Poesia

 

A dança das imagens entre as palavras.
A viagem de volta ao desconhecido.
Aquilo que concerne ao cerne do ser.
A linguagem dos pássaros sem voz.
A hesitação sem a redenção do êxito.
O enunciado do ser travestido em vocábulos.
A ordem do ente na desordem dos seres.
Emoção recuperada no deserto da história.
A ação e o efeito de fingir-se sendo.
Parcas arrependidas uivando pela vida.
Desígnio de deuses esquecidos.
A pureza selvagem do espúrio.
Tudo o que se perde com a conceituação.

 

(O canto verde das maritacas, 2016)

Poesia e Negritude

ou Adão Ventura esticando a pele até o poema

 

Matheus José [1]

 

RESUMO

 

Ler a poesia de Adão Ventura (1939-2004) é, também, de algum modo, observar um panorama de autoras/autores negros que registram projetos literários explicitamente políticos, sem, contudo, desconsiderar a preocupação estética com a linguagem, relevando o poema enquanto instância medular de expressão e de inscrição da negritude. Diante disso, este artigo objetiva analisar e interpretar o poema intitulado “UM”, de autoria de Adão Ventura, publicado na seção “Das Biografias” do livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais/literários e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.

 

Palavras-chave: Poesia. Negritude. Adão Ventura. A cor da pele.

 

ABSTRACT

 

Reading the poetry of Adão Ventura (1939-2004) is also, in a way, observing a panorama of black authors who record explicitly political literary projects, without, however, disregarding the aesthetic concern with language, highlighting the poem as a central instance of expression and engaged inscription of blackness. In view of this, this article aims to analyze and interpret the poem entitled “UM”, by Adão Ventura, published in the "About Biographies", section of the book A cor da pele (1980), observing how the Afro-Minas Gerais poet mobilizes and/or tensions textual/literary procedures and engaged stance of blackness linked to the identity-cultural experience, the critique of slavery, the denunciation of racism and the reinterpretation of the socio-historical horizon through family memory.

 

Keywords: Poetry; Blackness; Adão Ventura; A cor da pele.

 

 

Introdução – ou lendo as paisagens negras no poema

É a afirmação do negro pela valorização de sua cultura, a começar pela poesia.”

(Kabengele Munanga)

 

Ler a poesia do afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), precisamente os poemas publicados em 1980 no livro A cor da pele, além das potências literárias com o manejo do verso, em que se destaca um poeta que une sua consciência política e racial a uma linha sempre inventiva e de descobertas formais (Gomes, 1992), também motiva depreender um panorama poético significativo de 1978[2] em diante no Brasil.

Ainda que perante o espaço exíguo da Ditadura Militar, estes foram anos relevantes para estruturação e disseminação da consciência de negritude no país tendo como lugar de inscrição o texto poético. Temos no poema o lugar de expressão da negritude enquanto convocação permanente de todos os descendentes dessa condição para que engajem no combate e na potencialização dos valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas (Munanga, 2020). Também é um chamamento para a retomada de consciência identitária, enunciativa, social e política de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e da negação da humanidade em algum momento.

Nessa paisagem, os poetas pretos assumem projetos verbais deliberadamente atrelados a sua negrura identitária-cultural e rotacionam novos sentidos, não assimilam padrões, reivindicam direitos, elaboram novas imagens e metáforas, desvelam realidades, expandem signos linguísticos, desaprovam processos sócio-históricos exploratórios, rompem com concepções excludentes de linguagem, de literatura, de sociedade e apresentam outros meios e argumentos.

Diante do exposto, é colocada em relevo uma poesia negro-brasileira que nasce na e da população negra-brasileira e, também, de sua experiência no país (Cuti, 2010). Acentuam-se, portanto, poetas pretos que inserem o próprio corpo e as próprias subjetividades no texto poético, ao mesmo tempo que mobilizam estratégias textuais e literárias que veiculam pontos de vista críticos referentes à situação e à história da comunidade negra em território brasileiro.

Ainda sobre essa geração de poetas, no prefácio da segunda edição do livro O Negro Revoltado (1981), Abdias Nascimento menciona, brevemente, o poeta Adão Ventura e outros poetas[3], destacando-os enquanto voz de uma nova poesia negra engajada disposta a inocular, sem cordialidade alguma, a questão do negro em seu expediente poético.

O que é incontestável nessa poética negro-brasileira, e constataremos lendo o poema intitulado “UM” (1980) de autoria de Adão Ventura, é que o enunciador de fato coincide/acompanha aquilo que está sendo enunciado na estrutura do poema.

Também nesse panorama, é possível perceber que o fazer poético passa a ser equivalente a um processo de reterritorialização, ou seja, a uma tentativa de recomposição de um sistema próprio de representações (Bernd, 1988, p. 23). Por isso, a propensão à ruptura, seja na medida em que a própria situação do negro se atenuava na sociedade brasileira pós-abolição da escravatura ou seja diante da própria instituição social literatura que, após vários anos imersa no “negro-tema”, sem dúvida, estranhe a conjuntura de deparar com uma voz diferente, com um texto diferente, com metáforas, estilos e pontos de vista diferentes elaborados por um corpo diferente proveniente de outros corpos também diferentes até então objetificados, reduzidos, despossuídos de competências linguísticas e capacidades crítico-criativas.

Nessa perspectiva de tensionamentos na relação entre negritude e literatura, o pesquisador Eduardo de Assis Duarte aponta para essa dobradiça descentrada e descentralizadora ao argumentar sobre edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização(Duarte, 2014, p. 400).

Em síntese, antes de debruçarmos na poética de Adão Ventura por meio do livro A cor da pele (1980) e do poema “UM”, fez-se necessário situarmos o poeta como mais uma voz integrante desse polifônico cenário da poesia negro-brasileira em que se nota que o eu lírico é lugar ocupado por sujeitos pretos e intrusos que registram, poeticamente, um enunciado no mundo para significar. Assim, ocupam o pronome, a imagem, a metáfora e a primeira pessoa do discurso com toda carga identitária, cotidiana, coletiva e histórica estremecida pelo preconceito, pela injustiça, pela humilhação, pela pobreza, pela exploração, pela indignação e que está explicitamente assumindo um projeto simples e complexo de escrita de poema motivado pela cor preta da pele e o que ela implica e demanda.

A cor da pele esticada até o debate

Diante desse panorama plural de voltagens reivindicativas e inventivas inoculadas sem cordialidade alguma no texto poético escrito por sujeitos negros, destacamos o poeta afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), nascido e criado no distrito de Santo Antonio do Itambé e que depois dos registros de alta performance, com os livros Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970) e As musculaturas do arco do triunfo (1976), publica de forma independente a primeira edição do livro A cor da pele; um volume com total de 25 poemas lançado em Belo Horizonte/MG em 1980.

O livro é dividido cirurgicamente em quatro seções; Das biografias, Da servidão e chumbo, Raízes e Livro último, conta com prefácios de Rui Mourão e Fábio Lucas e com a concepção de capa de Sebastião Nunes.

Temos em A cor da pele a poética da desassimilação, de enunciação crua, com versos concisos e curtos que abarcam desenvoltura semântica, sintática e rítmica junto a imagens e figuras que comungam da negritude enquanto tomada de consciência em que o “elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo” (Santiago, 1982, p. 123).

As composições do livro apresentam o contradiscurso desassossegado para os debates literários e culturais do Brasil naquele momento em que, ainda imerso no regime militar, propagava a superação da escravatura por meio da abolição e da miscigenação. Defronte dessa situação hilariante, um sujeito preto e poeta registra os seguintes versos: “minha carta de alforria/ não me deu fazendas, / nem dinheiro no banco, / nem bigodes retorcidos” (Ventura, 1980, n.p.).

Adão Ventura comunga da linhagem discursiva da poesia brasileira marcada por autoras/autores negros que explicitam a intenção extremamente contestatória de uma poesia de cunho eminentemente político que não despreza a preocupação estética. O poeta atrela à linguagem da poesia as demandas sociais e singulares, dessa maneira tensiona ou estabiliza a noção de que é na e pela linguagem que o indivíduo se constitui enquanto sujeito, como aponta também para capacidade da linguagem poética de motivar diversas alternativas para a compreensão não só da realidade absurda que o cerca, mas induzindo, também, a percepção de si e do outro.

O livro nos apresenta poemas como “Negro Forro”, “Eu-pássaro preto”, “Negro Escravo – versão para o século XX”, “Faça sol ou faça tempestade”, “Preto de alma branca: ligeiras conceituações”, “Meu sonho”, “Algumas instruções de como levar um negro ao tronco”, “Por que Jesus Cristo é sempre branco?”. São exemplos de construções poéticas cuja matéria trata diretamente de expor questões polêmicas e sensíveis que abrangem questionamentos sócio-históricos, literários, identitários e culturais que orbitam um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro. Segundo comentário de um dos pesquisadores da obra de Adão Ventura, o professor Édimo de Almeida Pereira, a leitura da poética do autor permite o entendimento da realidade não pela razão cartesiana do mundo branco” (Pereira, 2010, p. 52).

Já no poema “Para um negro”, podemos ler versos como este: “para um negro/ a cor da pele/ é uma faca”, “para um negro / a cor da pele / é um soco”. Nestes versos, Adão Ventura aplica uma pressão no signo da pele que, ao ser esticada/expandida, alberga sobretudo que algumas profundidades envolvem o tecido superficial e dérmico, além da melanina e do fenótipo.

Na obra, ainda podemos observar como negritude e poesia interagem ou tensionam-se através da ação estratégica da anáfora, que cumpre sua função textual de atribuir ênfase a alguma ideia. Contudo, ao ler a repetição de versos, como em faça sol ou faça tempestade / meu corpo é fechado / por esta pele negra, é possível perceber a anáfora expondo a recorrência do aspecto insular do corpo e da subjetividade do sujeito. (Ventura, 1980, n.p.).

Também através do volume de poesia A cor da pele, percebemos a postura de Adão Ventura de expor e encarar o aviltamento, que é o mesmo que interpretar um conglomerado de escombros e subprodutos da barbárie colonialista-escravagista através de imagens viscerais, como em “levar um negro ao tronco / e cuspir-lhe na cara”, “a cor da pele / chicoteada / e cuspida”, “o preto de alma branca / e seus culhões de cachorro” e “sua voz falida / portas adentro”. (Ventura, 1980, n.p.).

Adão Ventura se destaca também por exibir uma ocorrência fronteiriça na experiência identitária-cultural do indivíduo preto em que, de um lado do polo, lemos versos como “eu, / pássaro-preto”, “eu-zumbi” ou “monto guarda / na porta dos quilombos”. Já por outro ângulo, lemos: “o preto de alma branca/ e seu cagar na saída” e “levar um negro ao tronco / e currá-lo no lixo”. (Ventura, 1980, n.p.).

Em plena década de comemoração de 100 anos da abolição da escravatura, num país assolado pelo mito da democracia racial, pelos entraves da ideologia da cordialidade, pelas políticas militares, paternais e pelos sentimentos humanitários enquanto modo de representação que encobre a absurda sobre-realidade sobre-vivida pelo negro no Brasil, o texto escrito por um sujeito negro-brasileiro, como uma intrusão, registra poeticamente um discurso outro mobilizando uma diversidade de estratégias de elaboração textual e de modulação temática.

Diante disso, este artigo pretende na próxima seção focalizar o poema UM, publicado neste livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais e postura de negritude engajada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.

Lendo “UM” poema negro de Adão Ventura

em negro

teceram-me a pele.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África.

 

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

 

mas o meu sangue

está cada vez mais forte,

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Debruçamos, então, na análise e interpretação do poema intitulado “UM”, inserido cirurgicamente na seção “Das Biografias”. A composição em estudo, com as suas três estrofes, engloba de alguma forma e ao seu estilo o que abordamos nas seções anteriores, dado que aponta para a literatura do negro, o qual, deliberadamente, conecta sua negrura identitária e cultural a um projeto crítico e criativo de escrita poética em que estratégias textuais e literárias são mobilizadas na órbita de um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro.

Em pesquisa, o professor Gustavo Tanus de Souza, estudioso da obra de Adão Ventura, apresenta uma orientação eficaz para a leitura do poema em questão na medida em que, nesta composição, o poeta afro-mineiro:

[...] transforma em matéria poética a cor negra da pele, expondo por processos metonímicos e metafóricos as reduções preconceituosas e racistas que o corpo negro recebeu como ‘herança’ do sistema escravista, estruturante de relações que ainda hoje são problemáticas. (Souza, 2017, p. 48).

 

O poema inicia com os seguintes versos: “em negro / teceram-me a pele”. Adão Ventura expressa, mesmo que simbolicamente, a intenção da sua pesquisa poética de atrelar ao poema as posturas discursivas da negritude referentes aos questionamentos identitários-culturais da pessoa negra e que implicam duas valências de compreensão contundentes.

A primeira é a constatação de que é o branco que concebe o negro enquanto sujeito torpe posicionando-o na zona do não-ser. Dessa maneira é que o vergalhão da baixa estima, da inferioridade, seja esta subjetiva ou socioeconômica, atravessa a experiência identitária e cultural do mundo negro, expondo, sobretudo, sua condição de excluído do pleno exercício da cidadania. No verso, a flexão pretérita junto ao pronome em teceram-me baliza essa perspectiva de um corpo que sofreu algum tipo de ação.

Já no que tange a outra valência, cabe ao negro a dificílima postura de resistência e de desassimilação para tornar visível sua existência por meio da afirmação de seu corpo e de suas subjetividades, como também envolve a interpretação da sua cultura, da sua condição socioeconômica, política e histórica.

Diante desses dois versos iniciais do poema “UM”, observamos que “assumir a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um de seus marcadores estilísticos mais expressivos” (Bernd, 1988, p. 22). Por isso, a pronomização para o poeta negro determinar uma lírica outra enquanto lugar de dizer aquilo que é incômodo, coibido e, também, por representar o lugar do dizer daqueles que são coibidos do dizer e do sentir.

A situação do negro requisita, portanto, uma ruptura. Irrompida essa atitude, é na revolta que se torna viável a interpretação de que a solução dos problemas corresponde a questionar implicitamente as obstruções que impedem os negros de ingressarem na categoria genuína de pessoa (Munanga, 2020). É de se destacar ainda a dificílima recusa das ofertas de assimilação dos valores brancos que também perpassa a experiência negra de liberação e da sua reconquista e reinterpretação.

E o poema segue seu discurso, apresentando na mesma estrofe argumentos cabais que suplementam a experiência identitária engatando-a na perspectiva cativa.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África [...].

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Observemos como o processo de adjetivação simples de um termo, correntes, que abrange na sua morfologia toda uma atrocidade racial, conecta a experiência identitária não estanque do negro à escravatura.

Ainda, com o uso do indicativo em amarram-me, o poeta atualiza a imagem visceral e humilhante de um negro-brasileiro ainda reduzido diante dessas enormes correntes.

Para Jussara Santos (1998), pesquisadora da poética de Adão Ventura, nestes versos o autor mostra que o lugar da marginalidade ainda continua sendo conferido ao indivíduo negro e que a cor da pele permanece delimitando espaços de clausura. Diante disso, tem-se a possibilidade de os vocábulos cor, corrente e tronco expressarem um mesmo sentido de aprisionamento e violência nessa estrofe.

A consciência afrodiaspórica de Adão Ventura é cirúrgica nesta segunda estrofe, na medida em que sugere a leitura mais atenta acerca do empreendimento escravagista, em que o poeta dispõe sua voz consciente que pertence a essa comunidade pretérita, sendo solidário a ela e, também, consequentemente, observa a situação atualizada do negro-brasileiro diante dessa Nova África em que ele, também, se encontra amarrado.

Cabe reforçar na leitura dessa estrofe a seleção lexical bastante modesta escolhida por Adão Ventura na tessitura de um discurso direto, conciso e complexo, registrando, por essa via, um texto-da-diferença, que acaba por operar um descentramento dos padrões hegemônicos do pensamento cultural, racial, político, literário e erudito difundidos neste país.

Partindo agora para o segundo bloco de estrofação do poema, deparamo-nos, novamente, com a flexão verbal e o pronome. Diante de mais essa ocorrência, convém, então, ressaltar o teor social da lírica de Adão Ventura mediante um conceito de lírica que não se esgota na subjetividade (Adorno, 2003), mas que trata de uma composição lírica preta que se dispersa e se incorpora a um todo e tem expectativa de extrair da mais restrita individuação a preocupação comum, apontando que essa universalidade e essa solidariedade do teor lírico são visceralmente sociais.

Então, aqui nessa segunda estrofe em que Adão Ventura quer falar de todos ou por todos, mas de acordo com a sua sensibilidade (Pereira, 2008, p. 140-141), é o racismo contra a comunidade negra que atravessa a experiência. O poeta oferece, por meio da estrofe, ângulos alternativos de compreensão da discriminação e o que esta implica no processo de afirmação identitária e cultural da pessoa negra-brasileira.

 

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

(Ventura, 1980, n.p.).

 

 

Lemos a criativa e crítica imagem do poeta carregando consigo a projeção de uma sombra diante de longos muros, em que a sombra é a ressemantização da própria pele negra diante do muro que é o racismo cotidianamente obstruindo alguma locomoção.

Temos nesta imagem o trânsito entre o literal e o figurativo, entre o factual e ficcional e, sobretudo, a metonímia biográfica concernente a toda uma comunidade vítima de um processo em que a cor da pele é indicação de descendência africana, mas também determina o foco do preconceito racial nas sociedades (Hasenbalg, 1979), sedimentando aos extratos sociais as segmentações etnicorraciais e condicionando o destino de gerações de negros e negras.

Ainda enfatizamos o processo de adjetivação dessa segunda estrofe em que o termo longos realça o caráter recorrente do emparedamento que implica os muros do racismo. Essa imagem metafórica sublinha com precisão que a urgência do eu enunciador negro e a linguagem verbal firmam um entendimento de que o texto poético “serve para manter vivos e eficazes os mecanismos humanos de percepção do universo, de pensamento e de fala; que a poesia pode servir para atender as necessidades metafísicas, místicas e míticas do ser humano” (Faustino, 1977, p. 277-278). Já o crítico literário Alfredo Bosi (2000) observa a poesia orbitando os signos do apelo, da denúncia e da comunhão, assim, por meio dessa segunda estrofe aparentemente simples, é possível que a linguagem da poesia e a consciência de negritude agenciem, de alguma forma, intenções insurgentes parecidas.

Percebemos, portanto, que as estratégias literárias que a estrofe abarca indicam o manejo do poeta com a linguagem e sublinham o comportamento da escrita de Adão Ventura em constituir esteticamente veículos para significar a discriminação e a segregação.

Convém realçar nessa segunda estrofe a pressão que o poeta exerce sobre o tecido dérmico, esticando essa instância superficial em um signo que aciona o debate racial e revela que “algo de mais profundo ainda permanece na cor da pele” (Santiago, 1982, p. 122).

Já na terceira e última estrofe do poema, após expor questões referentes aos conflitos da identidade cultural, a escravatura e a denúncia contra a discriminação racial, o autor inicia o verso com uma conjunção adversativa que intensifica o processo de interpretação da sua personalidade negra em que deixa transparecer sinais e possibilidades de deslocamentos.

mas o meu sangue

está cada vez mais forte

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Em seguida, atrela-se à memória familiar essa instância fulcral para os empreendimentos de amputação de horizontes históricos.

 

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis.

(Ventura, 1980, n.p.).

 

Adão Ventura está no fluxo dos posicionamentos da pesquisadora Maria Nazareth Fonseca (2007, p.108) que, em artigo, acentua que a memória e as lembranças de fatos do passado percorrem os espaços da intimidade dos enunciadores para trazer à escrita modos diversificados de apreensão do mundo.

Nessa estrofe do poema, é através do referencial negro e ancestre dos avós, Teodoro da Fazenda e Dona Justina, que o autor suplementa sua experiência reforçando ainda mais seu horizonte de vínculos, redes e pertencimentos, destacando, assim, que um dos caminhos para ler Adão Ventura procede do forte sentimento de individualidade que identifica o eu em meio à coletividade(Pereira, 2008, p. 140). Nesses versos, o pronome pessoal espalha/dispersa até outros membros da sua prole, e é através deles que o autor reconfigura um horizonte histórico amputado, desintoxica sua biografia, afirma sua identidade, solidariza-se com os seus e contesta um processo bestial.

Adão Ventura, ainda nessa última estrofe, permite leituras a contrapelo, por meio da metáfora deplorável, em que há, por um lado, a subserviência dos corpos negros subalternizados e, do outro, o regozijo dos palácios e dos reis mantido através da barbárie racista sobre aqueles. É válido destacar novamente a figura ancestre e estratégica dos avós nessa estrofe, enquanto fio que conduz para a contranarrativa, que colide contra a versão oficial da história divulgada pelo mundo ocidental.

Nessa estrofe, podemos interpretar mais uma postura preta descentrada de Adão Ventura em considerar um monumento da cultura colonial como produto de exploração e de opressão (Benjamin, 1985), assim como colocar em relevo os indivíduos explorados nesta conjectura. Posto isso, podemos constatar, nesse bloco final, uma estrutura, ou forma, em que se tem os avós negros, essa corveia anônima carregando as imensas pedras e, do outro lado, a edificação dos palácios dos reis cumprindo a função de celebrar a exploração e o triunfo.

Considerações Finais

Em suma, as três estrofes do poema “UM” proporcionam, para a literatura brasileira e para prática leitora, uma pesquisa que tensiona poética e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar, sustentando a hipótese que essa composição representa uma fatura autêntica de poesia negro-brasileira, em que observamos, por meio da análise e da interpretação, a performance de um poeta assumidamente negro e que, diante do jogo textual e poético, opta pela habilidade de enunciar pontos de vista descentrados, desassimilados, contestatórios, polêmicos e sensíveis acerca da situação e da condição do preto-brasileiro, por meio de uma mobilização lexical simples, que não obstrui o acesso à compreensão e à complexidade das imagens e das metáforas elaboradas.

Referências

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NOTAS

 

[1] Matheus José é discente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Colaborou no inventário arquivístico do poeta Adão Ventura como bolsista no Acervo dos Escritores Mineiros/FALE/UFMG. Autor dos livros: A cachoeira do poema na fazenda do seu astral, Selo Tomate Seco, 2013; Poemas na galáxia pupila, Editora Urutau, 2016; Utensílios de resiliência e flutuabilidade, Editora Primata, 2017; Poema ou pomar em meio ao caos, Editora Primata, 2021.

 

[2] Cadernos negros v.1 (São Paulo, Edição dos autores, 1978), poemas de Luís Silva (Cuti), Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Angela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, Celinha e Oswaldo de Camargo.

 

[3] Abdias Nascimento (1981, p. 22) menciona Adão Ventura, Oswaldo de Camargo, Cuti, Oliveira Silveira e Oubi Inaê Kibuko.

 

TEXTO PARA DOWNLOAD

 

Prefácio a 15 poemas negros1

Florestan Fernandes*

 

Ignoro as razões que levaram Oswaldo de Ca­margo a dar-me o privilégio de prefaciar a presente coletânea de poemas. Não sou crítico literário. Tam­pouco tenho competência ou sensibilidade para apre­ciar judiciosamente sua produção poética. Considero a crítica literária uma especialidade complexa e difí­cil, que exclui a improvisação e requer não só talento e bom gosto, mas sensibilidade, erudição e imaginação criadora. Sendo evidente que não reúno essas condi­ções (pelo menos em relação à capacidade de ser crí­tico literário...), entendi que o convite se endereçava ao sociólogo, algum tanto conhecedor da situação do negro na sociedade brasileira. Às vezes, uma condi­ção exterior à obra de arte pode ser significativa pa­ra a sua compreensão e interpretação. Talvez o autor procurasse, portanto, alguém que pudesse "explicar a sua poesia à luz de sua condição humana das in­fluências e motivações psicossociais que ficam por trás da sua maneira de ver e de representar, poetica­mente, emoções, sentimentos, aspirações e frustrações que poderiam ser entendidas como parte da ex­periência de vida do negro brasileiro.

Todavia, ao ler e reler Um homem tenta ser anjo (1959) e as poesias colecionadas nesta obra, chego à conclusão de que Oswaldo de Camargo é, essencial­mente, um poeta. O fato de ser negro tem tanta im­portância quanto outras circunstâncias (como a de ser brasileiro, católico marcado por experiências mís­ticas singulares etc.). O que conta, em sua obra, é a poesia. Embora ela exprima, em várias direções, a con­dição humana do seu criador, sobre ela e não sobre outras coisas deveria falar o seu intérprete. Ora, fale­ce-me autoridade para isso. Um poeta jovem, que vem de uma estreia recente, pretende algo mais que uma “apresentação” convencional: espera que o apre­sentador diga aos outros o que ele próprio sabe acer­ca de seus versos, de suas intenções e do sentido de sua poesia. Nada que me sentisse capaz de fazer, pelo menos com justiça, propriedade e o devido respeito pelo autor, pelo público e por mim mesmo...

Abriam-se diante de mim dois caminhos. Um, o de lamentar as limitações da nossa celebrada “forma­ção humanística”. Bem mal vai um país no qual um professor universitário treme diante das responsabili­dades do juízo estético. Não é só o padrão de educa­ção que entra em jogo. É todo um sistema de vida in­telectual que sofre um impacto negativo. Penso, em particular, na negligência dos críticos especializados, que só existem para os produtores de arte de prestígio consagrado, subestimando ou negligenciando a ener­gia moça pela qual se processam a afirmação e a re­novação das grandes ou das pequenas literaturas. O segundo caminho seria o de avançar os resultados de minhas modestas reflexões. Os que não podem con­centrar-se na própria medida do raciocínio poético já dão algo de si indicando o que percebem, o que sentem e pensam. Por consideração especial pelo au­tor, não me neguei a isso. Acho sinceramente, porém, que ninguém lucrará nada com ideias tão minguadas de verdadeiro teor crítico.

Em uma civilização letrada, o poeta representa um dos produtos mais complicados do condicionamento educacional, intelectual e moral. É um con­trassenso pensar-se que o negro brasileiro encontre na poesia (como em outros campos da arte) veículos fáceis de autorrealização. Há toda uma aprendizagem técnica, difícil de conseguir-se e de completar­-se. Vencido esse obstáculo, erguem-se as verdadei­ras barreiras humanas, que estão dentro e fora do próprio negro. De um lado, temos as contingências de um meio intelectual ainda mal polido e parca­mente aberto às aventuras da inteligência criadora. Ele se fecha com facilidade, movido por molas que as convenções escondem ou disfarçam, especialmente diante das ocorrências que fogem às normas e à roti­na. O produtor de arte negro é, em si mesmo (isto é, independentemente da qualidade e da significação de sua poesia ou seja lá o que for), uma aberração de todas as normas e uma transgressão à rotina, num mundo organizado por e para os brancos. De outro lado, acham-se as fronteiras que nascem da situação humana do negro na sociedade brasileira. Pode-se imaginar que existem várias gradações na linguagem poética e que a poesia não seja incompatível com ne­nhuma situação humana, reconhecível objetivamen­te. Embora isso pareça incontestável, só a força de um gênio permite superar as limitações sufocantes das barreiras que anulam o próprio sentido da dignidade do eu, aniquilando pela raiz as impulsões criadoras da inteligência humana. Em consequência, os "poe­tas negros" do Brasil caem, grosso modo, em duas categorias extremas. Ou são réplicas empobrecidas do "poetastro branco", ou são exceções que confir­mam a regra, ou seja, episódios raros na história de uma literatura de brancos e para brancos, o que se po­deria exemplificar, em relação à poesia, com uma fi­gura tão conhecida corno a de um Cruz e Sousa. Não existe uma vitória autêntica sobre o meio. A "inteli­gência negra" é tragada e destruída, inapelavelmen­te, antes de revelar toda a sua seiva, como se não im­portasse para o destino intelectual da nação.

A produção poética de OswaIdo de Camargo sus­cita, em termos dessas ponderações, novos ensina­mentos. Ela foge ao primeiro extremo e evita, apesar das qualidades visíveis do poeta, o segundo, demons­trando que o negro intelectual, liberto dos precon­ceitos destrutivos do passado, tende a identificar sua condição humana, e extrair dela uma força criadora quase brutal e desconhecida, bem como a superar-se pela consciência da dor, da vergonha e da afronta moral. Em outras palavras, começa a delinear-se uma poesia negra e dela constitui uma floração rica e exem­plar a presente coletânea. Mais que sobre qualquer outra coisa, é sobre essa poesia que gostaria de medi­tar, servindo-me da oportunidade que os versos de Osvaldo de Camargo me oferecem.

Na medida em que expressa a condição humana do negro no Brasil, essa poesia afirma-se como uma poesia de ressentimento e de profunda humilhação moral. Não evidencia apenas desalento e mortifica­ção: a depreciação social da cor atinge o equilíbrio da pessoa, convertendo o poeta na voz do drama psico­lógico de uma coletividade. Já no livro anterior (Um homem tenta ser anjo), sente-se o tom acre e soturno do protesto negro:

Meu Deus! meu Deus! com que pareço!?
Vós me destes uma vida, Vós me destes
e a não consigo levar...
Vós me destes uma alma, Vós me destes
e eu nem sei onde está...
Vós me destes um rosto de homem,
mas a treva caiu
sobre ele, Deus meu, vede que triste,
todo preto ele está 2


Mas é nos poemas desta coleção que o referido protesto atinge seu clímax, desvendando toda a amargura triste e revoltada de brasileiros que se envergonham de ser gente:

Recolho o pensamento e me debruço
nesta contemplação, assim me largo...
E, preso ao ser que sou, soluço e babo
na terra preta de meu corpo amargo...

(Excerto de "Canção amarga")

 

Deslembrado de mim, me recordei:
folha no chão, estrume, antigo som
de fonte e sobre a preta face
essa tristeza que sempre haverei...

(Excerto de "Relembrança")

 

Quem vos disse, senhores, que pareço
em desespero com qualquer rapaz?
Se me amargo a contemplar-me, sou
a luta entre o ser nada e o ser demais...

(Excerto de "Pergunta")

 

Profundamente em mim uma lâmina se enterra...
Se enterra e não vale recuo, nem o meu grito breve
às horas rubras desta tarde de hoje...
[...]
Já não sei que fazer para alegrar minh'alma!
E é preciso sofrer para salvar meu sonho!

(Excerto de “Profundamente”)

 

Não sei meu rumo nesta rude terra,
nem sei a que destino me consagro...

(Excerto de "4 sequências, III")

 

Pelo amor das lindas horas
em que sonhais só co' o amor,
parai um pouco, senhoras,
somos os homens de cor,
que vêm tecendo coroas
de tristezas pela estrada...
Voltamos de muitas noites,
há noite dentro de nós,
pelo amor dos que vos amam,
escutai a nossa voz!
[...]
Encontramos a esperança
toda em pranto debulhada...
E nos perdemos na noite,
não achamos a alvorada;
queremos subir na vida,
não encontramos a escada...
E estamos diante de vós,
pranteando o não sermos nada...

(Excerto de "A modo de súplica")

 

Eu conheço um grito de angústia,
e eu posso escrever este grito de angústia,
e eu posso berrar este grito de angústia;
quer ouvir?
"Sou um negro, Senhor, sou um... negro!"

(Excerto de "Grito de angústia")

Tentei multiplicar os exemplos de propósito. Sob várias facetas, eles nos mostram o negro torturado por avaliações que decorrem da aceitação de uma imagem do próprio negro construída pelo branco. As contradições, as ansiedades e as frustrações, expres­sas com tamanha autenticidade poética por Oswaldo de Camargo, emergem da mesma matriz. Avaliando­-se através de critérios de julgamento e de expectati­vas morais recebidas do branco, o drama de ser negro corresponde, literalmente, à impossibilidade de afir­mar-se em um mundo moldado pelos brancos e para os brancos. Desde a infância, o negro é modelado para viver nesse mundo, como se não houvesse diferenças entre negros e brancos; mas as portas fecham-se diante dele, quando tenta atravessar os tortuosos corredores que conduzem a tal fim. Existe, pois. um "brancor" no negro, o qual só pode ser reconhecido e é válido como estado subjetivo do espírito:

Rosa, rosa, o meu brancor existe,
mas inexiste e meu corpo chora;
rosa, meu pensamento existe,
mas existe e meu corpo sofre...
Percebo o brancor que em mim existe
irrevelado e isso me faz triste...
Quero ser ave!
O azul sei que existe...
Ah, minha alma, chora! 
3


Daí resultam contradições morais. A brancura e a infância surgem como obcecações que traduzem
valores supremos:

Eu vi de branco a menina e esse sonho
jamais me escapou...
E meus dedos sem visgo em vão tentaram
sustar do sonho névoa e brevidade...
E não sei que eco de orfandade
lembrou-me então a mim que eu estava só,
só como o sonho que era único:
branca menina de sandálias brancas...
Como tudo era branco, branco, branco!
E quando me revi estava só...
E minha vida estava branca, branca, branca, 
como meu primeiro caderno de escola...

(Excerto de "Um homem tenta ser anjo")


Ah!
que medi muito mal a distância da vida,
e julgara comigo: "hei de ir muito longe",
mas tombou sobre mim uma idade imprecisa
e eu invejo agora o menino que fui.

Eu invejo agora o menino que fui,
leve, andando nas pedras de tantas montanhas;
e, porque me tornei tristemente um homem,
para breve serei uma sombra, só sombra.

Muitos restos de mim larguei já pelas ruas;
infelizmente me gastando vou...
numa esquina qualquer muitas mortes me esperam,
e eu espero também qualquer morte que venha... 

(Excerto de "Ronda")

Ambas, a brancura e a infância, constituem po­larizações centrais em sua poesia. Uma, como expres­são do mundo vedado objetivamente ao negro, embora acessível pela participação subjetiva. Outra, como fase da vida em que as proibições são menos drásticas ou passam despercebidas.

O drama psicológico e moral do negro, sentido e descrito nesse plano, em que o ego aprofunda as con­tradições e as hipocrisias da "democracia racial brasi­leira", não consubstancia um estado de marginalida­de nem uma atitude de rebelião. Eventualmente, o "brancor" chega a ser desmascarado:

                    Tenho em meus gestos um rebanho inteiro
                         de atitudes brancas, sem sentido,
                     que não sabem falar...
                 
                   (Excerto de "A manhã")

Contudo, o jogo dos contrastes evoca a manhã e a noite em termos da oposição entre o branco e o ne­gro. Não há o desafio moral da escolha nem o apego ambivalente à herança cultural do negro ou do bran­co; trata-se do universo mental que o negro se cons­truiu, no qual ele deveria ser uma coisa, mas é outra:

Eu penso que a manhã não interpreta bem
a superfície escura desta pele,
que pássaro nela vai pousar?

Ai da tristeza de meu corpo, aí,
o pássaro conhece a manhã,
e sabe que é branca a manhã,
mas não ousa enterrar-se de novo
na noite...
[...]
Eu, no entanto, permaneço ao lado
da manhã e das cantigas...
A noite, a grande noite está pousada em mim
escandalosamente!

(Excerto de "A manhã")

O que subsiste, pois, é o desalento ressentido, que transparece melhor onde se afirma uma ligação espiritual com os ancestrais africanos e escravos:

Meu grito é o estertor de um rio convulso...
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito...
[...]
Meu grito é um espasmo que me esmaga,
há um punhal vibrando em mim, rasgando
meu pobre coração que hesita
entre erguer ou calar a voz aflita:
ó África! Ó África!
Meu grito é sem cor, é um grito seco,
é verdadeiro e triste...
[...]
Por que é que grito?

(Excertos de "Meu grito")


Em suma, o negro não repudia nada — nem a ex­
periência ancestral, nem o universo criado pelo bran­co, nem a condição humana que nele encontra. A sua revolta nasce de uma injustiça profunda e sem remédio, que só ele sente por ser posto à margem da vida e da justiça humanas, vítima de um estado ex­tremo de negação do homem pelo homem. Em nome de um código ético rude e egoísta, o branco ignora as torturas, os conflitos e as contradições que cimentam sua concepção "cristã", "cordial" e "democrática" do mundo, condenando à danação todos os negros que aceitem com integridade e ascetismo essa mesma concepção do mundo, com suas opções e valores morais.

Ainda é cedo para emitir juízos definitivos sobre essa poesia negra, associada à liberação social progressiva do branco e do negro na sociedade urbana e industrial brasileira de nossos dias. Dois pontos, todavia, poderiam ser aprofundados. Primeiro, na sua forma atual, fixando o drama moral do negro de um ângulo meramente subjetivo, ela não transcende nem mesmo radicaliza o grau de "consciência da situação" inerente às manifestações iletradas do protesto negro. É certo que ela expõe as coisas de maneira mais grandiosa, chocante e pungente. Diante dela, até os relutantes ou os indiferentes terão de abrir os olhos e o coração: há torpezas sem nome por detrás dos iníquos padrões de convivência que regulam a integração do negro à ordem social vigente. No entanto, essa mesma poesia se mostra incapaz de sublimar atitudes, compulsões e aspirações inconformistas, que a poderiam converter numa rebelião ativa, voltada para o processo de redenção social do negro. Segundo, ela se divorcia, de modo singular, dos mores das populações negras brasileiras. Por enquanto, a poesia que serve de veículo ao protesto negro não se vincula, nem formal nem materialmente, ao mundo de valores ou ao clima poético das culturas negras do Brasil.

As duas constatações possuem amplo interesse. Elas não pressupõem nenhuma sorte de restrição ao nosso poeta ou ao tipo de poesia que se procura cultivar com vistas ao drama humano do negro. Mas revelam de forma expressiva o poder de condicionamento externo da obra de arte. Se o "meio negro brasileiro" tivesse um mínimo de integração, os dilemas morais descritos poderiam ser focalizados à luz de experiências coletivas autônomas. Existiriam conceitos e categorias de pensamento que permitiriam apreender a realidade sem nenhuma mediação ou alienação, através de sentimentos, percepções e explicações estritamente calcadas nos modos de sentir, de pensar e de agir dos próprios negros. Na medida em que o negro, como grupo ou "minoria racial", não dispõe de elementos para criar uma imagem coerente de si mesmo, vê-se na contingência de ser en­tendido e explicado pela contraimagem que dele faz o branco. Mesmo um poeta negro do estofo de Oswaldo de Camargo não escapa a esse impasse, de enorme importância histórica: até onde ele perdu­rar, o negro permanecerá ausente, como força social consciente e organizada, da luta contra a atual situa­ção de contato, sendo-lhe impossível concorrer efi­cazmente para a correção das injustiças sociais que ela encobre e legitima.

Já o segundo ponto tem mais que ver com a di­nâmica da criação literária. Os padrões de produção artística e de gosto literário imperantes aboliram, lar­gamente, o influxo contínuo e produtivo das heranças culturais de que foram portadores estoques étnicos ou raciais considerados como “inferiores”. Ao aderir a tais padrões, o artista acaba sacrificando, sem o saber, riquezas potenciais insondáveis, algumas ligadas às suas energias pessoais, outras vinculadas à influência do ambiente social imediato. Um simples paralelo per­mitiria ilustrar claramente o que pretendo dizer. To­me como exemplo o futebol: em sucessivas gerações sempre contamos com alguns “magos da pelota” ne­gros e através deles conseguimos enriquecer gradati­vamente a nossa “arte de jogar”. Em grande parte, isso se deve à liberdade de expressão conferida ao jo­gador negro, que não encontra réplica na esfera da produção artística, sufocada por preconceitos de vá­rias espécies ou se elimina o concurso do negro e o aproveitamento de sua contribuição criadora, ou se estiola sua capacidade de renovação, submetendo-o a um processo de reeducação que o transforma, sem nenhum sarcasmo, em um escritor branco de pele preta. Embora não devamos levar o paralelo com o futebol longe demais, o que parece aconselhável seria uma reação positiva, pela qual o intelectual negro (e como ele qualquer intelectual identificado com determinada parcela da heterogênea civilização brasileira) repudiasse os freios que o isolassem do éthos de sua gente. Certas perdas culturais são irrecuperáveis; perdemos o poeta negro que recriava as tradições poéticas tribais. Todavia, precisaríamos perder também a própria faculdade do poeta negro de exprimir-se, através de sua poesia, como e enquanto "negro"? Se se desprendesse da tutela total do branco, é presumível que o escritor negro brasileiro estaria em condições de contribuir melhor para o enriquecimento da nossa literatura.

Um poeta da envergadura de Oswaldo de Camargo, se persistir em aperfeiçoar-se e em trabalhar duramente, poderá marcar com sua presença tanto os movimentos sociais e culturais do meio negro quanto a renovação de nossa poesia. O "grande homem de cor" torna-se, em si mesmo, cada vez menos importante em nossa sociedade. Em compensação, os frutos de sua contribuição pesam cada vez mais no fluxo da vida humana. Ninguém melhor que um poeta para revitalizar as aspirações igualitárias, um tanto adormecidas atualmente, que orientaram os grandes movimentos sociais negros da década de 1930. Ninguém melhor que um poeta para sugerir novos ru­mos no aproveitamento construtivo das energias in­telectuais dos “talentos negros”. Fala-se muito que vivemos numa era pouco propícia à poesia. Não obs­tante, o poeta conserva o fascinante prestígio que ad­vém da magia da palavra, indissoluvelmente associada à linguagem e ao raciocínio poéticos. O seu exemplo não só se propaga, como também cala fun­do. Isso é tão verdadeiro hoje como o foi no passado, embora muitos ignorem que não existe civilização sem poesia.

A questão está na qualidade da poesia. Em re­gra, o poeta negro brasileiro tende a entregar-se ao fascínio pela poesia de efeito dramático. A poesia de auditório, que adquire viço e arrebata os corações quando se atualiza através de um recital, com acom­panhamento ao piano. Aqui e ali Oswaldo de Camar­go fez concessões a esse tipo de poesia, enrijando-a com a substância crua da verdade e com sua admi­rável intuição poética. Malgrado o êxito invariável dessas composições, nas reuniões intelectuais das as­sociações culturais negras, elas estão longe de justifi­car as preferências que merecem. Os caminhos que unem a redenção social do negro à emancipação in­telectual do Brasil repousam sobre processos civilizatórios que reclamam uma poesia suscetível de inspi­rar e dirigir a ânsia de aperfeiçoamento contínuo do homem. Ela transparece em muitos versos e em al­guns poemas de Oswaldo de Camargo, principalmen­te naqueles em que o protesto negro encontra eco mais sentido e profundo. Se ela se tornará mais participante e militante, ou não, é impossível prever. Tudo depende do interesse que o poeta tiver pelos problemas humanos de sua gente e do sentido que imprimir, em função disso, às suas atividades criadoras. De minha parte, gostaria imenso que ele completasse o círculo de sua evolução intelectual, arrostando os ângulos inexplorados do protesto negro e libertando-se de influxos que ainda retém suas produções poéticas no limiar das experiências humanas do negro brasileiro.

Notas

1. Nota presente na edição de 30 poemas de um negro brasileiro (2022): texto publicado na primeira edição de 15 poemas negros, lançada em 1961 pela Associação Cultural do Negro. A obra é reproduzida integralmente neste livro, acompanhada de poemas presentes em O estranho (1984) e na antologia Luz & breu (2017).

2. Oswaldo de Camargo, Um homem tenta ser anjo. São Paulo: Supertipo 1959, p. 55.

3. Oswaldo de Camargo. Um homem tenta ser anjo, op. cit., p.73.

Referências

CAMARGO, Oswaldo. 15 poemas negros. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Associação Cultural do Negro, 1961.

CAMARGO, Oswaldo. O estranho. São Paulo: Roswita Kempf, 1984.

CAMARGO, Oswaldo. Luz & breu: antologia poética 1958-2017. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2017.

CAMARGO, Oswaldo. 30 poemas de um negro brasileiro. Prefácio de Florestan Fernandes. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

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* Intelectual orgânico, Florestan Fernandes (1920-1995) marca presença na história das Ciências Sociais brasileiras como um de seus mais destacados pensadores, sobretudo no tocante às questões raciais que marcam o período pós-abolição. Dentre suas publicações, destacam-se Brancos e negros em São Paulo (1959, coautoria Roger Bastide), A integração do negro na sociedade de classes (1964), O negro no mundo dos brancos (1972), A revolução burguesa no Brasil (1974) e O significado do protesto negro (1989).

 

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Ponciá Vicêncio e Conceição Evaristo, irmãs siamesmas?*

 

Ronald Augusto1


O movimento interrupto de uma vontade objetiva em direção ao mundo subjetivo de um ser de ficção. O insucesso do verismo. Em outros termos, proponho uma leitura que admite a seguinte premissa: há, de um lado, a pessoa civil Conceição Evaristo e, de outro, a personagem Ponciá Vicêncio. Entre ambas, como que mediando e interpretando as conjunções e disjunções dessa relação menos real do que ficcional, emerge o
ego scriptor, isto é, essa coisa que, na ausência de melhor definição, poderia ser referida como o agente de uma poética, algo que existe ou que acontece apenas quando o processo narrativo se atualiza em linguagem.

No paratexto à obra, Falando de Ponciá Vicêncio..., Conceição traduz essa ideia como “o ato da escrita”. O ego scriptor de Conceição Evaristo funciona como uma entidade que existe apenas enquanto performatiza um discurso estético-literário. O agente do ato da escrita existe no imediato fazer. Enquanto faz linguagem ele se faz a si mesmo: a esse ego scriptor só importa o durante. Antes e depois, são categorias nas quais o ato da escrita não se enquadra. Vejamos como a escritora considera esse momento crucial da experiência poética em que sua condição empírica como que se se transforma em outra coisa:

 

Resolvi então ler a história da moça. Ler o que eu havia escrito. Veio-me à lembrança o doloroso processo da criação que enfrentei para contar a história de Ponciá. Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. (EVARISTO, 2023, p. 7)

 

Não temos conhecimento sobre o que significa no processo de criação isso que a escritora identifica como “doloroso”. Por que, afinal de contas, é doloroso? Será, talvez, porque o agente do ato da escrita – que não é nem propriamente Conceição Evaristo, nem Ponciá Vicêncio – acaba revelando a existência de uma disjunção efetiva entre elas? Em outros termos, que elas, ao fim e ao cabo, não formam uma unidade? A bem da verdade, é possível que nenhum desses três seres venham um dia a se encontrar de modo seguro. Às vezes (dialética entre disjunção e conjunção) “o choro da personagem” se confunde com o da autora; às vezes.

A relação quase inextrincável entre Conceição e Ponciá, reiterada a ponto de me fazer lembrar a palavra-montagem siamesmas**, indica uma outra forma de identificação ou de semelhança que parcela da recepção, a partir do conceito de literatura negra, estabelece entre o autor empírico e a voz do poema ou o narrador-personagem romanesco. Quando Conceição Evaristo autografa, ao modo de um ato-falho, seu relato como Ponciá Vicêncio, o que estamos testemunhando é, em alguma medida, a vitória da noção segundo a qual a chamada autoria negra se trata de uma literatura por meio da qual o leitor se depara com a verdade crua das vidas negras encarnadas em texto. Em outras palavras, temos assim o conceito de escritor negro e a obra realizada como coextensividade de sua presença empírica no mundo. Literatura como imediato sucedâneo do real. E o leitor, enquanto personagem implícito da narrativa ou das imagens do poema, aspira a enxergar-se a si mesmo no espelho da linguagem que, mais ao fundo, parece também enquadrar um trecho do real ou da experiência social.

Ponciá Vicêncio é um personagem de ficção que acha sua justificação nos transes e prazeres surgidos da tensa interação entre Conceição e a outra – algo que se faz como ato da escrita. Conceição e seu ego scriptor aqui e ali litigam pela autoria de Ponciá. Ponciá Vicêncio, num primeiro momento, é salva por Evaristo do sumidouro da vida empírica quando rememorada, quando reinventada, mas pouco a pouco o agente do ato da escrita converte Ponciá numa metáfora arrancando a moça do parentesco com Conceição Evaristo.

Conceição Evaristo e seu ego-scriptor (espécie de disposição para a imaginação poética) se imiscuem e se dissipam na personagem Ponciá Vicêncio. Ponciá mimética, molda em barro a figura do avô de braço cotoco; e pequena encolhe o bracinho performando a linguagem corporal do avô, ou como se fosse o receptáculo para o espírito do antepassado, Ponciá investe na introspecção, no discurso íntimo, involucrado.

A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. Falava pouco e quando falava, às vezes, dizia coisas que ele não entendia. Ele perguntava e quando a resposta vinha, na maioria das vezes, complicava mais ainda o desejo de diálogo dos dois. Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele espantado perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que ele poderia lhe chamar de nada. (EVARISTO, 2023, p. 19)

 

Ponciá Vicêncio é sequestrada pelo ato da escrita e aos poucos começa a incorporar os vezos de (ou da) narradora que lhe empresta tanto as possibilidades como os limites da existência de um personagem de ficção. A introspecção faz de Ponciá objeto do ego scriptor de Conceição Evaristo. A introspecção é metalinguística: o personagem-ser de ficção, como metáfora da narradora Conceição Evaristo, segue abrigado entre as capas do livro e enquanto dure a leitura. Sua existência além das margens onde o papel é cortado não se desdobra na vida prática da escritora, mas apenas na esperança e no desejo do leitor que não aceita o desaparecimento de Ponciá ou o próprio desaparecimento no momento em que a narrativa se encerra e volta à estante para se transformar em um volume entre outros.

Referência

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 4. ed. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2023.


Nota

O poeta Augusto de Campos usa “irmãos siamesmos” para se referir ironicamente à maneira insistente como críticos ou admiradores juntavam seu nome ao de seu irmão Haroldo de Campos, quase anulando as diferenças e particularidades de um e de outro.

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1. Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Mestre e doutorando em Letras na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem.

 

 

 

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“2. quando o amor me encontrou, judith, se era noite ou dia, não me lembro. sei que tinha tudo que eu não tinha e tudo aquilo que usualmente não procurava. não tinha pernas brancas, compridas e grossas..., nem um par de ancas monumentais. não tinha cabeleira ruiva loura ou negra... e nem rosto tinha! quando o amor me encontrou, judith, se era noite ou dia, não me lembro. lembro-me apenas que não falou nem riu. chegou e se instalou de vez, como em morada antiga. só muito mais tarde, judith, é que senti desejos. e nos segredos dum novo corpo o amor brincava de esconde-ssscccoonnnddd...”

(Prosoema, texto 2)