NO NORDESTE EXISTEM PALMARES 
 
Assim dizia um viajante antigo: 
—Palmeiras, símbolos de paz e sossego. 
 
No Nordeste, palmeiras resistem. 
Brotam de concretos, casebres, barracos. 
A natureza mostra força e poesia. 
À noite, leves brisas amenizam passadas febres. 
 

       As palmeiras abundavam no antigo quilombo. 
E não foram transplantadas para o Nordeste. 
Aqui, junto ao mar de Amaralina, 
Novos palmares também crescem, 
Arejando cabeças trançadas, 
Trazendo novas verdades. 
 
Palmeiras são símbolos de paz e sossego.. 

CADERNOS NEGROS.   Volume 23.   Poemas Afro-Brasileiros. 

Joãozinho acomodou-se no chão ao lado de uma caixa cheia de revistinhas. E uma coisa o deixou intrigado. Lá fora, no lusco-fusco da noite que chegava, ele poderia jurar que viu, escondido entre as flores do jardim em uma moita de capim-cidreira, um molecote, menor do que ele, com uma carapuça vermelha na cabeça, atento ao que se passava na casa. Em um segundo ele sumiu, num pé-de-vento que agitou as folhas das roseiras.

Joãozinho pensava no assunto quando ela chegou. Entrou na sala azul como se fosse a lua, a quem os índios chamavam Jaci, quando surgia por sobre os telhados das casas da cidade na primavera, clareando tudo. Seus olhos, atentos, pareciam dois favos redondos de mel, dourados e doces. Trazia nas mãos uma sacola cheia de livrinhos, que entregou à professora com um abraço. Todos a saudaram com carinho, seu sorriso era o mais lindo que ele já vira!

Joãozinho ficou meio abobado, olhando a menina de blusa florida e saia comprida, assentada em uma cadeirinha com rodas de bicicleta, que ela girava com as mãos delicadas como se de fada fossem. Ficou assim, olhando, até que a história acabou e a professora fechou a mala, despedindo-se das crianças. Joãozinho então puxou conversa, queria saber quem era aquela menina, a filha da lua, que àquela hora já iluminava a rua e o quintal. Ela deu-lhe o seu melhor sorriso:

– Eu me chamo Luana, ela disse. E você, quem é? Perguntou. Sua voz era tão doce como as jabuticabas do quintal da vovó, bem mais do que canas que chupava lá no sítio, tinha o mesmo gosto dos docinhos de coco que sua mãe fazia para as festas de fim-de-ano.

(A menina da cadeira, p. 9-12).

 

****

 

Chegaram à sorveteria. Era uma lojinha bonita, toda colorida. Mas, pena, não tinha como Luana entrar em sua cadeira de rodas. Tinha quatro degraus para subir e a calçada estava toda esburacada em frente, não ia dar, não! Seguiram em frente, chegaram a uma doceria onde também vendiam sorvetes. Também não tinha rampa, Joãozinho ficou triste. Em outra também não tinha, as calçadas eram como muros a separar a rua dos lugares aonde queriam ir.

Perto da praça onde tinha muita gente conversando encontraram um menino chamado Ariel, que usava óculos escuros e segurava um cachorro pela corda. Era um menino especial, que não enxergava como as outras pessoas. Onde todos viam cores e formas, ele, mesmo sem visão, conseguia enxergar algo mais, parecia que via a alma da gente! Resolveram ir juntos até o coreto da praça. No caminho, Ariel, o novo amiguinho de João, quase caiu em um buraco que ninguém viu. Se não fosse tatu, o esperto cão-guia, ele teria ido parar no hospital. Pararam em frente à sorveteria, na pracinha do coreto. Era o único lugar em toda a cidade que tinha rampinha, Luana poderia enfim entrar, como qualquer criança, e pedir um delicioso sorvete de maracujá, seu predileto. Todos ficaram felizes, principalmente o dono, Seu Hélio, que tinha sempre um sorriso aberto e cantava no coral da igreja. Ele achava uma falta de respeito a cidade ser assim, tão difícil para as pessoas com alguma limitação

(A menina da cadeira, p. 15-16).

 

 

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Joãozinho teve então uma ideia. O negócio era juntar um montão de gente e fazer uma passeata, igual à que ele vira na tevê. Poderia começar chamando o pessoal da biblioteca, onde ele conheceu Luana, chamar os coleguinhas da escola. Podiam fazer cartazes. Chamariam seu Hélio pra cantar, tinha um grupo de percussão na biblioteca, que ensaiava à noite, podiam ir tocando. Podiam parar em frente à casa do prefeito e exigir rampas em todos os lugares, na escola, no teatro, nas praças, nas sorveterias principalmente. Todos gostaram da ideia, já estava na hora de fazerem alguma coisa para a cidade ficar melhor pra todo mundo. Começaram logo os preparativos, Joãozinho escreveu numa cartolina uma palavra nova, que aprendeu na escola. A professora ensinou que o que todos queriam e seus amiguinhos mais precisavam era acessibilidade.

(A menina da cadeira, p. 18-19).

 


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Memorial

A hora-ruim, do meio-dia. A sexta, o demo à solta no mundo, hora de recolhimento e rezação. Apeamos. No outrora-um-pátio, entrada de grande casa, fazenda antiga das de fama, sobrado perobal. Imaginando dava para ouvir os bois, na azáfama dos dias idos, o café cheiroso, a sofrida escravaria, o alambique suando sua cachaça. Assentados no batente de pedra preta preparamos o fogo, esquentar o feijão da jornada a ser longa, rumo do São Gonçalo. Nem não ouvimos os passos descalços, felinos rudes, do ancião que nos chegou por entre as moitas de gravatá e erva-cidreira no antes-quintal. Velho que perdeu da lembrança o tempo, visão saída de uma história de antanho, conto de assombrar. Mas ainda vivo, mesmo, pitando um cachimbo de barro cozido-queimado, em fogo de terra, seus olhos eram só crianças rindo, rapazes, olhos de não querer ir. Avô-menino. Ele: Tadeu, Sôtadeu pai-véio, do Queluz, ali vivera inteira vida, em moleque escravo foi. “Aqui pousô o Imperadô e sua fia Izabé, andano mundo...” disse em sua voz que era um só-suspiro, quase um ah. Mostrou-nos a medalhinha de um santo apagada já a efígie, “presente-da-princesa-branca”, piedosa em suas saias todas, no beija-mão.

(In: Memorial, p. 23-24)

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Ia-se bem a fazenda, Sôtadeu remembrava, voejava em seus olhinhos de criança no mundo só, voltava ao tempo longe, lá. De tudo dava, fazia gosto: capado, rapadura, milho, frutal frutaria, galinhas, mel, madeirame. Peroba e cabiúna, candeia e jacarandá. O velho Pacheco e a filha por casar; matriórfã, tia-velha a cuidava. Moça loura de olhos d’água, pele alva de não pegar sol, suave e alegre, que prazia cantar e coser, só só, Angélica, angelical. Léguas em volta só reinava, os mancebos todos seus criados, de adoração. Um sorriso seu e o mundo se mudava todo em ouro, alegre-feliz, bobo mundo. Só mandava, mesmo se pedisse. Só mandava. Nem o pai lhe podia oposição, amor que grande lhe tinha. Nem lhe ordenou marido, como os costumes, nos oitocentos e tantos – do Imperadô. Um dia o velho enfermo mal, de longe tudo se arranjou do melhor da medicina, da capital, até os reclusos tambores da antes-senzala soaram noite adentro esconjurando o mal, benzeções. Calou-os o padre, chegado com o doutor novo, curador do governo. Desenganado, o velho sem netos. A filha-princesa decide então casar-se às pressas, mandou arautear nas grotas todas, nos Coelhos, Acuruí e São Vicente. No Santo Antonio do Monte e nos Portões. Deram-se as novas em Sabará e Ouro Preto, nas Congonhas serranas. Os pretendentes todos, chegando e chegando, com presentes; rosas muitas, garrotes taludos, baios encrinados, cofretes com anéis, fazendas-de-França, perfumes de mil-reis a gota, licores de Portugal, sabonetes Granado, colares. A todos recebeu, igual igual, sem preferência. Uns só com os pais, a pretexto de visita. Outros com a família quase inteira, para dias, a casa se enchendo, os muitos quartos e varandas vozeirais. Matou-se um boi, depois outro. Era uma quase festa, não fosse a desdita, doença malsã, quebranto sem cura de reza. Armou-se botica no gabinete onde assistia o doutor que, a mando do chefe, atendia a todos, velhos e crianças, mesmo os pretos, rijos, que lá iam de-chapéu-na-mão, descalços como no tempo do Chico Capitão, do cativeiro, do açoite brabo no tronco que se derrubou depois, muito depois, quando a Calado recebeu o monarca. Veio até um George, inglês da Morro Velho, louro e magro rapaz de uais e gudis, falaz. A nenhum esperançou, nada de mais, desamou e não quis, desconversou.

(In: Memorial, p. 25-27)

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Um um, de nome João, chamado Titonho, pobre de nada ter, boa-gente do Córrego do Lobo, com sitiozinho de pouca cana no Acuruí, defronte o rio, até cuja casa chegava forte o estrondo da cachoeira grande do Velhas e a neblina fria, noites adentro, trovejo na cheia. Seu pai, anos antes, comprara o sítio ao velho Pacheco em muitas quantas prestações, que o velho em pessoa costumava ir receber, à guisa de visitar os muitos afilhados no arraial. Titonho sempre à enxada, nunca fora fôra, só-ali só, só. Rapagão bem-feito, braço forte, pele tostada ao sol, digno, respeitoso, silencial. Fidalgaz. Foi à Calado, a ‘do Cruzeiro’, levar os mil-réis da prestação, o combinado. Um balaio de doces e uma partida de farinha, por ser da melhor de léguas muitas, qual bahiana, de fama, fina e amarela, rara. Apeou, saudou, entrou. Louvado seja Nossinhô Jesus Cristo... “Louvado seja...” A moça o viu, perdeu falar, tresriu no olhar, palpitou. Ele sem gracejos, sem graça, pagou, pouconversou curto, saiu. Sem dar ar, firme rio acima. Junto o perdigueiro, soldadaz, escudando. Ela desentendeu, dispensou os querentes restantes, insoniou, casamental. Publicou: João Antonio Corrêa dos Reis de Tal, Tinhonho pobre, cristão do arraial, sem ouro ou cabedal, seria o noivo. Ele, já comprometido com certa Esmeralda, vivente no Chancudo, beleza morena humilde jambo, sobrinha do padre Joaquim, pároco da Boa Viagem de Itaubira do Campo. De palavra e amor. Data marcada para o ano, apadrinhados.

(In: Memorial, p. 28-29)

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Cavalo arreado, hora de ir. De chapéu na mão, o ancião nos rezou um adeus negro.

(In: Memorial, p. 30)

 

 

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Amani era um menino muito esperto. Levantava cedo, ordenhava as duas cabras da família e colocava o leite na talha, para juntar e fazer queijo. Também catava os frutos caídos da grande árvore que ficava ao lado da cubata e dava milho às galinhas, que eram muitas e levantam bem cedinho, tão logo o sol dourava as folhas do velho baobá, no centro da aldeia.

O pai de Amani era um soldado do rei e passava fora a maior parte do tempo, protegendo o palácio do rei ou ajudando a resolver problemas em outras partes do reino. Já sua mãe, Abasi, era a curandeira da aldeia, onde havia mais flores e onde a horta era mais sadia.

Porque acordava cedo, Amani almoçava cedo, e depois ia para a Casa dos Anciãos, a escola da aldeia. Lá, aprendia de tudo um pouco: ler os sinais da natureza, as fases da lua, os aromas das ervas, entender os animais de casa e do mato, construir casas, fazer arcos, flechas e escudos, lutar com leões e dominar os segredos da floresta, cheia de mistérios. Quando voltava para casa tinha sempre uma novidade para contar.

(Amani, p. 5).

 

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Um dia Amani acordou com uma gritaria no meio da noite. Estava escuro e sua irmãzinha chorava muito, parecia estar com muito medo. Ele levantou-se para ver o que era e viu um monte de gente desconhecida espalhada pela aldeia. Estavam vestidos e pintados para a guerra, de cara fechada. Tiravam as pessoas de suas casas, outros pegavam as coisas de valor. Amani já ouvira falar deles eram ladrões! Alguns deles entraram em sua casa e levaram sua mãe e sua irmãzinha. Um outro o pegou pelo braço e levou-o para perto da fogueira. Pegaram sua irmãzinha e a entregaram para uma das vovós da aldeia, depois mandaram os outros fazerem uma fila, amarraram todos com uma corda e começaram a caminhar.

(Amani, p. 13).

 

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Em certo momento tiveram que atravessar um rio. Amani já viera ali uma vez, com seu avô, para ver os elefantes se banharem. Às vezes apareciam hipopótamos abrindo suas bocarras e soprando água para cima. Bem no meio do rio, onde a água chegava até seu pescoço e a correnteza era mais forte, Amani pisou num buraco e caiu. Sua mãe quis ajudá-lo, mas os ladrões bateram nela com uma vara e ela teve que seguir em frente, chorando e gritando seu nome. Ele foi descendo rio abaixo, vendo sua mãe e seus parentes cada vez menores até sumirem numa curva do rio. Seu choro se misturava com a água, o rio todo chorava com ele. Nadou então até a margem e voltou correndo para casa.

(Amani, p. 15).

 

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Entradas e Serviços

(Para Milton Nascimento)

Quando eles chegaram
eu estava absorto
no meu tempo
trabalhando ferro,
plantando,
fazendo
minhas próprias guerras.

Tinha as portas abertas
pois pouco sabia deles
entraram com suas armas
me tiraram da cama
justo quando descansava.

Me puseram correntes
e caminhei
os mares
no ventre fétido
de grandes barcos.

Cheguei em terras
que haviam tomado de outros
fiz tudo por aqui
enquanto eles
de braços cruzados,
bebiam meu suor.

Seu tédio era tão grande
que ainda lhes dei
chula, samba, mambo
blues, rumba, calipso
jazz
para vê-los, pelo menos
mexer suas carcaças inertes.

Hoje vendo esse passado
posso, devo dizer
não.
Estou mais do que farto
de entrar pela porta dos fundos.

(Atabaques, p. 15)