tosh era um homem saqrado, um verdadeiro Rasta. Ele foi assassinado porque cantava o que Marcus Garvey pregava, a união de todos os africanos.

- E você diz que eu que sou romântico, ele foi morto por dívida de droqa, todo mundo sabe disso.

[...]

(Morte e vida virgulina, p. 65-67).

Paulista

Paulista foi meu pai de rua em BH. Me ajudou, me acolheu e até me chamava de “fio”. Eu vim subindo pela Afonso Arinos de besteira, recém-chegado ainda, quando senti o cheiro da ganja forte e prensada do Paraguai que eles usam por lá. Encostei no cara, fumava ele e um pivete que eu já vira no sinal da Afonso Pena, pedindo dinheiro pra as madames nos carros. Foi só chegar: – São meus fios esses aí – ele me disse apontando o outro neguinho que se achegou na roda: – nós somos uma famía ... e parou sugando o cigarro de erva, olhando com o rosto inclinado, pralgum nada profundo (Eu ia me acostumar com isso, sempre que sua filosofia pedia alguma reflexão mais demorada): – é fio, nós somos uma famía, repetiu olhando ainda algum ponto atrás da minha cabeça: - Só falta uma mãe, não é? Mas isso eu arranjo essa semana, pode contar! Era seu jeito: o que tinha de ser, tinha de ser!

Desse jeito eu entrei pra família, nesse movimento . Meu destino era São Paulo, mas Belô é uma passagem que sempre emperra o cara uns dois meses até seguir na viagem. Sem pressão, eu tava dormindo num albergue lá na Lagoinha, em vista de uma passagem com a assistente social da prefeitura. Buscar trabalho, fazer dinheiro, comprar um barraco numa dessas favelas que a gente ouve os nomes nas letras de Rap. Paulista que me ensinou das ruas do Centro: – Olhe Fio, eu posso te ajudar, e tal, uma mão lava outra e tal. Eu tenho um trabalho aí, que eu faço e tal, uns barco de papelão com palito de fósforo. Cê é bem chegado na nossa famía, cê ajuda nóis que nóis ajuda ocê.

Paulista devia ter seus trinta anos, gordo não, forte. Preto como um africano, cabeça raspada sob um boné do Corinthians que não saía pra nada. Sempre de bermuda e tênis, camisa de futebol. Tinha o Gui, seu mais velho, de dez anos, que guardava carros na praça, e o Ivan, que ele só chamava por “neguinho”, e era o que pedia no sinal.

– Tem esse cachorro aí fio, que é da famía também, tá ligado, fica com nóis e não pega nada pra ele, que de noite no coió, é ele que avisa de movimento.

[...]

– Fio, uma garrafa de 51 pra nóis, e olhe fio, veja no jornal que time daqui que ganhou no domingo, pra saber de que cor nóis faz os barcos hoje, branco e preto, ou azul e branco. Eu ia e olhava os resultados dos jogos do Atlético e do Cruzeiro.

[...]

– É fio, ele dizia, eles pensam que nóis bebemos (ele tinha mesmo uns de repente de concordância verbal) pra ficar chapado, e não botam fé que nóis bebemos é pra ficar careta. Eles não sabem que na rua, se ficar de cara, o homem pira o cabeção, então nossa caninha é que segura a gente de cara!

(Salvador negro rancor, p. 29-31).

Ojuoyin

Ah, que tonteira é essa que faz o corpo todo querer apenas uma coisa e que essa coisa se torne tão parte do seu querer que passe mesmo a ser parte do seu corpo e sendo corpo, mas coisa em falta, não deixa nunca de ser intenso querer?

Que todo órgão do corpo que atua, que cada célula que por vida respira, parecem somente atuar e respirar por um motivo único, longe do qual tudo é necrose e apatia, tudo é sem motivo e cinza e ainda que muito respirasse e atuasse e fosse flores e céus azulados, alguma coisa assim ausente tornaria todo paraíso, desnecessária futilidade?

As ondas do mar se quebravam forte sobre o paredão de pedra. Em toda sua força, era lentamente que essas ondas se formavam no meio do mar, e tão suavemente se formavam e tão lentamente se avolumavam que surpreendia a força com a qual quebravam contra o paredão de pedra. Obainã observava, sentado acima do paredão, com os joelhos dobrados e os braços por cima dos joelhos, o rosto olhando por entre os braços, como se estivesse escondido, mas estava somente observando o espetáculo das ondas se partindo contra a pedra imóvel.

Percebia que toda a força com que a água viva se chocava contra a estrutura de pedra e toda sua violência, preservava uma lentidão tremenda, uma perfeição de movimentos tão sincrônica, que era mesmo um bote em câmera lenta, como o mais rápido golpe de um capoeirista angoleiro, preservava essa mesma lentidão terrível de segundos que nunca acabam e que ficam minuciosamente gravados na memória dos que têm o privilégio de assisti-los.

Toda essa dança exalava sentido de sagrado e era isso o que precisava naquele momento. Saber que as coisas são sagradas e que cada micromolécula do cosmos está inevitavelmente dedicada pra que tudo aquilo que tem força prospere e que toda vontade obstinada alcance sua meta e conduza o universo em seu caminho de transformações infinitas.

Nada mais natural que um rapaz chamado Obainã se sentisse maternalmente acolhido e protegido diante da imensidão do mar.

[...]

(Morte e vida virgulina, p. 83-84).

Por acaso

Por acaso acordou com a porra da frenologia na cabeça. A lombra de Lombroso que Nina Rodrigues abraçou. Nem que tivesse lido recentemente alguma coisa sobre isso, a frenologia se grudou em seu cérebro como assombração matinal, foi com ele o dia todo e noite já se ia e a coisa ainda martelando.

Sábado de noite, estava indo pra casa da tia mais velha, que chamou a parentada toda pra bater laje no domingo, cortar cana dura com os primos e comer aquela feijoada de elite que a negona preparava. Conseguiu pegar o último São Marcos antes da madrugada, nem cheio nem vazio, um lugarzinho só, como se lhe esperando. Sentou inocente, na moral, mas percebeu de imediato que a mulher ao lado protegeu a bolsa no colo, instintivamente, com medo.

Puta que o pariu, isso era das coisas que mais odiava, ser tirado de ladrão, aguçou os sentidos. Também, a mulher a maior alienígena, loira como a mulher da novela, seus trinta anos, lá dela, sapato de salto, vestido preto parecendo roupa de grife, de desfile mesmo, parecia ficção, se alguma coisa ainda fosse ficção hoje em dia. Não ousou olhar diretamente, e nem ela, os dois se investigavam com o canto dos olhos, pretensa vítima e possível predador, medindo, inquirindo.

Tentou disfarçar a tensão, olhar pro lado, o estômago já embrulhado, mas sua presença era imperativa, e forçava o olhar pro seu lado.

E se Lombroso estivesse certo, e sua mente guardasse um animal assassino perdido lá em alguma selva africana de um filme de Tarzan? E se Nina Rodrigues estivesse certo, e sua mente guardasse um sociopata latente, pronto a cometer um crime, seu crânio de ladrão lhe empurrando pra o desvio, o mal?

Pensou nisso, o ônibus já vinha cá pela Brasilgás, a oitenta por hora, que o motorista, também homem delinquente, perde muito a noção a essa hora da noite. Em verdade, a mulher com esse corpinho de modelo, não aguentava um tranco, veja só: bolsinha de carregar no braço, um puxão mais forte e levava braço com tudo. Como tremia, a moça, dava quase pra sentir o cheiro do seu medo, no nervosismo com que se movia na cadeira, na respiração parada de bicho acuado, as mãos apertadas na bolsa preta de couro. Podia lhe dominar com uma mão só, sem muita violência, e na certa esse medo era por alguma coisa que tinha ali dentro. Talvez o salário do mês, ou o dinheiro de algum empréstimo, o celular novo, uma jóia, que ela tinha mesmo jeito de usar. Era puxar e correr, daqui pro final de linha de São Marcos, polícia não tem pra ver nada, era só fazer e correr, conhecia tudo por ali, nascido e criado no Pau da Lima, se descesse em uma viela, só lhe achavam se quisesse.

Mas, e se fosse também um desviante sexual, um perverso, que somente sentisse prazer submetendo sua vítima à dor? Nada que não estivesse na lombra de Lombroso, em verdade, era tudo previsível, no tamanho e formato de seu crânio. Tudo deserto essa hora, era puxar a loirinha pra um canto qualquer e fazer do jeito que quisesse. Um murro na nuca, se necessário calar sua boca. Pressentia que esse medinho de puta tinha muito era de excitação reprimida, de vontade de dar prum macho mais forte, másculo, imoral, do pau grande e grosso. Se esse era o seu estereótipo, por que não imaginá-la lasciva, gritando não, enquanto queria mais, mexendo os quadris e mordendo os lábios enquanto chamava a polícia pra destruir o corpo daquele amante violento?

Queria dar um fim naquele turbilhão de bobagens, Lombroso que se fodesse mais Nina Rodrigues e o diabo no inferno. Aquilo parecia era coisa de obsessor, mas a tia velha sabia uns banhos bons pra afastar espírito perdido, e já estava chegando.

Por acaso, no entanto, tremeu quando a mulher pediu licença da poltrona, pra saltar no mesmo ponto e tomou sua frente no corredor do ônibus. Desceu na rua vazia, nem cachorro se aventurava aquele horário. A branca ia na frente, bolsa balançando, com seu rebolado de branca nos passos de modelo desfilando. Era mesmo uma coisa bonita de se ver, contra luz de mercúrio da Paracaíma. Parecia uma visagem, a diaba, uma personagem de novela caída do nada em meio ao gueto, e aliás, que zorra é que essa figura ia fazer por ali, àquela hora? Ser assaltada, é lógico, será que não sabia do risco que corria? Qualquer menino podia roubar sua bolsa, lhe agredir, lhe violentar e desaparecer como saci.

Quando ela lhe percebeu vindo logo atrás, voltou a segurar a bolsa no colo, nervosa, e apressou os passos em direção à baixada. A tensão então retornou. Se ela continuasse se fazendo de presa fácil, ele ia pirar de vez, sabia disso, e fazer alguma merda: era um passo só, fazer e correr! Era o que ela esperava, era o que ela previa, era o que o cenário pedia, era o que a hora alta ansiava. Por acaso, no entanto, tremeu ao divisar, na virada da curva uma viatura da Rotamo, subindo a rua a vinte por hora, escopetas pra fora das janelas, dentes afiados, e se sentiu como uma hiena, diante de um grupo de leões. A veadinha fazia sinal, desesperada, e apressava ainda mais o passo. O carro fúnebre parou e ele gelou. Sabia bem das cenas dos próximos capítulos: vigiar e punir era o lema. Entregou a Deus e continuou andando, com medo, é verdade, mas a culpa mesmo era de Lombroso, que acordou com ele e passou o dia todo lhe atazanando o juízo. Não tinha nada a ver com isso. Se aproximava dos homens. Ela já ia na direção deles. Um dos guardas já vinha em sua direção, de doze na mão e gritando pra ele parar, colocar a mão na cabeça e se ajoelhar. Execução era assim, sabia disso muito bem. Entregou de novo a Deus, e dessa vez a um Deus em particular, seu pai de cabeça, rezou, pediu, e esperou.

O homem mau se aproximava, seria ele também uma vítima de Lombroso? O que esperar dele, ao mesmo tempo delinquente e agente da lei e da ordem, um claro contra senso, por conta de seu crânio simiesco e sua pele preta, cheio da lombra de Lornbroso na cabeça. Juiz e executor?

Ouviu o estalar da escopeta, estava pronta. O som dos coturnos no asfalto se aproximavam, dois, três pares de coturno soando na madrugada que se silenciara mais profundamente.

Ouviu a voz da tia velha cortar a rua: Rominho, Rominho meu filho, pelo amor de Deus, levante daí menino, que você não é vagabundo! Levante daí meu filho! - a voz sempre firme e autoritária da coroa, não escondia nenhuma tensão. Ouviu o policial então retrucar: A senhora conhece esse homem, Dona Miralva? E a velha respondeu: é meu sobrinho, pelo amor de Deus! É o mais novo de Teresa, sargento, pelo amor de Deus, me entregue meu menino! E o guarda respondeu de novo: Calma Dona Miralva, a gente ia só averiguar uma suspeita, tenha calma pra senhora não se sentir mal de repente.

Mandaram levantar, meio atordoado sentiu o abraço violento da tia lhe arrebatar, menino, menino, eu não falei pra você vir cedo menino? O buraco aqui tá quente menino sem juízo, isso é hora? Seus primos já tão tudo dormindo!!

E você minha senhora, o que está fazendo por aqui essa hora, a senhora mora por aqui, ou tá procurando alguém? É mulher de traficante, por acaso? - Ouviu o policial se dirigir à loira, que sumira completamente do foco de sua atenção: Entre aí na viatura, que a gente vai te levar no seu destino, depois de averiguar de onde vem e pra onde vai...

Foi andando com a tia, sem nem olhar pra trás. Pobre moça, pensou, entregue sozinha a cinco lormbrosianos lombrados, em plena madrugada. Dormir cedo, que bater laje é trabalho duro. O que seria dela, coitada, ou estaria realmente imaginado coisas?

(Salvador negro rancor, p. 50-55).