Instinto de negridade

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é o certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos, no tempo e no espaço.”

Machado de Assis

Não há dúvida que a revolta de um povo massacrado
Sobretudo um povo sacrificado na sala de espetáculos da casa grande
Entre móveis de jacarandá, castiçais de prata e cortinas de seda
Deve alimentar-se primeiramente das estocadas que ainda lhe ferem a alma

Não há dúvida que o meu verso é também o meu quilombo ardente
Atento às doutrinas absolutas que me querem escapelar o pixaim
Queimar na fogueira do esquecimento meus sentimentos íntimos
Alisar minha língua no ferro do feitor que mantém acesa a fogueira
Conformar meu silêncio na pasta quente para esticar meus gestos

O que devo exigir de mim mesmo e do meu estilo antes de tudo
É certo sentimento íntimo que me faz ciente do conflito que trago na cor da pele
O que me torna um antipatriota convicto em conflito com o teu país e a tua cor
É ser um aliciador dos corações curtidos no limão e no alho que lhes tempera
Porque meu verso é levante ainda quando distante no tempo
no espaço na composição do sangue.

(Gramática da ira, p. 152-153)

 

Instinto de negridade

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é o certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos, no tempo e no espaço.”

Machado de Assis

Não há dúvida que a revolta de um povo massacrado
Sobretudo um povo sacrificado na sala de espetáculos da casa grande
Entre móveis de jacarandá, castiçais de prata e cortinas de seda
Deve alimentar-se primeiramente das estocadas que ainda lhe ferem a alma

Não há dúvida que o meu verso é também o meu quilombo ardente
Atento às doutrinas absolutas que me querem escapelar o pixaim
Queimar na fogueira do esquecimento meus sentimentos íntimos
Alisar minha língua no ferro do feitor que mantém acesa a fogueira
Conformar meu silêncio na pasta quente para esticar meus gestos

O que devo exigir de mim mesmo e do meu estilo antes de tudo
É certo sentimento íntimo que me faz ciente do conflito que trago na cor da pele
O que me torna um antipatriota convicto em conflito com o teu país e a tua cor
É ser um aliciador dos corações curtidos no limão e no alho que lhes tempera
Porque meu verso é levante ainda quando distante no tempo
no espaço na composição do sangue.

(Gramática da ira, p. 152-153)

 

Filhinha

-para Lúcia e Luiza

Noites e noites acordado passo horas a fio observando minha filhinha
                  dormindo
Após noite a fio acordado durmo o sono de pai para vê-la logo
                 ao raiar do dia
Digo para ela todos os dias o quanto ela é linda e pergunto quem é
                a minha pretinha
Suas pernas crescem seus braços crescem seus cabelos crescem
                sua curiosidade cresce
O seu cabelo cresce e não nega a raça de quem nasceu para ser
                a deusa do ébano
O seu cabelo cresce e não nega a graça de quem saberá ser a
                muzenbela
O seu cabelo cresce e não passa de graça pelo olhar da cidade adversa
A minha filhinha crescida já vai para a escola se espanta se anima
                se rebela se aborrece
A minha filhinha parece que já nasceu cantando e dançando
                as músicas de que gosta
Preta preta pretinha eu vivo o tempo todo pensando nela
                pretinha que me faz um navegador
Ao fim do dia, nossa constante lição, falo dos nossos avós
                E de nossa antiga casa
Os seus traços definidos deflagrarão o inevitável dia
                de seu inevitável teste
Os seus traços definidos lembram a mim a cada dia
                minha paternal tarefa
No playground e na classe chegará o dia de seus traços entrarem
                em choque antitético
No bairro e na escola chegará de seus trajes entrarem
                em choque estético
No corpo e na alma chegará o dia de seus gestos entrarem
                em choque étnico
Enquanto isso insisto nos sons cores palavras móveis
                dos palácios antigos
Por ora apenas seu cabelo cresce enquanto a sua volta tecem
                diversos comentários
Por ora apenas vagam na cabeçada vizinhança certos conceitos graves
O cabelo que em sua cabeça cresce incomoda justamente por ser
                a sua própria graça
O cabelo que em sua cabeça cresce livre cresce sem a violência do ferro
O cabelo que em sua cabeça cresce ela já percebe é o elo
                 que nos agrega
Dentro da cabeça, que seu cabelo cresce, cresce também o sentido
                 de pertencimento
(Não será feito dela o que quase foi feito de mim, Bombril, cabelo duro, ruim)
Em seus aniversários percebi passo a passo os sentidos dos ritos
                 de confraternização
No seu último aniversário minha filhinha ganhou
                 mais uma boneca bárbie
Minha menininha gosta tanto delas em seus traços excessivamente
                  familiares
Os cabelos longos louros e lisos da boneca fazem o delírio
                  da meninada
Os cabelos longos louros e lisos da boneca fazem o delírio
                  da minha filha
Os cabelos longos louros e lisos da boneca urdem as malhas
                 que o modelo prega
Virá a inevitável angústia adolescente do “eu queria tanto ser assim”?
Virão como sempre vêm, com choro, os maus tratos na escola?
Virá o fogo que nos assola esticar-lhe os fios capilares
                 de sua nossa história?
Estarei eu, novamente, diante de mim, pretinho incomodado no
                  meu sono de justo
Xingarei brancos e embranquecidos e odiarei por dentro,
                 novamente, este país nojento
Depois ecoará no vazio do meu peito um verso irônico
                 para Silvio Romero e Gilberto Freyre
Depois falarei da Musa da Guiné de Luiz Gama
                 e da Clara dos Anjos de Lima Barreto
Depois falarei da Mãe Stella do Axé Opô Afonjá
                 e da Makota Valdina do Tanuri Junçara
Riremos juntos nesta terra que também é nossa mas que precisa
                 de uma faxina
Sei que estarei bem e que a Ira nunca será barbarismo na rebeldia
                 de nossa família
Estarei feliz por saber que nunca deixei de dizer a verdade
                 para a minha criancinha

(Gramática da ira, p. 52-54)

 

Estrangeirismo

Quando pequeno
Meus ouvidos mirins já captavam falácias
Pretinho incomodado
Esperava ser escolhido por eles
para as brincadeiras
deles

Nas festas da escola
Deles
Eu sempre de par de dança da minha irmãzinha
Lucinha

Já me alertavam de inúmeras formas sobre a diferença
do povo lá de casa
Mesmo assim, também cobicei na adolescência
a pele rosada
das menininhas mais cobiçadas do colégio
deles

E também acompanhei dos concursos de misses
eles
pela tevê
deles...
e me iniciei nas revistinhas dinamarquesas, francesas, suecas
deles
Sonhava e mais nada
Minha aparência não sustentava as expectativas
Minhas

A escrita de Abdias
chegou antes que o fogo do ferro forjasse os cabelos - meus
E o movimento pela união e consciência – nossa
foi meu primeiro templo

Na redescoberta de mim mesmo
desinteressou-me de vez
as princesinhas nórdicas
deles

Aos poucos fui entendendo que
só poderia ser Luiz Gama o poeta dos meus avós
dos pais dos meus avós
meu 

Só no pretérito
e distante espaço
Reconstruiríamos um pouco de orgulho e sentido 

Reconheci bem o lugar
que esta terra gigante reservou para mim
na sua diversidade
Situando nas quebras da comiseração ou intolerância – deles
Eu
a sempre grande estranheza

Passei a dizer todos os dias
Mesmo com certa dúvida no início:
eu sou um homem forte sábio e bonito
às vezes ria de mim mesmo
(como eles fazem)
Depois acreditei de fato
Aprendi esta sisudez de mano irmão brother
(que os apavora)

Agora acredito
Sem o vigor em pele carne e osso
Aquele que sabe das nossas coisas
(e das deles...)
Sei que sou belo
(e em que consiste a beleza deles)
Já não desejo participar das brincadeiras
que não sejam de minha infância reencontrada
depois que aprendi a olhar sem receio para o que há de íntegro
por entre as quebras de nossas lembranças

Depois de Abdias:
Garvey, Cèsaire, King, Malcom, Fanon, Kwame Nkrumah,
Florestan, Carlos Moore...
Para o homem violentamente transplantado
não pode haver a solidão da pátria ou fronteira nacional
O involuntário êxodo da nossa irmandade
fundou o sentido de nosso êxito transnacional
O filho solto no mundo de uma mãe
que agora mais do que nunca
sabe bem onde encontrá-la
múltipla mas preservada
Matriarca

agora mais do que nunca
sabe de sua unidade sagrada
Orixalá

Percebi o valor da minha cara
Recusei a imitação das máscaras deles 

O discurso da mistura é apenas a capa da rede de negócios
Para conter nossa Ira
Para a permanência e exuberância
Deles!

(Gramática da ira, p. 72-75)

 

A falência dos heróis

Então, meu chapa
O que é que você vai fazer agora?
Agora que a tempestade devolveu portugal à europa?
Agora que pero vaz de caminha é epígrafe do massacre
         dos amerídios
Agora que se percebe à luz do dia a alma embranquecida de
         felipe camarão e henrique dias
Agora que tiradentes é joguete nas mãos de escravocratas atenuados
         por paris
Agora que dom joão fugiu de sua briga para criar a sua eterna
         dívida externa
Agora que os pedros são garras dom império que mantiveram a canga
Agora que caxias virou algoz de negros brasileiros e exterminador
         de paraguaios
Agora que demos as costas para a princesa de maio
Agora que descobrimos a cor renegada de machado
Agora que deodoro é precursor de fernando henrique e fernando
          collor
Agora que flagramos rui barbosa queimando a nossa história
Agora que getúlio vargas é uma veia exposta do nazismo
Agora que pelé não faz mais gol-contra com a sua bola branca
Agora que só lhe restou memória de ayrton senna de mônaco e
          a sombra itálica de rubinho Barrichello
No seu país do hipismo de remo de vela do tênis do vôlei
          do automobilismo
E agora?
Agora chegou a hora de procurar sua nova cara
Então, chefe,
Em quem é que você vai mandar agora?
Quem é que você vai açoitar agora?
Quem é que você vai enforcara agora?
Agora que chegou a hora de botarmos as mangas de fora
Olhar nos seus olhos e perguntar: quem é você agora?
Agora que se comemora os Caetés devoradores do bispo sardinha
Agora que Cuhambembe volta a liderar a resitência nativa
         dos tamoios
Agora que a África reunida é a capital do corpo e do imaginário
Agora que a Negritude fez renascer suas civilizações antigas
Agora que se inscreve Acotirene nas linhas da beleza e da resistência
Agora que Zumbi é o grande Capitão que não mataram
         na República dos Palmares
Agora que se mostra a insubmissão de João de Deus
Agora que se sabe da educação refinada e da arte de Ahuna
Agora que Luiz Gama é o poeta elegido e divulgado
Agora que Cruz Souza é o poeta repensado e reeditado
Agora que Lima Barreto é um escritor fora da sarjeta
         que lhe desejaram
Agora que a grande Mãe Senhora liberta do cativeiro mental
Agora que a Grande Rainha Ginga refaz a ancestralidade
Agora que se rememora a cada dia um Vinte de Novembro
Agora que na escola é Abdias, Mano Brown, Lélia Gonzales
          e Milton Santos
Agora que se visualiza o universalismo de Ali, Mandela,
          Fela Kuti e Fanon

Agora que Xangô veio acertar as contas!
Ele que é o mais belo e trança os cabelos
Ele que é o mais correto e não dá a outra face
Ele que castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores
Ele que é atrevido, violento e justiceiros
Ele que faz rolar a cabeça dos infratores
Ele que tem a pele preta
E agora?

(Gramática da ira, p. 123-125)

 

The walk talk man

Entrei no shopping pela porta da frente
Lá estava ele como sempre: fechado e bem fardado
Fora dali, lá na área, no baba do pagode outra pessoa
Agora era o homem do rádio transmissor – The Walk Talk Man
Sente mesmo um certo orgulho de si aquele irmão bem colocado
Se encaixa como limo no mármore entre samambaias
         e as cascatas
Eu vi quando ele passou um rádio lá tentando se ocultar
         nas dobras da parede
E ele se duplica fixo firme múltiplo presente e premente – sentinela
Em cada etapa de meu passeio pelo campo minado de inimigo
Eu prevejo um tiro de morteiro uma bala devidamente perdida
Mas passo ante as vitrines que me espelham de corpo inteiro
         de cabeça erguida
Embora eu invadindo aquele espaço mais pareça
         o cristão lançando às feras
O terrível contrassenso daquela bela paisagem romana
Algo que se faz bárbaro na ostentação daquele templo ariano
Em cada canto uma câmara oculta enquadrando classificando
          o meu corpo
Pesquisando espreitando esquadrinhando mirando destacando
          me pedindo um sorriso
Não entendia muito bem a causa que envolvia a minha pessoa
Afinal de contas já acreditei que todos eram irmãos
          neste país de miscigenados
Tudo sempre e tanto correria como manda o figurino
Eu realmente acreditava
O culpado maior de minha intranquilidade foi este mulatinho
         Isaías Caminha
A rebeldia de Lima Barreto botou fogo na minha consciência perdida
Eu também era uma vítima alheia aos atos e sentimentos
         sem causa explicada
E me sentia como um estrangeiro naquela que diziam a minha terra
As plumas os chapéus os ternos os sapatos dos que desfilam nesta casa de horrores
Parecem povoar de animais vorazes a grande floresta
         em que me encontro
Mas esta mata não é ponto de chegada
É passagem no trajeto de nossa permanência
Porque é nosso o mistério de caminhar descalços
sobre as brasas acesas da fogueira de Xangô
E para o coração de cada irmão sempre sério e bem fardado
The Walk Talk Man
Há uma flecha redentora de Oxóssi
          e Ossain queimando a erva da memória.

(Gramática da ira, p. 86-87)

 

Texto para downlaod

O duque da senzala

(excertos)


Mesmo que marcasse um grande avanço científico e industrial, o século XIX seria tão mortífero quanto os antecessores. Mas dessa vez, não se mataria em nome de Deus, e sim em nome da política. Nas próximas guerras se mostraria o quanto o homem está condenado à destruição; e nenhum deus poderá salvá-lo.

No mesmo dia em que enforcaram seu pai, a mãe o venderia a quem buscasse um pardinho obediente e de boa figura. A mulher encontrou e o vendeu. Sem suspiros ou lágrimas. Nada além de um estranho alívio, perceptível nos seus olhos castanhos e profundos como a fonte de uma gruta. O menino não fazia ideia das leis que regiam aquele universo. Um sistema, cujas engrenagens respeitavam uma divisão básica. De um lado as pessoas que vendiam e compravam, do outro as pessoas que eram vendidas e compradas. Assim como não imaginava que a metamorfose desse mesmo sistema agiu nele no momento em que a mãe pegou o dinheiro e o cedeu ao estranho que perguntou a ela:

– Tem batizo?

– Ábedu Lecur.

Se antes Ábedu Lecur e sua mãe vagavam pelas ruas, misturando-se ao cardume de estranhos na região mais fétida de Porto Alegre, agora se achava dentro de um imenso alçapão. Nada mais que um objeto numa residência nobre no centro da capital. Se conhecesse as estórias bíblicas, imaginaria que era Jonas dentro da baleia. Uma baleia de cimento, tijolos e um forte cheiro de gordura queimada. Por um tempo ficou sozinho. Até que o estranho se aproximou, postando-se diante dele. Ábedu Lecur confrontou aquele indivíduo de barba grisalha, de olhos castanhos, estáticos e reluzentes como vidro. Aparentava a clara expressão que iria humilha-lo. Entretanto bastaram alguns segundos de silêncio para que sentisse o cheiro que vinha da roupa desse estranho. Um aroma que despertou nele a lembrança das trouxas que sua mãe lavava, das horas nas águas do riacho e nos espancamentos nas pedras. Foi capaz de senti-las mornas em seu rosto.

(​O duque da senzala , p. 13-14)

****

– Está perdido, negro?

E dessa vez, Ábedu Lecur escutou como se alguém segredasse em seu ouvido. Era a certeza de que era descoberto. Enquanto saía do refúgio, sentia-se um ladrão surpreendido pela gente que o lincharia. Arredou galho por galho como se tivesse receio de quebra-los. Postou-se feito um recruta desengonçado perante o homem que o indagava:

– Está perdido, negro? – repetiu e tirou a cartola da cabeça e segurou ao seu lado num tipo de gesto de educação militar. Mostrou-se o crânio envolto ao lenço cor de cenoura. Alisou a testa e recolocou o chapéu – Entendo o que digo?

Essa voz carregava o cheiro de fumo na cachaça. Sim, entendera. No seu imaginário, bastava uma resposta simples. Mas que poderia ser fatal. Aquelas pessoas não lhe davam referência alguma de quem eram, de que lado eles brigavam e para que. Os ossos de seus maxilares doíam. Era uma rigidez imposta por uma força interna que os impelia a se grudarem cada vez mais. Quando respirou numa lenta sucção do ar para logo soltá-lo aos poucos, percebeu que sua boca amolecia. A brecha o deixou que respondesse, mesmo que fosse em voz trêmula:

– Me perdi na batalha.

(​O duque da senzala, p. 77)

 

Texto para download. 

 

 

 

The walk talk man

Entrei no shopping pela porta da frente
Lá estava ele como sempre: fechado e bem fardado
Fora dali, lá na área, no baba do pagode outra pessoa
Agora era o homem do rádio transmissor – The Walk Talk Man
Sente mesmo um certo orgulho de si aquele irmão bem colocado
Se encaixa como limo no mármore entre samambaias
         e as cascatas
Eu vi quando ele passou um rádio lá tentando se ocultar
         nas dobras da parede
E ele se duplica fixo firme múltiplo presente e premente – sentinela
Em cada etapa de meu passeio pelo campo minado de inimigo
Eu prevejo um tiro de morteiro uma bala devidamente perdida
Mas passo ante as vitrines que me espelham de corpo inteiro
         de cabeça erguida
Embora eu invadindo aquele espaço mais pareça
         o cristão lançando às feras
O terrível contrassenso daquela bela paisagem romana
Algo que se faz bárbaro na ostentação daquele templo ariano
Em cada canto uma câmara oculta enquadrando classificando
          o meu corpo
Pesquisando espreitando esquadrinhando mirando destacando
          me pedindo um sorriso
Não entendia muito bem a causa que envolvia a minha pessoa
Afinal de contas já acreditei que todos eram irmãos
          neste país de miscigenados
Tudo sempre e tanto correria como manda o figurino
Eu realmente acreditava
O culpado maior de minha intranquilidade foi este mulatinho
         Isaías Caminha
A rebeldia de Lima Barreto botou fogo na minha consciência perdida
Eu também era uma vítima alheia aos atos e sentimentos
         sem causa explicada
E me sentia como um estrangeiro naquela que diziam a minha terra
As plumas os chapéus os ternos os sapatos dos que desfilam nesta casa de horrores
Parecem povoar de animais vorazes a grande floresta
         em que me encontro
Mas esta mata não é ponto de chegada
É passagem no trajeto de nossa permanência
Porque é nosso o mistério de caminhar descalços
sobre as brasas acesas da fogueira de Xangô
E para o coração de cada irmão sempre sério e bem fardado
The Walk Talk Man
Há uma flecha redentora de Oxóssi
          e Ossain queimando a erva da memória.

(Gramática da ira, p. 86-87)

O MANICÔMIO TAMBÉM É UM QUARTO DE DESPEJO
A recepção da poética de Stella do Patrocínio a partir de uma abordagem antimanicomial

 

Lara Carvalho Cipriano*

Você está me comendo tanto com os olhos
Que eu já não tenho de onde tirar força
Pra te alimentar.

Stella do Patrocínio

 

Acaba de ser publicada a pesquisa de Anna Zacharias sobre Stella do Patrocínio (1941-1992), a poeta que não escreveu poesia, mas que fez reverberar os seus “falatórios”. Segundo Zacharias, Stella foi internada involuntariamente, em decorrência de sua situação vulnerável, em um manicômio, e permaneceu institucionalizada até o fim de sua vida. A internação involuntária é um dos pontos que aproxima Stella de outra escritora, Maura Lopes Cançado, que publicou Hospício é Deus, livro reeditado recentemente e que foi produzido enquanto Cançado estava institucionalizada.

Desde que Stella foi internada, ela passou por várias mudanças institucionais: esteve na Colônia Juliano Moreira onde conviveu com o prestigiado artista Arthur Bispo do Rosário (Zacharias, 2024, p. 25). Conforme assinala Zacharias, algumas décadas antes, o compositor Ernesto Nazareth também esteve internado na mesma instituição.

Tudo indica que a internação de Stella foi arbitrária. De acordo com o testemunho, presente em seu livro de poemas Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), organizado por Viviane Mosé, ela foi “agarrada de repente andando na rua” (p. 129). E mais: “me adoeceram, me internaram no hospital e me deixaram” (p. 51); “estar internada é ficar todo dia presa” (p. 55). Há uma crença de que Stella era uma mulher saudável e de que teria adoecido em função de sua internação, conforme se lê a seguir:

Você passa muito mal aqui?

Passo mal porque eu tomo constantemente injeções (...)

E para que servem essas injeções?

Para forçar a ser doente mental. (...)

No dia que você parar de tomar essas injeções, você fica curada?

Fico completamente curada se eu não tomar remédio, não tomar injeção, não tomar eletrochoque. Eu fico carregada de veneno, envenenada (Mosé, 2021, p. 149-150).

Essas entrevistas, feitas pela equipe de psicologia que atendiam Stella, foram gravadas e compiladas, tendo em vista que nelas (nos falatórios) percebiam-se muitos elementos de escrita poética (p. 133), o que deu origem ao citado livro organizado por Viviane Mosé. Sem essa mediação de Mosé com o mercado editorial, dificilmente ela, inserida neste recorte social – negra, pobre e considerada louca – teria sido publicada e lida, como vem ocorrendo hoje.

Nesse sentido, Zacharias explora a semelhança entre Patrocínio e Carolina de Jesus e o modo de inserção das duas escritoras no mercado editorial. Como se sabe, Carolina também contou com a mediação do jornalista Audálio Dantas para publicar seu livro: “assim como Mosé, Dantas tornou-se uma espécie de coautor do livro para que a figura literária De Jesus nascesse” (2024, p. 159).

Essa dinâmica de coautoria, sendo interracial, sugere uma dependência, como se Stella do Patrocínio e Carolina Maria de Jesus não fossem sujeitos com poder de autorrepresentação. Uma afirmação marcante nesse sentido, retirada de Reino dos bichos, é a seguinte: “eu sou uma nega, preta e crioula que a Ana me disse” (Ibid. p. 175). Essa passagem indicaria que Stella se autorrepresenta sob o reconhecimento do Outro: no caso, Ana:

Podemos, portanto, estabelecer algum parentesco entre Stella do Patrocínio e Carolina Maria de Jesus, escritoras que produziram conteúdos críticos sobre a favela e sobre o manicômio, dois espaços destinados em grande medida às populações femininas, pobres e negras desse país, visto que essas são a maioria neles. Além disso, a inserção das duas no mercado editorial não chegou a lhes conferir autoridade no domínio literário – vide o modo como foram apresentadas por Dantas e Mosé (Zacharias, 20224. p. 165).

Como se pode ler, o manicômio também é um quarto de despejo. A origem da favela, assim como a do manicômio, está relacionada a um modelo de exclusão social, pois ambos os espaços carecem de condições necessárias à vida. Outro ponto que merece destaque é que a Colônia Juliano Moreira foi afetada por problemas de distribuição de água, de modo que Stella do Patrocínio e outras internas precisavam carregar latas para buscar água (p. 24). Em Quarto de despejo (1961), é possível visualizar um cenário semelhante: a dificuldade de acesso a esse bem fundamental surge mais de uma vez:

Deixei o leito, fui buscar água (...); quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água (...); levantei cinco horas para ir buscar água (...); fui buscar água para pôr os ossos ferver (...); já faz seis meses que eu não pago a água. 25 cruzeiros por mês. E por falar na água, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar água (...) (De Jesus, 1961).

Com isso, nota-se que a escrita de Carolina de Jesus e a de Stella do Patrocínio emergiram de um contexto insalubre, revelando que, mesmo nessas condições, as escritoras possuíam uma percepção sensível da realidade em que estavam inseridas, mais uma razão para lutar contra a exclusão de acesso a bens básicos por pessoas que vivem à margem.

Carolina de Jesus só frequentou a escola por dois anos, o que é um motivo de queixa constante da autora. Stella do Patrocínio evidencia o mesmo problema, afirmando que:

Eu não tinha formação, não tinha formatura, não tinha onde fazer cabeça (...) Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas, fazer cabeça, pensar em alguma coisa, ser útil, inteligente, ser raciocínio, não tinha onde tirar nada disso. Eu era espaço vazio puro (Do Patrocínio, 2011, p. 82).

Por isso, acreditamos que a mediação feita por Mosé e Dantas entre do Patrocínio, Carolina de Jesus e o público atribui uma complexidade à recepção da obra dessas autoras. Levando isso em consideração, a pesquisa de Zacharias questiona o movimento que aproxima a arte produzida fora de contextos normativos de espaços artísticos, visto que isso implica uma adaptação dessas produções aos espaços de circulação das obras.

A esse respeito, uma das discussões em voga acerca da literatura caroliniana refere-se à adequação, feita por Audálio Dantas, do seu texto à norma-padrão. Por outro lado, as edições atuais da obra de Carolina, feitas pela sua filha Vera Eunice e por Conceição Evaristo, publicam os seus escritos da forma como se encontram nos manuscritos.

No caso de Stella do Patrocínio, a partir de um trabalho de comparação entre Reino dos bichos e dos animais é o meu nome e os materiais originais, Zacharias identifica tais elementos quando Mosé suprime ou insere algum recurso ao “falatório” da autora (p. 213). Nesse exercício, a pesquisadora identificou que Mosé atribuiu a Patrocínio uma fala de outra paciente: “nasci louca, meus pais queriam que eu fosse louca, os normais tinham inveja de mim que era louca” (p. 148). Essa fala, aliás, vai de encontro à afirmativa que Stella tanto enfatiza, de que era saudável e foi “adoecida”.

Essa comparação resultou em uma nova transcrição que considera modulações sonoras e nuances vocais (2024, p. 212-213), visando aproximar a escrita da autora da oralidade. Apesar disso, Zacharias sugere que a produção de Patrocínio não seja acessada apenas por meio da leitura, mas também por meio da escuta das gravações que originaram o seu livro de poesia. Ouvir Stella do Patrocínio é um “meio importante para retirar de nossas ações um ímpeto representativo e mediador” (p. 206). Isso atribui à escuta da sua "garganta de carne" (expressão de Sara Ramos citada por Zacharias, p. 200) um impacto único que não pode ser substituído. Nessa perspectiva, “não há meios de associar Stella do Patrocínio a estéticas da loucura, à arte bruta1, ao delírio que nada comunica se ouvirmos o Falatório e se considerarmos em que contexto ele está situado” (p. 206).

Vale dizer ainda que as gravações das falas de Stella do Patrocínio foram expostas na Bienal de São Paulo2 em 2023. Tal fato reforça a ideia de que o teor artístico da produção da autora dispensa a sua organização em forma de texto para ser apreendido, ainda que essa organização possa ser facilitadora desse processo. O mesmo procedimento pode ser notado nas musicalizações feitas da poesia de Stella, seja na peça extasiante de Georgette Fadel e Lincoln Antonio3 ou na canção de Linn da Quebrada4.

Além de produzir uma nova transcrição dos áudios de Stella, outro feito importante da pesquisa de Zacharias foi a reunião das certidões de nascimento dos familiares da poeta, anexadas ao livro, a fim de reconstruir a sua árvore genealógica. Esse cuidado vai ao encontro da práxis do Movimento de Luta Antimanicomial, que consiste também no esforço de reverter um processo massivo de apagamentos das histórias de pessoas institucionalizadas em manicômios (p. 27). Dito de outro modo, essa iniciativa de Zacharias é uma tentativa de fazer justiça à Stella do Patrocínio que, como muitas poetas negras, viveu em condições que desafiam o limite da existência, uma vez que a autora sofreu e sentiu as agruras do racismo.

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Notas

1. "Arte bruta" é um termo cunhado por Jean Dubuffet. Ele reuniu obras produzidas por pacientes institucionalizados, obras essas que constituem o acervo do Museu de Arte Bruta de Lausanne. Esse museu conta com cerca de cinco mil obras que viajaram o mundo por meio de exposições, incluindo trabalhos feitos por brasileiros, como Antonio Roseno de Lima. O acervo encontra-se disponível para consulta online. Ver: https://www.artbrut.ch/fr_CH/auteurs/la-collection-de-l-art-brut Acesso em 9/11/2024.

2. Vale dizer que a exposição de trabalhos feitos por "pacientes-artistas” não é uma exceção na Bienal. Nessa mesma edição, de 2023, também foram expostos os trabalhos de Aurora Cursino dos Santos, resultantes das oficinas de pintura frequentadas por ela no Hospital de Juquery, e os mantos do já consagrado Arthur Bispo do Rosário. Edições mais antigas da Bienal, como a de 1951, já contavam com artistas como Albino Braz.

3. Ver: Entrevista com Stella do Patrocínio. Acesso em 9/11/2024.

4. Ver: Linn da Quebrada - medrosa - ode à Stella do Patrocínio. Acesso em 9/11/2024.

 

Referências

JESUS. Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

PATROCÍNIO, Stella do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

ZACHARIAS, Anna. Stella do Patrocínio ou o retorno de quem sempre esteve aqui. Rio de Janeiro: Telha, 2024.

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* Lara Carvalho Cipriano é bacharel, mestre e doutoranda em Filosofia na UFMG. Além disso, é graduada em Psicologia na PUC-MG e mantém consultório privado de psicanálise. É integrante do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e colaboradora do literafro – Portal da literatura afro-brasileira.


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