Ouvindo vozes 

 

Tinha uma luz radiante que vinha depois do fim  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências,  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

Fui mesmo assim,  

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Tinha caneta, lápis e papel pra colorir  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências,  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

Fui mesmo assim, 

Vai ver que a voz é que não era pra mim. 

 

Tinha um trabalho, horário, conta e dim-dim 

E ouvi uma voz sussurrando maledicências, 

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti. 

Fui mesmo assim,  

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Tinha família, filhos bonitos e pretins  

E ouvi uma voz sussurrando maledicências, 

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti. 

Fui mesmo assim, 

Vai ver que a voz é que não era pra mim.  

 

Outra luz e um aviso; PERIGO! 

(PARE, NÃO PASSE DAQUI!)  

A voz calou e eu não sabia como agir 

Pensei comigo, se havia chegado até ali  

Não custava nada insistir.  

 

Fui em frente e comecei a ouvir gritos:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E agarravam meus pés, e tentavam me impedir  

Eu andava mais rápido e mais forte  

Com pressa de chegar, cuidado para não cair.  

 

E gritavam ao meu redor:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E eu repetia pra mim mesmo:  

Esses gritos não são pra mim. 

Minha esposa, meus filhos, meus amigos  

Tantos que fiz pelo caminho 

 Correram pra me acudir. 

 

E gritavam com eles e comigo:  

Não é pra ti, não é pra ti, negro não é pra ti.  

E eu repetia pra mim mesmo:  

Esses gritos não são pra eles,  

Não são pra mim.  

 

Até que cheguei. 

Cansado, machucado, mas feliz  

Eu era rei 

E alguém perguntou:  

Tantos insultos, como pôde resistir?  

Respondi: Aqueles gritos nunca foram pra mim.  

As vozes calaram  

E as mãos que me seguraram  

Tiveram que me aplaudir. 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol.37; p.118-119) 

A história

 

Um dia estava eu no escritório do Sérgio, vendo alguns detalhes da última reunião de avaliação da participação dos grupos negros nas últimas eleições, quando, para surpresa nossa, entra Paulo Fusquinha.

Admirados dele estar ali nós estávamos. Ficamos mais ainda quando ele disse que queria levar um papo sobre aquelas idéias e aquelas coisas que vínhamos fazendo por aí, há algum tempo. Paulo Fusquinha querendo falar de Movimento Negro? Foi uma enorme interrogação.

Paulo sempre procurou ficar distante de tais coisas, mesmo dizia que não tinha nada a ver, estava noutra, para ele as coisas eram de outra forma. Hoje parece que a terra tremeu. Tremeu forte e ele estava ali, confessando nunca ter entendido nossos pontos de vista, mas hoje e disposto a sentar e discuti-los. Aliás, ele tem uma censura válida, sobre a nossa falta de clareza, sobre a complicação de nossos discurso, a inconstância de nossas ações. Critica também que as divulgações nunca ultrapassaram os cantos de uma dúzia e meia de eleitos, que era difícil de entender.

Paulo Fusquinha, nome e sobrenome da periferia do Rio de Janeiro, nas altas sociedades, do túnel de Copacabana para baixo, conhecido como Negrão, Paulão, Paulo Negrão. Figura popular de dois mundos, tanto na Zona Norte, por ser filho de compositor conhecido, tanto na Zona Sul, pela passagens de braços dados com damas das altas nas altas badalações.

Temos que ver que sociedade no Rio não é como na Bahia, onde o senhor doutor e banqueiro tem pele morena e cabelos ondulados, mas também não é do Rio Grande do Sul, onde os olhos verdes marcam o tipo local. Tem outras peculiaridades, como a da transformação dos fatos que são secretos, nos meios paulistas em atos de proeza e nova forma de “liberalismo” carioca. No Rio, a alta sociedade cultiva o traço marcante do carioquismo urbano. O Rio faz parecer valer tudo, quando não vale nada, nada mais que uma moda, um momento, e mostra por vezes o outro lado do seu pensamento retrógrado e conservador. Temos o exemplo da crítica que o governador sofreu por ter uns pretos no seu secretariado. A Dona Liberal disse: _ Bem aqui, no Rio de Janeiro, que é o cartão de visita do Brasil.

Paulo Fusquinha, filho de funcionário público, que ficou no Rio de Janeiro e não quis transferência para Brasília. Não entrou na tal história de salário dobrado somente para não ficar longe do Rio. Paulo, garoto criado com muito zelo, foi para a faculdade, saiu bem diplomado e mesmo pós-graduado. É doutor não por ter anel no dedo, paletó e gravata, mas porque defendeu tese. Através de concurso, Paulo arranjou um empregão no banco do estado. Aliás, esta história de concurso abriu uma brecha para participação do negro em algumas instâncias. Em certos hospitais, a gente só vê negro trabalhando, não é por nada, não por discriminação, pura casualidade, onde existe concurso como meio de acesso, a coisa muda, a casualidade desaparece e um outro doutor preto a gente encontra. Mas o concurso não é tudo, o diabo ainda é a tal universidade. Ainda 99% dos alunos são brancos, pura casualidade. Um por cento perdido no leite, às vezes se leitifica, mesmo que fique leite azedo. Mas isto é outro papo, tem gente que diz que é reflexo do poder aquisitivo. Eu fico com as minhas dúvidas. As mais esclarecidas não concordam e mesmo que fosse isto, então de onde vem a novela da falta de poder aquisitivo? Mas Paulo, como íamos dizendo, foi o primeiro morador do bairro a ter um fusca e rapidinho o apelido pegou e, logo em seguida, ele foi morar em Botafogo, passando pouco tempo depois para um pequeno apartamento em Copacabana. Pequeno, minúsculo, mas em Copacabana. Até a mãe dele falava bem alto para todo mundo da escola de samba escutar: _ Meu filho Paulo mora em Copacabana, Zona Sul. Era mais um liberto no 13 de maio.

Na Zona Sul, ele tornou-se cartaz e fascinação das aventureiras senhoras da alta roda. Elas se revezavam e rolavam pelas aventuras com Negrão. Era fama contada e recontada em tom de segredo ou fofoca. Por outro lado, toda vez que a “turma” estava a fim de dar uma chegada na escola, a conversa era a mesma: _ Negrão, você nos leva à escola de samba? Negrão era proteção, o sinal aberto para serem recebidos, para estar no camarote. Com gente comum não tinha graça ir ao samba. O negócio era aparecer. Outra razão é que nas idéias preconcebidas, a barra era pesada e precisavam de um guarda-costas autorizado no pedaço. O Negrão.

No escritório do Negrão, virava, mexia, era invadido por uma coroa, soltando plumas, falando alto, dando enormes gargalhadas, batendo forte no peito do cara com assinatura de uma posição aberta. Negrão, trânsito livre num semi-círculo estreito. Apesar de tudo, examinando detalhadamente os fatos, não era de seu cartaz que vinha seu poder, sua autorização de estar ali onde outros pretos e pretas só estavam como garçons, sambista ou prostituta. Seu passe livre vinha a sua relação com homens, homens de negócios, paletó, gravata, dinheiro, muito dinheiro. Lógico que esta relação nunca foi admitida, contada ou contabilizada no seu exato valor.

De Negrão a Paulo Fusquinha eram dois mundos. Num, muito sorriso, muita graça, sempre amável, solícito, pronto para tudo. Negrão sempre foi elogiado e apologizado pela sua cultura, pelo seu talento. Paulo Fusquinha uma história do passado a ser esquecida. Não tinha mais compromisso com os Santos, não vinha mais à casa das tias, raramente visitava a mãe. Aparecia no bairro às vésperas do carnaval, acompanhando gente bem nutrida e brilhante que ofuscava qualquer dos destaques das alas.

Ah, claro, para ele, tudo aquilo era sonho. Nada de errado, nada a ser questionado. Sobretudo as concessões abertas. Fazia delas um modo de vida, era ele seu herói preferido, o homem bonito que de hora em hora se olhava no espelho, repartia o cabelo, consertava o bigode. Guarda-roupa com mais de 30 camisas, duas dúzias de calças, uma de sapatos, tudo o que permitia conservar uma elegância fora de série.

Negrão era, volta e meia, procurado pelos homens de negócios à procura de informações, conselhos econômicos e coisas do gênero. Não pouco comum era entrar em seu escritório o diretor de empresa eufórico, com uma garrafa de uísque debaixo do braço, dizendo: _ Negrão, esta é para comemorar a dica que você me deu sobre aquele negócio. Ou então: _ Negócio da China, rapaz, você me arrumou. Após o mesmo gosto democratizante, a mesma frase: _ Negrão, você é um cara legal, gosto de você. Por vezes, o disco mudava, cara legal era trocado por grande sujeito, boa gente, amigão e outros sinônimos. Estes favorzinhos asseguravam a passagem de Paulo Fusquinha a Negrão entre os homens da alta soçaite.

Movimento Negro, como vocês devem ter percebido, não passava de uma tremenda chatura para Negrão. Identidade racial, identidade, protesto, problema de comunidade era um discurso de neguinho complexado procurando desculpas. O negócio, segundo ele, era todos se mirarem no seu exemplo, estudar e vencer na vida. Ele dizia quando questionado:_ Façam como eu... Em parte ele tem razão, pois muitos são demovidos pelas barreiras e dificuldades, caem no desalento, num meio marasmo e perdem a luta constante pela dignidade do homem, mas não é exatamente isto que Negrão pensava, nem exatamente está no centro da questão.

 

 

Certo dia, é dia de preto

 

O telefone toca, a secretária anuncia um doutor Carlos etc. e tal. Em seguida, entra o homem.

_ Negrão, tudo azul? Como vai a família? Você precisa aparecer mais lá em casa.

_ Tudo certo, Carlos.

_Olha, Negrão, estou aqui com um probleminha, e logo pensei que você era a pessoa na medida para me ajudar. Afinal, você é a pessoa mais bem informada do Rio de Janeiro.

_ Pois não, Carlos, é só dizer.

_ Acontece que eu perdi meu gerente financeiro e preciso urgentemente que você me sugira um nome certo. Você está bem a par dos meus negócios, conhece o pessoal. Talvez possa me indicar uma pessoa exata. Estou pagando quanto pedir. Você me faz esta gentileza?

_ Carlos, vou dar uma pensada, mais tarde você me liga e eu vejo se consegui alguém.

_ Passo por aqui. É melhor assim. Saímos e tomamos um uísque por aí.

Bom, o dia foi longo, destes dias quentes de ar condicionado do Rio de Janeiro. No fim da tarde, logo após o expediente, como num passe de mágica, entra o Carlos, sem ser anunciado nem nada.

_ Negrão, como é? Encontrou meu gerente?

_ Sim, Carlos, encontrei.

_ Sabia. Tinha falado para o pessoal. Você nunca falha, é o homem mais bem informado do Rio de Janeiro. Pois bem, quem é a fera?

_ Eu, Carlos.

O sorriso se desfez no rosto bem barbeado e a palavra é recomposta meio a solavancos: _ Tá brincando, Negrão!

_ Não, não estou. Eu sou a pessoa no modelo para seus negócios.

_ Negrão, você sabe, aqui entre nós, ninguém duvida dos seus conhecimentos, da sua capacidade, mas você sabe, na diretoria tem gente que não vai aceitar.

_ Não, não sei, você que está dizendo agora.

_ Negrão, você é meu amigo, tenho você como irmão, não gostaria de te magoar. Não é por mim, você sabe, os clientes...

_ Boa noite, Carlos.

_ Boa noite, tia. Vim ver vocês.

Paulinho, mas como você está bonito, meu filho, quanto tempo! Senta aqui, meu filho. Olhe, cuidado, a cadeira. Anita, limpe a cadeira pro Paulinho. Senta aqui, meu querido.

_ Limpando a cadeira com o avental, cobrindo-o de carinho, a tia foi a compreensão de uma vida, na sua filosofia simples, daqueles que não esquecem mesmo quando esquecidos... Fim.

Cabelos

 

Cabelos enroladinhos enroladinhos
Cabelos caracóis pequenininhos
Cabelos que a natureza se deu ao luxo
De trabalhá-los e não simplesmente deixá-los
Esticados ao acaso
Cabelo pixaim
Cabelo de negro.

                        (In Cadernos negros 1, p. 9)

Fato comum

 

Esta história não contém ingredientes novos, ela repete o dia a dia. Dia a dia que aqui nos serve de relato, para fixarmos algumas idéias, para tentarmos, nos nossos exercícios mentais, mais facilmente precisar a realidade. A realidade num sentido muito estreito, de um grupo estreito de pessoas que vivem as frustrações de uma fantasia, que não conseguem transformá-las nas fadas mágicas, mas sempre na bruxa a envenenar a maçã. Apesar do gosto amargo deste veneno, insistem em continuar experimentando-o. É amargo, ruim, mas é sempre parte da fantasia (ou do pesadelo). Pierrôs e Colombinas perdidos num carnaval que não dura apenas quatro dias, carnaval longo que atravessa uma vida.

Tratando de uma história diária, banal, ela poderia ser contada através do jogador de futebol famoso que nos dias de glória é destaque nos bailes do municipal e que, antes, assutava ou fazia medo aos seus atuais “amigos”, quando chegava na porta de carro e dizia: _ Doutor, quer que eu tome conta?

É bom dizer, de antemão, que não temos a mínima intenção em criticar ou julgar a ascensão social de ninguém. Aliás, sob certos termos, somos até muito favoráveis. Também não vamos confundir, comer bem e viver em casa decente, com as tais atitudes burguesas, vindas de um pensamento deliberadamente classista e espoliador. Vamos ficar na superficialidade dos fatos e olhar apenas o preço da ilusão de integração social de certos pretos “realizados”.

Saindo do jogador de futebol, pensamos em dar uma olhada através do casal de amigos que hoje faz terapia de grupo só porque numa dessas igrejas de bairros de alta sociedade foram confundidos com... Eles moram há muito tempo no tal bairro, são freqüentadores assíduos há muitos anos da tal igreja, devotos caridosos e grandes colaboradores de todas as obras paroquiais. Um dia, uma outra madame devota lhes perguntou empregados de quem eles eram mesmo? Daí a crise da cor. Mas esta história é muito cruel. Vamos procurar outro exemplo mais falante, com mais charme poético, com maiores sutilezas. Poderia ser mais suave deixar os fatos na voz encantadora e na vivacidade da pretinha inteligente e graciosa. Ela que, a partir dos amigos da escola, se viu sempre bem aceita numa camada de moços ricos. Jamais fora esquecida para uma festa, viagens ou reuniões. Benquista, mas nunca amada. Estranho, mas nunca nenhum dos rapazes da turma foi seu namorado. Todos a queriam bem, mas jamais ganhou um beijo de amor, nem saiu pelos passeios de mãos dadas à procura deste sabor juvenil dos namoricos apaixonados. No entanto, as pessoas têm respostas fáceis à sua inconsciente cegueira. Justificava ela a sua solidão por ser tímida e conservadora, neste setor. Isto afasta os rapazes. No entanto, a repressão da tristeza virou uma pequena neurose de detalhes, um elenco de concessões, um grito silencioso.

Certo é que o grupo ora incorpora, ora se contradiz. Aceita. Entretanto, tem limites. Até os limites da família. Por vezes, além dela. No limite, aí ele manifesta sua verdade e trai a sua concessão individual com ela.

A exceção, que jamais se tornou regra, deixa de ser exceção.

Estamos quase contando o fato comum pela voz forte da nossa menina querida. Ela, como os anteriores, não pode contar essa história tão bem como Paulo Fusquinha. Não pode contar, pois ainda não fez sua autocrítica tão bem e clara como ele.

O fato comum será contado tal qual Paulo Fusquinha nos contou.

 (In Negros na noite, p. 9-14)