Ruindo a torre de narciso com o espelho de Oxum:
pistas para ler De onde eles vêm
Julieta Kabalin Campos*
cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto
ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso
é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga
(...)
Cuti, Negroesia
O mais recente romance de Jeferson Tenório propõe a seus leitores uma complexa imersão na trajetória de um jovem negro marcada tanto pelas oportunidades quanto pelos desafios que surgem com sua entrada na vida universitária, por meio das políticas de ações afirmativas. O protagonista da narrativa é Joaquim, um escritor novato que, como integrante da primeira geração de cotistas nos anos 2000, conseguiu ingressar no curso de Letras de uma universidade federal no Sul do país. Assim, a narrativa nos guia pelos intrincados atravessamentos subjetivos que configuraram uma experiência social profundamente disruptiva, privilegiando a perspectiva de um dos seus principais atores: o próprio cotista, com seu nome e sua história, seus receios e suas audácias, suas palavras e seus silêncios, suas memórias e seus desejos. Aqui, Joaquim não é mera estatística. Pelo contrário, ele é uma das pessoas que, com as próprias forças e vulnerabilidades, se habilitaram ao desafio de pôr o próprio corpo – esse que carrega as marcas de uma longa e cruel história de injustiças que não cessam de se atualizar – em um novo jogo de disputas de poder.
As primeiras cenas do romance nos apresentam Joaquim como um menino de dez anos que mora com a mãe em uma casa alugada no periférico Morro da Cruz, em Porto Alegre. Nessa breve passagem – que mais adiante saberemos tratar-se de uma lembrança do jovem universitário que protagoniza a história –, o leitor tem acesso a uma das primeiras revelações e, ao mesmo tempo, a uma das frustrações que esse personagem vivencia em relação às suas inclinações artísticas. Com o enunciado “eu tinha dez anos quando deixei meus cavalos caírem no chão” (p. 13), inicia-se o breve relato no qual o narrador expõe, de maneira parcial – recorte circunscrito ao ponto de vista de uma memória de infância –, uma reveladora cena de perda. Em um contexto confuso e inesperado de fuga, iniciado pela mãe, a criança deixa cair o desenho que havia feito a pedido de seu Adauto, um dos proprietários da casa alugada. Trata-se da recordação de uma primeira aproximação com a arte, interrompida por circunstâncias que, embora ele não compreendesse totalmente, já o atravessavam. É a memória de um contexto de vulnerabilidade que – como leitores podemos suspeitar – desde cedo o expunha aos perigos do mundo. Assim, “Levantando cavalos”, nome da primeira das quatro partes que compõem o romance, pode ser lido como a narração de um movimento de recomposição dessa perda, de uma nova chance de tornar possível um desejo que, um dia, o menino do passado precisou deixar cair. Essa esperança vem entrelaçada à oportunidade outorgada a ele por uma política pública de reparação histórica e ao desejo pessoal de Joaquim: tornar-se um poeta, ser um escritor profissional e viver da literatura.
No entanto, esse caminho está longe de ser um sendeiro de portas abertas e livre de obstáculos. Na perspectiva de Joaquim, a narrativa nos permite adentrar nas múltiplas complexidades de trajetórias como a dele, tanto no plano individual como coletivo, na sociedade brasileira nos primeiros anos deste milênio.
Joaquim ingressa na universidade na idade em que um aluno considerado “modelo” deveria estar terminando sua graduação. Com seus vinte e quatro anos, tinha se tornado um bom leitor apesar de nem sequer ter contado com os recursos para comprar os livros do vestibular. Era já um compenetrado ouvinte de rap, particularmente, do icônico grupo Racionais MC’s, cujas letras ofereciam espaços de identificação e entendimento da sociedade que integrava. Estava desempregado e, junto com sua tia Julieta, era responsável pelo cuidado da avó materna, que sofria de demência senil. Morava longe do campus universitário, no bairro São Pedro, e nem sempre tinha dinheiro para a passagem do ônibus que o pouparia da demorada caminhada até lá. A fulminante doença da mãe e o voluntário sumiço do pai, fizeram da morte e do abandono membros prematuros da sua vida. O contraste com as privilegiadas condições que seus colegas tinham para desenvolver suas carreiras resulta iniludível, mesmo quando a narração não coloca aí seu foco.
A universidade, apesar de ser espaço de novas oportunidades para “fugir das armadilhas” da vida e “conservar a lucidez” (p. 20) – expectativas que compartilhava com a namorada da época do pré-vestibular e do primeiro ano do curso, Jéssica, mulher negra, estudante de história e mãe solteira –, em pouco tempo, mostra-se também como um “lugar hostil” (p. 25). Colocar no centro da cena a voz de Joaquim permite reconhecer o caráter expulsivo dessa estrutura educativa secular. Entre outras coisas, ser cotista significa carregar uma etiqueta que impõe desafios tanto externos quanto internos. Joaquim precisa reafirmar constantemente sua capacidade, enfrentando os estereótipos e provando, para si e para os outros, que ele é mais e pode mais do que se espera dele – na sociedade em geral, mas sobretudo dentro da comunidade universitária. Fixação como mecanismo de tolerância da alteridade, deslocamento como estratégia de resistência e empoderamento. O encontro entre essas expectativas e, ao mesmo tempo, o embate delas com a disruptiva realidade diária do cotista na vida universitária dão lugar a relações e afetos diversos e variáveis que formam parte do universo (inter)subjetivo que o romance constrói de maneira profunda e sutil.
Nesse sentido, um dos pontos fortes do livro é a exploração dos vínculos, tanto dentro quanto fora da vida universitária, assim como das transformações que esses laços – e os próprios indivíduos – sofrem com o tempo. Entre eles, destacam-se as mudanças na dinâmica familiar e a sobrecarga assumida pela tia Julieta na ausência de Joaquim durante suas jornadas universitárias. No contexto acadêmico, tanto Joaquim quanto a Jéssica iniciam novos relacionamentos, trazendo perspectivas e experiencias diferenciadas sobre os vínculos interraciais. Ainda nesse espaço, a narrativa lança luz sobre a diversidade de experiências e projetos de vida, vinculada a trajetórias e oportunidades desiguais e evidenciada no contraste entre as prioridades de Joaquim e de outros estudantes negros e negras, como Saharienne, e as de outros colegas brancos, como Elisa e Ana Clara, namorada e sogra do narrador, por exemplo. Vislumbram-se, também, os diferentes afetos e interesses, bem como as distintas relações, estabelecidos com companheiros e professores – como a que se constrói entre os estudantes e Moacir Malta, professor de poesia do curso. Além disso, são expostas circunstâncias de vida que se concretizam para além do campus universitário, como as dificuldades derivadas de vivenciar sexualidades não heteronormativas no contexto de famílias negras periféricas – como ocorre com Lauro, amigo de infância do protagonista – e a existência de vínculos que operam como redes de contenção e supervivência – tal como a amizade construída com o livreiro Sinval, que se torna um referente para Joaquim. Muitas dessas mudanças – e aqui é importante ressaltar o perspicaz movimento de Tenório ao evidenciá-las – decorrem dos cruzamentos entre âmbitos que historicamente se mantiveram – e ainda tendem a se manter – desconectados.
Além do mencionado “Levantando cavalos”, o romance é composto por mais três capítulos: “De onde eles vêm”, “Sinnerman” e “A vida é boa”. Em cada um deles, a história de Joaquim e das demais personagens se expande, e cada subtítulo nos oferece uma nova pista para desentranhar os múltiplos fios da narração. No capítulo homônimo ao livro, a leitura pode ser encarada a partir do duplo sentido que essa proposição possibilita. A construção “de onde eles vêm” opera tanto como uma das perguntas implícitas que o romance busca responder diante da mirada preconceituosa que a sociedade construiu sobre a presença de pessoas negras nas universidades, quanto como reforço da lógica metarreflexiva que a narração nutre ao longo das páginas por meio dos pensamentos de Joaquim: “De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm?” (p. 55). O questionamento permanente sobre o objeto e o fazer literário são uma constante no livro e aportam elementos significativos para sua leitura como um romance de formação.
No terceiro capítulo, a referência direta, tanto pelo título quanto pela epígrafe, à canção “Sinnerman”, interpretada por Nina Simone, convoca outra camada interpretativa. Aqui, as linhas de sentido parecem direcionar-se a uma espécie de crise espiritual e intelectual vivenciada por Joaquim. Nesse sentido, o narrador expõe conflitos internos que emergem da relação concomitante com saberes e tradições de matrizes diferenciadas, sobretudo aqueles vinculados a uma esfera espiritual familiar ancestral e outra ligada a práticas euro-ocidentais de saber, amplamente legitimadas socialmente como tais:
Minha avó costumava dizer que eu era médium, que tinha um xangó para desenvolver num terreiro, que tinha dom de ver e sentir as coisas. Na verdade, eu sentia mesmo, mas costumava ignorar, porque de certo modo quanto mais estudava, quanto mais eu lia, mais racional eu me tornava (p. 134).
No entanto, é importante ressaltar que esse movimento não implica uma relação maniqueísta entre os planos em conflito, mas sim um vínculo em tensão que não chega a ser – nem pretende ser – resolvido.
Finalmente, no último capítulo, a chave de leitura que seu título proporciona é de caráter mais existencial: Qual é o valor da vida? E o de uma vida negra? É possível revelar-se ante os lugares historicamente prefigurados para essas existências no mundo? E o futuro, a quem pertence? Se, em um primeiro momento, nos deparamos com um Joaquim devastado e sem rumo após a ruptura com Elisa, a morte da avó, a impossibilidade de dar seguimento à carreira universitária diante das urgências materiais da vida e de uma série de outras desventuras que o fazem tocar o fundo do poço; um encontro aparentemente fortuito com um exu parece colocá-lo novamente frente a si mesmo e à sua comunidade. Dessa forma, a encruzilhada desse capítulo oscila entre os fantasmas do desejo frustrado de tornar-se aquilo que havia imaginado para si e a possibilidade de abandonar qualquer aspiração para, finalmente, “tornar-se alguém sem história” (p. 186). Nessa transição, a literatura seguirá ocupando um lugar central para o narrador, pois possibilita a configuração de espaços de crise e autorreconhecimento que são constitutivos da sua subjetividade. No entanto, é a reaproximação a uma religiosidade abandonada que se revela crucial para dar um giro em sua vida: “Eu me aproximava dos santos e me apaziguava. Minha cabeça e meu corpo aceitavam os orixás em comunhão. Meus nós se desatavam” (p. 191).
Em relação a este último ponto, sem a pretensão de esgotar as infinitas leituras que De onde eles vêm pode proporcionar, considero pertinente encerrar com uma última colocação. Ela surge do diálogo entre o romance, o poema “Gota Do Que Não Se Esgota”, de Cuti – convocado como epígrafe deste texto – e uma pista de leitura oferecida pelo próprio autor em uma palestra que tive a felicidade de presenciar.1 Na proposta ficcional de Tenório, assim como em outras escritas de autores negros e negras, pode-se identificar uma visão autoficcional que entra em tensão com a escrita de si operada a partir de certas lógicas euro-ocidentais. Trata-se, nas palavras de Tenório, de uma visão “oxúnica” na literatura. Ou seja, diante do reflexo narcisístico da escrita limitada à imagem do eu, a mirada frente ao espelho de Oxum – ou abebé –, na tradição iorubá, propõe outras modulações, pois remete simbolicamente ao poder “com o qual revela aos iniciados o seu interior mais profundo” (p.119). Ele não se limita ao mergulho do eu na própria imagem; o espelho, enquanto objeto material, implica sempre o outro e seu olhar. Por isso, trata-se também de compor comunidade a partir do autoconhecimento e do autocuidado. Ruir pela base a torre de Narciso, tal como indica Cuti em seu poema, é habitar, ser e resistir nos próprios espaços de histórica opressão – ainda que seja na mínima forma de uma gota. De onde eles vêm convoca essa luta e, sobretudo, participa dela.
De fato, este gesto se vislumbra na complexa e sensível configuração narrativa que o romance constrói sobre os efeitos atuais das históricas estruturas racistas que deram lugar à nação brasileira. Como foi possível advertir ao longo desta exposição, isso não implica ficar na superfície de um pronunciamento antirracista no qual a ficção funciona como mero pano de fundo de uma denúncia. Pelo contrário, a trama racista que atravessa a história do Joaquim, um jovem negro que simplesmente quer escrever, se entranha organicamente nas relações e nas subjetividades que o relato explora densamente, na sutileza de cada detalhe, na força de cada soco de realidade.
Belo Horizonte, fevereiro de 2025.
Notas
1. Palestra “O que quer um romancista negro?” ministrada por Jeferson Tenório no Colóquio Negritude e Literatura, no 5 de novembro de 2024, FALE, UFMG. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QLmmAabaY2A
Referências
CUTI. Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
TENÓRIO, Jeferson. De onde eles vêm. São Paulo: Companhia das Letras. 2024.
PARIZI, Vicente Galvão. O livro dos Orixás: África e Brasil. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
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* Julieta Kabalin Campos é Doutora em Letras pela Universidad Nacional de Córdoba (UNC), onde também obteve os títulos de bacharel e licenciada em Letras Modernas. Foi bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de 2016 a 2022. Atualmente, integra o projeto de pesquisa "Territorialidades latinoamericanas en mundos por-venir: poéticas de re-paisamiento y re-comienzos en los ensamblajes heterogéneos de la literatura y el arte contemporáneos" (CIFFyH-UNC) e atua como professora na Cátedra Livre de Cultura Brasileira da UNC.