Entradas e Serviços

(Para Milton Nascimento)

Quando eles chegaram
eu estava absorto
no meu tempo
trabalhando ferro,
plantando,
fazendo
minhas próprias guerras.

Tinha as portas abertas
pois pouco sabia deles
entraram com suas armas
me tiraram da cama
justo quando descansava.

Me puseram correntes
e caminhei
os mares
no ventre fétido
de grandes barcos.

Cheguei em terras
que haviam tomado de outros
fiz tudo por aqui
enquanto eles
de braços cruzados,
bebiam meu suor.

Seu tédio era tão grande
que ainda lhes dei
chula, samba, mambo
blues, rumba, calipso
jazz
para vê-los, pelo menos
mexer suas carcaças inertes.

Hoje vendo esse passado
posso, devo dizer
não.
Estou mais do que farto
de entrar pela porta dos fundos.

(Atabaques, p. 15)

Identidade 

  

Houve um tempo em que 
constava de sua carteira 
o dado cor 

na minha: pardaescuracabeloscarapinhados. 

  

Diante de espelho, me pergunto 
que faço com estes lábios grossos, 
este nariz achatado? 
Que faço com esta memória 
de tantos grilhões, 

destas crenças me lambendo as entranhas? 

  

Será que não é demais ter o direito 
de ser negro? 
Causa espanto? 

Pardaescura é o aspecto que vocês deram 
à nossa história. 

  

Morra de susto! Sou, vou sempre ser: NEGRO! 
ENE, É, GÊ, ERRE, Ô. 
Aqui, Ô! 

 

(Atabaques, 1983.) 

M A T A 
 
Diante da tua presença 
Sinto-me tragado inteiro, de forma intensa 
Qual curumim buscando teto 
Se a noite chega, densa 
Sou todo intento 
Buscando em ti minha negra 
A toca, a taba, a oca 
Descanso da caça, da lida, da roça 
 
Suado, mergulho em teu riacho 
Brinco em tua calma água 
Bebo teu vinho de cachos 
Desde a palma 
Em uma contínua sede, sugo tua seiva 
De negra clorofila trocada do verde 
 
Na intimidade de tuas redes 
Enrosco-me em teus cipós, nós e ramas 
Donde antes do sono tecemos tramas 
 
Daí me transformo em vento 
E adentro tuas arestas 
Atrevido em tuas frestas, sem drama ou atalhos 
Caminhos nunca falhos, copas, folhas, galhos 
Até o completo mergulho no mais doce igarapé 
Onde bicho, carrapicho 
Eternizo-me, 

  

Moco, broto, solto, semente, caipora 
Lenda 
Animal dentro das fendas 
Grotas e segredos 
Curando-me de todos os medos 
Invasor, sou teu grileiro 
E somos juntos no escuro 
Sobretudo 
Oxigênio e Futuro 

 

(Cadernos Negros v. 23) 

Maio

Quero ler na noite, cor, irmão
o rosto dos irmãos, braços, peitos
todos lindos, nus, descendo todas
as colinas, transpondo barreiras
se espalhando na semelhante
marca serpente do asfalto. 

Quero ver colares, gritos, danças
e assumir como vestido agora
o manto brilhante do que vem,
o ato, o desacato, a consciência,
e descobrir depois de tudo a luta pela
felicidade interior de ser negro.

(O arco-iris negro, p. 41)

 

NÃO ESPEREM 
 
Não esperem de mim 
Um novo poema de protesto 
De súbito virão outros versos 
Que nada dirão de crianças descalças e mortas 
Cheirando cola em cada esquina 
Nem esperem que cite em rima 
Os pobres babacas em espasmos, ataques 
Que se sujam na própria merda 
Depois de fumar crack 
 
Não vou vomitar meu nojo 
Pelo idiota pink da esquina 
Que devora com olhos de invasor 
A bunda da negra menina 
Quero mesmo é toma um porre 
De poesia, de rum, de gim 
Para mostrar que o libertário 
Mentiroso e poeta 
Decidiu chegar ao fim 

(Cadernos Negros v. 23)