“Visíveis e Invisíveis Grades”: Vozes de Mulheres na Escrita Afro- descendente Contemporânea*

Heloisa Toller Gomes
UERJ

“...pedaços de tempo que agora destampo.”
Marilene Felinto, “O Espelho da Falha”, Postcard, 1991.

Este trabalho diz respeito à expressão discursiva de mulheres afro- descendentes nas Américas. Embora a temática transcenda limites nacionais e cronológicos, assim como fronteiras entre manifestações culturais ditas “cultas” e “populares” e entre o discurso escrito e expressões da cultura oral, circunscrevemos aqui a discussão à produção escrita do Brasil e dos Estados Unidos durante o século XX. Não nos referimos, nesse sentido, a qualquer escrita feminina em geral, mas sim àqueles textos marcados por um cunho fortemente social e de gênero. Sua expressão está indissoluvelmente associada à condição de mulher negra das respectivas autoras, que veem-se inseridas e engajadas na própria contemporaneidade, com a consciência indelével de compartilharem de um passado comum – passado este atravessado pela escravidão, pela diáspora e pelas marcas da discriminação racial e sexual[1].

Espraiando-se nas mais diversas regiões das Américas, dos séculos escravistas aos dias de hoje, e manifestando-se principalmente na literatura poética, auto biográfica e ficcional, esta escrita de mulheres exibe particularidades que a diferenciam e identificam dentro da própria literatura negra. Ela tem-se acrescido, nos últimos cem anos, de valiosas contribuições no domínio das ciências sociais e da crítica literária, vindo a ser um objeto privilegiado para investigações de manifestações culturais como, por exemplo, a literatura comparada e os modernos estudos culturais. Grande massa de coisas ditas e escritas, tal produção cultural apresenta, pois, traços comuns e reconhecíveis. Ela constitui uma “formação discursiva”, se quisermos utilizar a terminologia de Michel Foucault que, em A Arqueologia do Saber, assim caracterizou agrupamentos de textos que carregam em si pressupostos culturais semelhantes, discursivamente dados, marcados por conjunturas históricas específicas[2].

A escrita (da mulher) negra é construtora de pontes. Entre o passado e o presente, pois tem traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural o saber e a experiência de mulheres através das gerações. Do mesmo modo, pontes entre experiências de autoras de diferentes idiomas e nacionalidades que possuem a paixão do narrar, a crença na compreensão através da palavra

• em suma, na capacidade que tem a palavra de intervir. Assim, a palavra é por elas utilizada como ferramenta estética e de fruição, de auto conhecimento e de alavanca do mundo. Quando literatura propriamente dita, e dada a densidade metafórica da construção ficcional e poética, a escrita de que falamos produz mundos alternativos solidamente fincados na realidade social.

“E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas, vidas que pouco a pouco descubro reais”, sintetizam os versos de Conceição Evaristo, no poema “Meu Rosário”[3].

Essa escrita de mulheres constrói pontes, também, entre domínios tradicionalmente apartados, como a cultura erudita e a popular – em grande parte porque a textualidade africana tem como referência matricial a oralidade, cujo manancial alimenta e marca a sua descendência. A transcrição das matrizes discursivas negras na literatura afro-descendente constitui uma problemática crescentemente estudada nos Estados Unidos por teóricos como Henry Louis Gates e Houston Baker, manifestando-se fortemente na expressão ficcional, poética e dramática de autoras negras do século XX como Zora Neale Hurston, Shirley Graham Du Bois, Margaret Walker, Gwendolyn Brooks, Nikki Giovanni, Sonia Sanchez, Alice Walker, Toni Morrison, Gayl Jones[4].

Em “A Oralitura da Memória: Narrativas Orais Fundadoras”, Leda Maria Martins chama a atenção para a vitalidade da tradição ágrafa africana na produção literária afro-descendente nas América, a impregnar uma diversificada territorialidade de linguagem e expressão. Exemplificando com as narrativas dos Reinados Negros, ou Congadas, no Brasil, a teórica mineira observa aquilo que pode ser igualmente atribuído a todo o continente americano: Esse diálogo com os repertórios textuais de origem banto e nagô amplia nosso universo referencial e cognitivo, nos oferece possibilidades diversas de fruição estética, alçando, ainda, a presença ostensiva desses repertórios e rizomas textuais como fundantes da diversificada textualidade oral brasileira.

Constatando a força de tal oralidade, Leda Martins propõe o conceito de “oralitura”:

Todo esse repertório e saberes vêm, há séculos, sendo transcriados pela memória oral. A esses atos e enunciação denominei oralitura, matizando nesse termo a singular inscrição ágrafa do registro oral que, como littera, letra, escreve o sujeito no território narratário e enunciativo das Américas; imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, rasura da linguagem, alteração significante, fundadora da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e de todas as suas representações simbólicas.[5]

Traço constitutivo na escrita das mulheres afro-descendente, a oralidade será o primeiro aspecto a desenvolver com a ajuda, de início, da poesia de Carlos Drummond de Andrade. O poema “Infância” de Drummond representa um olhar de fora sobre a nossa questão, pois que ele, o poeta/narrador, ali se apresenta como “menino antigo”, vinculado à classe senhorial. Sem pretender efetuar uma leitura abrangente do texto, colho apenas um dos fios de sua trama poética nos três versos que se seguem e que se situam, grosso modo, na seção central do poema:

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu chamava para o café.[6]

A voz discretamente convocada, como que vinda das sombras, traz ao “meio- dia branco de luz” uma certa mulher negra, associada a um passado ao qual não remetem os outros personagens da cena textual – o menino que lê, a mãe que cose, o pai que campeia no mato, a criança pequena que dorme no berço.

Ao assinalar o destacamento, o afastamento radical entre casa-grande e senzala – nos “longes da senzala” - o poema restabelece os parâmetros escravistas da escravidão e os perpetua, malgrado toda a placidez aparente do quadro. Foi lá, naqueles “longes da senzala”, que a “preta velha” (diz a letra do texto) aprendeu a ninar, e “nunca se esqueceu”. Nunca se esqueceu, de ninar? Ou da própria senzala? Cabe uma resposta que inclua as duas hipóteses. Não se esquecendo de ninar, ela mantém a toada do ninar na voz.

Não se esquecendo da senzala, sua voz reinstaura a memória da escravidão no cotidiano pós-escravista.

Uma leitura apressada pode identificar, aqui, a convencional homenagem à figura da “mãe preta”. Outra leitura mais cuidadosa percebe a alusão à mulher negra como condutora da memória através da voz, como senhora da oralidade e da lembrança. (Seria interessante prosseguir, associando e contrapondo, no poema, o personagem “Robinson Crusoé”, do célebre romance de Daniel Defoe – signo da narração escrita e, portanto, da linguagem culta, europeia – à figura da “preta velha” no poema de Drummond – signo da oralidade e, portanto, da vertente cultural de cunho popular: afro-brasileira. Mas isto transcenderia os objetivos deste trabalho.)

Em “Infância”, entretanto, a voz da “preta velha” apenas fala pelo outro, ou seja, faz uso de sua palavra em função do outro: “chamava para o café”. A narração, repetimos, dá-se em primeira pessoa, a partir do fio da memória daquela criança, habitante da casa grande. O poema não confere à “preta velha” uma voz própria. Posto isso, mudaremos agora, e por necessidade, o rumo da discussão, pois é basicamente como sujeito do próprio discurso que a mulher negra e sua produção cultural serão aqui abordadas. A distinção é de importância capital: ao recusar ser (apenas) falada pelo outro, ao recusar a fala pelo outro e não por si própria (e seu correlato, ou seja, o conhecimento de si mesma a partir da visão de um outro), a mulher negra dona de uma voz, autora de uma escrita, desmentirá a impostura da afasia a ela atribuída por toda uma tradição de base escravista[7].

A evocação drummondiana é, contudo, de extrema utilidade neste espaço, porque põe em foco a força da oralidade associada à memória, vinculando-a à voz da mulher negra. Primeiro traço a enfatizar, a oralidade, traço constitutivo da textualidade africana e afro-descendente, estará presente como construção retórica, como técnica estilística e como motivação temática, propulsora da memória sempre reagenciada na escrita de mulheres negras.

Cabe agora indagar: dada a dimensão colossal do passado de diáspora, escravidão e discriminação com que a autora negra se depara, de que forma ela, agente de sua fala/escrita, rememora, avalia e elabora esse passado sem que o passado impere em sua praxis cultural? Em outras palavras: como se dá, em termos de realização intelectual e estética, a “escavação” de que fala Toni Morrison ao explicar a gênese de seu romance Beloved?[8] A questão se esclarece na verificação de que, através de um tratamento mais antropológico do que arqueológico do passado, quer na literatura, quer nas ciências sociais, essa escrita enfoca primordialmente o ser humano – conquanto configurado, ou desfigurado, por aquele passado que é parte de sua herança. Em seus momentos mais densos, a escrita de mulheres afro- descendentes confere um caráter dinâmico ao passado, acionando-o de tal modo que este incessantemente problematiza o presente e interroga o futuro.

A dramatização desse enlace de temporalidades realiza-se no poema de Conceição Evaristo que se intitula, pertinentemente, “Vozes-Mulheres”:

A voz de minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio.

[...]

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

[...]

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

[...]

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.[9]

Na escrita das mulheres negras – “com rimas de sangue e fome”, diz o poema

• inscreve-se a marginalização sócio econômica, a privação de quase tudo.

São “visíveis e invisíveis grades”, para lembrarmos a metáfora de Conceição Evaristo que intitula este trabalho.

Por mais individualizado e introspectivo que possa ser este grande texto múltiplo, polifônico, vocalizado e escrito por tantas mulheres, ele não é idiossincrático, não privilegia o culto dos temperamentos ou das sensibilidades exacerbadas. Seu cimento é a história. Assim, quer através da poesia, da ficção ou de outras modalidades discursivas, ele narra as suas versões da história, denunciando os mecanismos de exclusão no curso dos acontecimentos que, secularmente, têm regido e organizado a história das nações.

Antecipando um diálogo com “Vozes-Mulheres”, e trabalhando um motivo sempre recorrente na escritura africana e afro-descendente – o encadeamento do povo negro através das gerações de mulheres[10] – o romance de Zora Hurston, Their Eyes Were Watching God, (recentemente traduzido no Brasil com o título Seus Olhos Viam Deus) veicula a ótica daquelas narrativas que se encadeiam, geração a geração, na tessitura da trama ficcional. Ali, as perspectivas existenciais e expressivas são exibidas em seus extremos contrastes – desde a anciã, narrando, em retrospecto, a experiência de cativeiro e de libertação, a Janie, sua neta, cujo trajeto de vida vai da submissão à autonomia sexual e pessoal, tornando-se ela dona de si e autora assumida de sua palavra. Uma passagem do romance de Hurston é emblemática, na medida em que a narração ficcional, enganosamente simples, desnuda a forma como a comunidade negra foi usada por forças maiores no processo histórico (no caso, dos Estados Unidos) e denuncia as construções hegemônicas da história e do saber. A avó (obviamente, uma figura ancestral) relata o que representou para ela, e para os seus, a rendição do Sul escravista, ao final da guerra civil norte-americana:

Naquele dia, o grande sino tocou em Atlanta e todos os homens de uniforme cinzento tiveram que [...] enterrar suas espadas no chão pra mostrar que nunca mais lutariam em defesa da escravidão. Então, a gente soube que estava livre[11].

Através de uma plasticidade cinemática em seu dinamismo, a narração introduz o olhar, a reflexão, a palavra daquela que representa e reapresenta os verdadeiros protagonistas do drama, metamorfoseados contudo em coadjuvantes, de preferência mudos, da própria história e da história do país.

Preenchendo lacunas e silêncios, a voz da mulher escrava invade o território da esfera pública, exorciza tabus e ausências, quebrando as grades, visíveis e invisíveis, do interdito.

Este episódio no livro de Zora Neale Hurston parece dialogar com o poema brasileiro “Fato” de Esmeralda Ribeiro o qual, décadas mais tarde, avaliaria a passagem da escravidão à liberdade, desta vez em nosso país. O texto sintetiza, à moda de um haicai ou de um poema concretista:

Aboliram Escravidão 

A

não condição [12]

No tratamento da situação das mulheres, em suas relações dentro e fora da comunidade negra, a escrita de autoras afro-descendentes torna-se insistentemente reivindicatória. Em Mito e Espiritualidade: Mulheres Negras, Helena Theodoro corrobora, nas ciências sociais, o que ensinam a ficção e a poesia:

[O] sexismo, a discriminação sexual, o racismo e a discriminação racial [...] tornam as mulheres negras o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira. Mais de 80% das trabalhadoras negras são de baixa renda, vivendo, principalmente, em favelas e bairros da periferia, sendo constantemente discriminadas por serem mulheres, negras e pobres. [13]

Em variados domínios e formas de expressão sempre intercomunicantes, verifica-se, nessa formação discursiva, uma complexa conjugação entre a preocupação social, a consciência de ser mulher e a expressão estética. Abolindo fronteiras e dualismos artificiais (culto versus popular, nacional versus estrangeiro, assim como a separação acadêmica entre gêneros literários) ela abarca múltiplas percepções da realidade, tecendo o real, o ficcional e o imaginário. Tudo isto é assim elaborado por Miriam Alves:

Em geral a tendência da escritora negra é se engajar na luta do homem, chamada de geral. A especificidade de ser mulher escritora que aflora nos trabalhos passa então desapercebida. (...) A arte é liberdade, libertação. A minha arte é engajada comigo. Eu sou o quê? Eu sou negra, mulher, mãe solteira, empresária, filha, funcionária, militante. (...) Se eu não consigo falar num conto, eu vou falar num poema. Se eu não consigo no poema, eu escrevo uma novela. Se eu não consigo numa novela, eu tento um romance. Se eu não conseguir em nada disso, quem sabe uma história em quadrinhos resolva? São os meus instrumentos. A literatura é o meu instrumento. Se eu conseguir me comunicar enchendo o papel de vírgula, e o leitor entender que eu estou falando do lugar onde o Brasil se instala, da miserabilidade em que a população negra se encontra, se eu conseguir falar com vírgulas, eu vou encher o papel de vírgula.[14]

Atravessada por um forte sentido de urgência (”falando do lugar onde o Brasil se instala”), a escrita assim produzida faz uso recorrentemente de uma certa técnica de composição que Leda Maria Martins, em Arabescos do Corpo Feminino, caracteriza como “retórica de retalhos”:

[Nessa escrita feminina] os objetos, situações, figuras e temas evocados são elaborados de restos e resíduos do cotidiano, alinhavados numa partitura que prima pela justaposição de contrastes, cores, desenhos e traçados aparentemente destoantes e desalinhados, que se conformam numa uniformidade assimétrica, como um tecido que se fabricasse por um ritual corriqueiro do uso do diverso. A artesania da escrita é o fio que transforma esses retalhos e resíduos do cotidiano em novos engenhos de linguagem que, como arabescos, revestem o corpo da negrura e o corpus de nossa literatura.”[15]

É interessante comparar a teorização de Leda Martins e a estética de “restos e reciclagem” proposta por Walter Moser. O crítico suíço canadense associa o aproveitamento e a reutilização do impuro, dos detritos, à cena cultural modernista e, especialmente, à produção cultural pós-moderna, em oposição à valorização acadêmica do purismo, da inteireza estética[16]. Mas há divergências a assinalar: a “retórica de retalhos” descrita por Leda Martins aponta para os “retalhos e resíduos” especificamente na vivência do cotidiano, o locus onde se trabalha a “artesania da escrita”, onde se forjam “o corpo da negrura e o corpus d[esta] literatura” feminina – onde se fundem ação e palavra. Cotidiano este, podemos acrescentar, que é assim metaforizado por uma personagem de A Gente Combinamos de Não Morrer, conto inédito de Conceição Evaristo: “Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro”.

[17] A experiência obscura, trivial, do cotidiano, intrínseca à literatura de mulheres afro-descendentes, é por outro lado circunstancial e não estrutural na praxis e nas teorias do modernismo e do pós-modernismo. O certo é que, valorizando o “ritual corriqueiro do uso do diverso” (ritual que necessariamente inclui a “reciclagem de restos” assinalada por Walter Moser em sua discussão do pós-modernismo), a literatura de mulheres negras manteve-se pari-passu, ou mesmo antecipou-se a outras modalidades discursivas e a propostas estéticas da atualidade.

A vivência/lavor/faina do cotidiano transmutada na palavra enlaça-se às características já apontadas: a marca e textura da oralidade, a enlaçar gerações de mulheres e a narrar toda uma história onde o individual espraia-se no comunal; a preocupação sócio histórica, manifesta em uma textualidade que, por opção declarada ou implícita, concebe muito dramaticamente o fluir temporal; a reflexão desmistificadora, através e além das grades da privação diária, em contraponto a visões hegemônicas da vida e da história; e a decorrente rejeição, em termos de realização estética, de purismos de quaisquer tipos - “Mulher cuidando da fala, misturando palavras, pronúncias suburbanas aos mil modos de sinônimos rolantes no tagarelar social requintado”, dizem os versos de Geni Guimarães, em “A Cor da Ternura”[18].

A abordagem de uma gama de questões assim imensa é inseparável da identificação das diversas formas de racismo e sexismo. É também inseparável da desconstrução de estereótipos que servem como suporte a variadas formas de controle, quer sociais, quer sexuais, quer associadas a técnicas narrativas que correspondem a concepções estéticas e ideológicas etnocêntricas, com o fim de confirmar ou de configurar versões hegemônicas da história, da vida e da sociedade. Em seu livro sobre escritoras negras nos Estados Unidos, Stelamaris Coser sintetiza e complementa:

Como sucede com frequência na moderna etnografia, [as autoras negras em pauta] tecem os fatos a partir da memória das pessoas, através das histórias contadas e recontadas em seus lares, dos ritos de canção e de dança, dos sonhos e sortilégios. Como sucede com frequência na história, elas descrevem a exploração racial e sexual, a privação econômica e a segregação racial nas lutas da vida moderna urbana, assim como durante os tempos coloniais. Embora seus textos sejam criativos, nutrindo-se do imaginário, eles nascem de experiências individuais e coletivas, acionando-se a materiais que, há muito tempo, têm interessado a antropólogos e a historiadores de escravidão comparativa nas Américas.[19]

A escrita afro-descendente de mulheres advém de culturas estilhaçadas pela diáspora, pelo colonialismo e pela discriminação sócio econômica nas sociedades coloniais e pós-coloniais. Mostra-se, assim, cortada e recortada na violência das fragmentações e ruturas. Convivendo com a realidade do racismo e do preconceito, ela tem sido sujeita à marginalização, ao desconhecimento e à desvalorização intelectual, por vezes dentro da própria comunidade negra.

Não obstante, carrega em si a positividade de um projeto cultural. Sua praxis equilibra-se, pois, entre a afirmação e a negação, entre a denúncia e a celebração, entre a vida e a morte; e lida, inevitavelmente, com a questão da identidade, último ponto a ser aqui examinado.

Para Carole Boyce Davies, esta escrita trata de uma subjetividade sempre em mutação, sempre sujeita a negociações internas (harmoniosas ou conflitadas, obviamente) e externas (em relação a outros discursos), que não pode ser entendida a partir de critérios estáticos de gênero e de nacionalidade, ou circunscrita a classificações limitadoras, que a inserem em nichos como o dos “discursos de minorias”. A identidade feminina discursivamente dada transita entre domínios diversos e deve ser lida como uma série de atos de transgressão, não como uma categoria de escrita fixa do ponto de vista geográfico, ou étnico, ou nacional. Tal literatura-enquanto-existência (”writing/existence”, escreve Davies) define a sua identidade à medida que reconecta, relembra (ou remembra, “re-members”: o hífen é mantido no original) e reúne mulheres negras deslocadas pelo espaço e pelo tempo.

Criando conceitos como “subjetividade migratória” e “subjetividade diaspórica”, a teórica afro-americana vê a literatura daí resultante como um diálogo de movimento e de comunidade, em perpétua busca de conexões que de fato signifiquem. Porque “fomos e somos produtos de separações, deslocamentos e desmembramentos”, ela prossegue, “nós, os afro-descendentes nas Américas, historicamente temos buscado [tal sentido de] reconexão”[20].

Em última análise, foi a busca de conexões significativas que norteou também este trabalho. Ao se observar, através de mostras de textos produzidos no Brasil e nos Estados Unidos e circunscritos a uma certa época, como se alavanca a formação discursiva constelada pela textualidade feminina afro- descendente, constata-se que subsídios históricos e culturais comuns geram consideráveis recorrências e coincidências – no estrito sentido etimológico desses termos – vinculando diferentes manifestações através do espaço e do tempo e transcendendo individualidades autorais. A ressaltar, neste sentido, a insistência na reflexão sobre a escravidão e sobre a trajetória de cidadania do negro após a escravidão, com seus avanços e frustrações. Dentro deste amplo espectro, quer através do discurso crítico e teórico em diversos campos do saber, quer na dramatização do discurso ficcional, poético e teatral, destaca-se a problemática da herança, existência cotidiana e possibilidades futuras da mulher no emaranhado de suas inter-relações, dentro e fora da comunidade negra. Essa mulher de hoje enfrenta antigos e novos entraves em relação a si própria ao passo que, por outro lado, defronta-se com inéditas perspectivas de vida e de expressão. Em suma, ela depara-se com todo um elenco de papéis sociais, sexuais e intelectuais que a sua escrita assume, recusa, questiona, propõe, reivindica.

Nesta reflexão, deixei-me em grande parte conduzir pelas vozes das autoras afro-brasileiras e afro-americanas cuja produção é um microcosmo da formação discursiva de que tratamos. Essas autoras não tendem a se mostrar sectárias, sua teorização e praxis sendo saudavelmente permeáveis a novas abordagens e a heterodoxos questionamentos, o que estimula permanentes reconfigurações interpretativas. Sua arte e crítica colhem e elaboram resíduos do cotidiano, abrindo-se igualmente para os infinitos voos do imaginário, em uma produção cujos desdobramentos espraiam-se como os caminhos de um rizoma. Curiosamente, à medida que penetrava mais e mais em tão rica textualidade, parecia-me remeter todo o tempo a um texto único, embora plural e abrangente. Isto porque, múltiplas e coloridas pelas respectivas histórias de vida, essas vozes de mulheres soam com independência, mas reúnem-se em polifonia – aliás, como secularmente sempre o fizeram, em construção.

• In: Caderno Espaço Feminino. Uberlândia: EDUFU, Vol. 12, no15, p.13-26, 2004.

[1] Tal comprometimento cultural com a condição de origem, conforme escreve Márcio Barbosa em Questões sobre Literatura Negra, “é, sobretudo, temporal e gerada por uma opção consciente. Uma opção que depende unicamente do escritor e seu direcionamento aos problemas do seu grupo social é que vai defini-la.” In Reflexões sobre Literatura Brasileira. São Paulo, Conselho de Participação e desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985, p.51.

[2] “[Na análise de enunciados, quando] entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), dir-se-á, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, Petrópolis, Vozes, 1972. p.51. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves.

[3] Conceição Evaristo, “Meu Rosário”. Cadernos Negros 15. Quilombhoje/ Edição dos Autores, 1992. p.23-24. São Paulo,

[4] Ver, a respeito, Black Literature & Literary Theory. Henry Louis Gates, Jr. (ed.).

New York and London, Methuen, 1984; Stelamaris Coser, Bridging the Americas: The Literature of Paule Marshall, Toni Morrison, and Gayl Jones. (Philadelphia, Temple University Press, 1995), onde se lê: “As concepções de literatura que unem [Paule] Marshall, [Toni] Morrison e [Gayl] Jones a García Márquez e a [Carlos] Fuentes vinculam-se à recuperação da memória através da tradição de contar histórias herdada de mães e avós.” p.14; também Race Woman: The Lives of Shirley Graham Du Bois, Gerald Horne: “[A peça teatral It`s Morning, de Shirley Graham Du Bois] inovadoramente insere os ritmos e a cultura oral da África numa estrutura aristotélica tradicional”. N.Y.& London, New York University Press, 2000. p.17 (traduzi as passagens acima).

[5] Leda Maria Martins, “A Oralitura da Memória: Narrativas Orais Fundadoras”. In: Nações/Narrações. Nossas Histórias e Estórias. Rita Terezinha Schmidt (org.). Porto Alegre, ABEA, 1997. p.41 e 53. Mais recentemente, no desenvolvimento de sua teorização, a mesma autora publicou “A Oralitura da Memória” (in Brasil Afro- Brasileiro. Maria Nazareth Soares Fonseca (org.). Belo Horizonte, Autêntica, 2000.

[6] Carlos Drummond de Andrade, “Infância”. Alguma Poesia – Obra Completa. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1967. p.53-54.

[7] Se enveredássemos pelos labirintos ainda insuficientemente explorados do discurso oral, com freqüência clandestino, de mulheres negras, quer na militância abolicionista, quer através da espiritualidade, quer em entranhadas combinações de ambas, ou também por outras modalidades discursivas como o canto, a dança, a arte em geral, incluiríamos nesta discussão a expressão de mulheres como Luiza Mahim, mãe de Luiz Gama, no Brasil, ou Sojourner Truth, abolicionista norte-americana, entre tantas outras, as quais fizeram-se ouvir, sem deixarem o legado de uma produção escrita. Em Mito e Espiritualidade: Mulheres Negras, Helena Theodoro aborda esta problemática. A respeito de mulheres que viveram em tempos mais próximos de nós, ela escreve: “Clementina de Jesus foi um documento vivo d[as] raízes africanas, além de representar as batucadas e os partidos cantados nas rodas de samba e candomblés das casas das famosas tias baianas do início do século [XX], bem como as modas de viola que ouvia de sua mãe, que as recebeu como herança de nossos antepassados. Mãe Quelé era a força dramática do canto negro em sua expressão máxima, por ter raízes profundas em um processo civilizatório africano, que se apóia na tradição – comunhão com a coletividade – caracterizadora da identidade cultural do negro no Brasil.” Rio de Janeiro, Pallas, 1996. p.119,120.

[8] O escrever torna-se utensílio tanto de “escavação” quanto de “recreação” - segundo Toni Morrison, referindo-se à gênese de Beloved (1987). Apud Carole Boyce Davies, “Mobility, Embodiment and Resistance.” Black Women, Writing and Identity – Migrations of the Subject”. London & New York, 1994. p.136.

[9] Conceição Evaristo, “Vozes-Mulheres”. Cadernos Negros 13. São Paulo, Quilombhoje/Edição dos Autores, 1990. p.32-33.

[10] Por exemplo, Marina Gashe, do Quênia, no poema “The Village”, escreve: “Old women dark and bent/ Trudge along with their hoes/ To plots of weedy maize. / Young wives with donkeys/ From cockcrow to setting of the sun/ Go about their timeless duties,/ Their scraggy figures like bows set in a row,/ Plod up and down the rolling village farms/ With loads on their backs/ And babies tied to their belllies.” [11] (Grifei). Zora Neale Hurston, Their Eyes Were Watching God. New York, Harper & Row, 1937. p.18. A tradução de passagens do romance de Hurston, aqui, é de minha autoria. O romance foi recentemente traduzido e publicado no Brasil, com o título Seus Olhos Viam Deus (Editora Record, 2002).

[12] Esmeralda Ribeiro, “Fato”. In: Enfim... Nós / Finally... Us – Escritoras Negras Brasileiras Contemporâneas / Contemporary Black Brazilian Women Writers. Eds. Miriam Aparecida Alves & Carolyn Richardson Durham. Colorado Springs, Three Continents Press, 1994-1995. p.86.

[13] Helena Theodoro. op. cit., p.43-44. No mesmo livro de 1996, lê-se também: “Dentro do sistema capitalista, (...) a mulher negra é a mais explorada, já que em termos de divisão racial e sexual do trabalho ela ocupa os mais baixos escalões, sobretudo no setor agrícola, onde equivale a cerca de 60%. Na medida em que a carteira profissional assinada é uma garantia para o trabalhador, constata-se que apenas 37% das mulheres negras trabalhadoras possuem carteira assinada.” O Boletim Eparrei Online da Casa de Cultura da Mulher Negra, Santos/SP, edição julho 2003 (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.), acrescenta novos dados à questão: “Na proximidade do dia 25 de julho, Dia da Mulher Negra da América Latina e do Caribe, nós, cerca de 36 milhões e 300 mil mulheres negras do Brasil, constatamos o grande desafio que temos para mudar estatísticas como esta da Fundação Seade: enquanto a esperança de vida para as mulheres brancas é de 71 anos, 40,7% das mulheres afro- descendentes morrem antes dos 50 anos (pesquisa no município de São Paulo, em 1995).

O Índice de Desenvolvimento de Gênero (IDG), que mede as desigualdades entre homens e mulheres nos países, revela quantas barreiras diferenciadas e superpostas enfrentam as mulheres que têm a pele negra: no Brasil, segundo a classificação do IDG, os homens brancos estão em 41o lugar, as mulheres brancas estão em 69o lugar, os homens afro-descendentes em 104o lugar e as mulheres afro-descendentes ocupam o 114o lugar, com o menor índice de qualidade de vida.” (Alzira Rufino, Editorial)

[14] Miriam Alves, “Pedaços de Mulher”, Entrevista de 1995. Apud Leda Maria Martins -texto referido a seguir (nota 15), p.220.

[15] Leda Maria Martins, Arabescos do Corpo Feminino. Gênero e Representação na Literatura Brasileira. Coleção Mulher e Literatura, vol. II. Constância Lima Duarte, Eduardo de Assis Duarte e Kátia da Costa Bezerra (orgs.). Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2002. p.226.

[16] Walter Moser escreve: “No plano cultural e artístico, admite-se, cada vez mais, que se pense a produção, e até mesmo a criação como um processo de reutilização, para não dizer de reciclagem de materiais culturais dados a priori. Estamos, pois, longe dos postulados de originalidade, de autenticidade, de pureza dirigidos outrora ao artista. Que se utilize a etiqueta ‘pós-moderno’ para designá-la ou não, a produção cultural desenvolveu uma tendência a se transformar numa ‘random cannibalization of dead styles’, como a formula – não sem uma avaliação negativa – um de seus teóricos e críticos (Frederick Jameson)”. Restos e Reciclagem: Da Temática Romanesca à Economia da Produção Cultural. Literatura e Americanidade. Zilá Bernd e Maria do Carmo Campos (orgs.). Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1995. p.42. Trad. Maria José Coracini.

[17] Conceição Evaristo, “A Gente Combinamos de Não Morrer”. Texto inédito, cópia datilografada cedida pela autora.

[18] Geni Guimarães, “A Cor da Ternura”. Enfim... Nós/ Finally... Us. Escritoras Negras Brasileiras Contemporâneas/ Contemporary Black Brazilian Women Writers. p.28.

[19] (Traduzi).Stelamaris Coser, op. cit., p.4.

[20] Carole Boyce Davies, “Introduction - “Migratory Subjectivities: Black Women’s Writing and the Re-negotiation of Identities”. op. cit., p.3-4, 17

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