Preto no Branco
Dona Bruna, como sempre, estava muito bem trajada! Tudo combinando: brincos com colares, sapatos em coerência com a bolsa e cores num só ornamento. Desceu do seu carro simples em direção à recepção do lindo e luxuoso prédio no centro da zona leste de São Paulo, onde morava sua filha Mirela que cursava medicina e precisava estar em local próximo da faculdade. Ela morava com mais duas amigas: uma médica e outra veterinária. A doutoranda Mirela era filha de uma mistura de raças, e o que se via era um bonito resultado genético!
Dona Bruna dirigiu-se ao porteiro do prédio, cumprimentando-o com um sorridente "bom-dia".
Ele respondeu com um "bom-dia!" e perguntou:
- O que deseja a senhora?
Bruna respondeu:
- Preciso falar com Mirela, do décimo quarto andar, apartamento 144.
O porteiro falou à Bruna:
- Ah, sim! A senhora é a faxineira dela, né? Veio fazer a faxina?
Bruna disse:
- Não, eu vim visitar a Mirela, minha filha. Entendeu? Sou a mãe dela, não sou a faxineira.
O porteiro se deu conta da besteira que havia falado, não pela profissão que mencionou, pois toda profissão ativa, e feita com honestidade, é digna e admirável, mas o mais chato nisso tudo é que o porteiro estava diante de uma mulher negra e só conseguia vê-la em uma profissão doméstica, sem conseguir enxergar a realidade de dona Bruna: ser professora e ter uma filha doutoranda em medicina.
Assustado, ele falou:
- Ah, pois não! A senhora é a mãe dela. Ah, desculpe! Parabéns…
Dona Bruna, indignada, disse:
- O senhor tem noção da gravidade do seu julgamento preconceituoso e racista? O senhor nem procurou saber quem eu era e já foi falando o que achava que eu deveria ser! Isso se chama preconceito! Um conceito antecipado que diminui as pessoas. Nunca poderia ter agido assim, principalmente na profissão de porteiro. Alguém poderá processá-lo por isso!
Ele nada respondeu... Abaixou a cabeça e permaneceu em silêncio. Interfonou para Mirela, que liberou a subida da mãe ao apartamento.
Em silêncio, Bruna subiu pelo elevador com vontade de chorar. Nada podia comentar na presença das amigas da sua filha, porque não compreenderiam a queixa.
Logo depois, abraçou sua filha, chamou-a em particular e contou o que havia se passado. Mirela chorou muito com sua mãe. Sentiu a forte dor da discriminação racial mais uma vez e disse: Hoje mesmo vou conversar com o senhor Daniel. Vou situá- lo em relação ao grande erro que cometeu com você, mãe. Não fique assim. Pare de chorar.
E ainda a confortou dizendo:
- Mãe, que isso não seja seu desânimo! Olhe para trás e veja o quanto já caminhamos!
Afinal de contas, sua filha havia tentado três vestibulares de medicina em universidades públicas e, não conseguindo a vaga, havia saído do país para cursar na Bolívia. Sentindo que percorreria um vasto caminho até poder convalidar o diploma de médica no Brasil, decidiu voltar para o seu país de origem, onde foi aprovada em duas universidades particulares.
Escolheu uma delas para recomeçar seu curso, desde o início. Bruna, professora, e seu esposo metalúrgico estavam empenhados, aceitando o desafio de formar a filha. Trabalhavam muito para que Mirela concluísse seus estudos.
Por ser aquele o ano da conclusão, e para que ficasse mais próximo dos hospitais em que daria os plantões, Mirela morava com amigas, dividindo as despesas. Ela já vinha sofrendo muitos bullyings no hospital e, muitas vezes, voltava para casa desapontada porque, ao sentar-se no consultório médico trajando jaleco, com estetoscópio e caneta, quando chamava os pacientes, eles diziam: "Enfermeira, por favor, chame a médica?".
Não queriam acreditar que aquela negra era médica e Mirela não queria acreditar que estava passando por tal situação, em que as pessoas duvidavam da sua capacidade.
Mas tudo isso que Bruna e Mirela passavam as fortalecia cada dia mais para brilhar e compor a renovação dessa história brasileira e mundial, em que a coragem negra tem se estendido por aí afora, de forma esplêndida!
- Mãe... - disse Mirela abraçada à dona Bruna. Nós negros temos sido uma explosão de talentos na música, no esporte, na medicina, na televisão, a ponto de fazer um negro ser presidente da América. No Brasil, temos o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a ex-senadora Benedita da Silva, no esporte o Pelé; na música, Gilberto Gil, entre outros que se destacam a cada dia. Bem merecido! Estamos caminhando bem, mãe. No decorrer da história tivemos grandes avanços e conquistas.
Mirela voltou o olhar da sua mãe durante a conversa para essa bela realidade vitoriosa em que os negros podem encontrar grandes barreiras para conquistar seu espaço, mas em que a força e a coragem fazem a diferença na marca da chegada.
As duas cresciam em cada etapa da vida, porém, quando se deparavam com a repetida cena da discriminação racial, entristeciam-se e tinham o sentimento de que tudo estava perdido.
Bruna tomou um gostoso café com sua filha e se despediu. Queria ir embora para sua casa, ficar sozinha, refletir sobre o ocorrido naquela portaria do prédio.
Chegou em casa, deitou-se no seu sofá e fechou os olhos.
Din don, Din don!, tocou a campainha.
Era um senhor de aproximadamente 65 anos. Um vendedor. Falou para ela:
- Por favor, chame a dona da casa pra mim?
Dona Bruna respondeu:
- Sou eu mesma a dona da casa! O que deseja?
Disse o homem:
- Senhora, você mora na casa dos fundos, né? Quero falar com a dona da casa principal.
Com desapontamento, ela disse:
- Pois sou eu mesma!
Que chato! Mais uma vez sendo discriminada em sua própria casa, desafiada a olhar para frente e imergir na missão de ser uma integrante da nova história que compõe uma grande multidão empenhada em se destacar como o preto se destaca no branco, o amarelo no verde, o marrom-café na cor creme, a luz se destaca no escuro, o presente no futuro.
Vida vivida, vida bonita, a vida de Dona Bruna, da doutoranda Mirela e de toda sua família. Família de negros guerreiros.
Mirela terminou sua faculdade de medicina e pôde ingressar em um dos mais renomados hospitais. Voltou a morar com sua família e conseguiu trabalhar próximo de casa.
Seus pais continuaram os estudos, podendo servir a comunidade na área educacional. Ela tornou-se uma médica muito dedicada e capaz, sempre levando consigo um vivo sorriso e projetos que beneficiavam os desprovidos de saúde.
A doutora Mirela casou-se, teve três filhos: duas meninas e um menino. Sua mãe passou a dedicar-se a cuidar dos netos, juntamente com o avô. Cuidavam das crianças de dia, à noite os avós lecionavam numa universidade da cidade.
Em todas as coisas eram gratos, pois sabiam que pisavam firmes em seus caminhos e almejavam a todo o tempo vencer.
Firmavam seus corações nessa linda visão de Abraham Lincoln:
"O êxito da vida não se mede pelo caminho que você conquistou, mas sim pelas dificuldades que superou no caminho".
(Cadernos Negros 40, p. 43)