Travessias

Minha mãe
sempre teve medo
do mar.
Intrigada me pergunto:
o que a ameaça?
A imensidão poderosa
das águas?
Ou a ancestral memória
da longa travessia?

                   (Nós, p. 29)

 

Nós

Despida de antigos conselhos
abro meu corpo
e incorporo
os santos que pedem abrigo.
Me desfaço de laços
e me cubro apenas
com a delicadeza de panos atados
por precisos nós.

                                  (Nós, p. 33)

 

Corpo

Meu corpo é um campo de solo revolto
sob pés guiados por tambores.
Meu corpo é um campo aberto,
arena de muitas disputas.

Meu corpo é um campo sagrado
habitado por ritmos
de vida e de morte.

Meu corpo é um campo marcado
pelo movimento das águas
pela força dos ventos.

Meu corpo é um campo de silenciosas batalhas
atravessado por rios sinuosos
alimentado por incontidas raízes.

Meu corpo é um campo ocupado
por séculos de rebeldia
por cantos de liberdade.

                                                   (Nós, p. 34)

 

Por um fio

Nasci de cabeça feita.
No começo, não sabia.
Entre os hábeis dedos maternos
via os meus crespos fios
domados por um laço,
que me prendia também por dentro.
Cresci sob um mito,
medo de me ver refletida
no espelho do que sempre fui.
Mas ainda menina, meu desejo
já se enroscava, virava trança
e me protegia.

Quando me vi desnuda
olhei demoradamente:
os pés plantados no chão
as pernas, troncos fortes
o ventre escuro
pleno de inquietações.
Mãos e braços regidos
por nossos ancestrais
seios fartos
da seiva que alimenta o mundo.
Vi em mim o riso de meu pai
o olhar de minha mãe.
De repente, me encontrei.

Soltos, meus cabelos
diziam de mim
mais do que qualquer palavra,
raízes que me conectam
com uma gente que veio antes de mim
reinventada na menina que pari.

                                        (Nós, p. 44)

 

Meus quilombos

Em volta tudo é montanha
Escuros abraços que amparam
protegem, aquecem
mas não prendem.
Liberam
libertam.
Dentro tudo pulsa
tambores inundam o peito,
a pele
desaguam nos pés.

Em volta e de longe
tudo é calmaria
silêncio
água mansa.
Dentro e no fundo
tudo é movimento
intensidades
correntezas.

Em volta tudo é murmúrio,
palavras que brotam de gargantas
antes interditadas.
Dentro tudo é vozerio
brados de resistência
coro de insubmissões
que rompem cercos
círculos de ocultamento.

Em volta tudo é gesto que se desenha no ar.
Dentro tudo é punho que se ergue
braços que sustentam
mãos que garimpam, lapidam
transformam
reinventam.

                                          (Nós, p. 35-36)


LIVROS E LIVROS

Ficção

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Recentemente lançado pela Companhia das Letras, Solitária, de Eliana Alves Cruz, constitui-se como uma narrativa que tira o leitor do lugar. Espacialmente, pois nos transporta ao edifício Golden Plate, mais especificamente ao apartamento da cobertura que ocupa todo um andar, onde vive a família de D. Lúcia: “aquela residência parecia mesmo: um cenário” (p. 16). Simbolicamente, porque nos possibilita compreender o espaço e ações narrativas que nele ocorrem, por meio de uma perspectiva inovadora: via personificaç...

Poesia

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Infantojuvenil

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Que mundos são possíveis para nós, pessoas negras? Quais tecnologias – científicas, artísticas, espirituais – permitirão que continuemos vivos e vivas? São perguntas assim que movem a escrita futurista elaborada por e para pessoas negras. A narrativa que habita este volume nasce desse estímulo de fabulação que é, ao mesmo tempo ato de resistência. A escrita de autoria negra é uma ponte entre mundos da memória e do futuro, a ficção recria um passado não-registrado e proporciona novos horizontes que talvez ainda não possam ser vistos, mas que po...

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Júlio Ludemir (Org.) - Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileirasCarolina, Carolinas, e um futuro que se abre Fernanda Rodrigues de Miranda* Carolina Maria de Jesus é um signo. Uma mulher preta insubmissa. Altaneira. Um caminho luminoso que se abriu na mata fechada. Uma clareira. Uma revolução. Sabe dela quem sabe das bifurcações de cada gesto, quem sabe dos desafios de si, quem colhe vento de mudança porque antes lutou pelas mudas de ousadia. Carolina é uma estrada. Sua grande marca na literatura é aquela que sinaliza a nossa cor, a nossa cara, a nossa resistência, a nossa herança. De tudo que ela nos deixou, ficou principalmente o sim, eu escrevo.  “– ...

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