Litania dos pobres

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.

Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos espaços.

Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do esquecimento.

Perdidas na correnteza
Das culpas da natureza.

Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras 
Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios
Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos destinos!

Ó pobres! O vosso bando
É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo...

Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.

Nos areais e nas serras
Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,
Das esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo 
Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas
De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta 
Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto 
Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece,

Ó pobres de ocultas chagas
Lá das longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho...

Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas 
Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, de indolências
E graças e quint’ essências.

Que já livres de martírios 
Vêm festonadas de lírios.

Vêm nimbadas de magia,
De morna melancolia !

Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo
Dos sopros que vêm do largo...

Radiantes de ilusionismos,
Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos
Bóiam nelas cisnes vagos...

Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva  
De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente
Do velho sonho dolente.

Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.
(Faróis. In: Obra completa, p. 149).

 

Crianças negras

Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando
Desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa musica dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
Num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes-quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício a estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!
(O Livro derradeiro. In: Poesia completa,  p. 378-381). 

 

Da Senzala...
 
De dentro da senzala escura e lamacenta
Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta
Tornando meretriz
 
A alma que ele tinha, ovante, imaculada
Alegre e sem rancor,
Porém que foi aos poucos sendo transformada
Aos vivos do estertor. . .
 
De dentro da senzala
Aonde o crime é rei, e a dor - crânios abala
Em ímpeto ferino; ­
 
Não pode sair, não,
Um homem de trabalho, um senso, uma razão. . .
e sim um assassino! 
(O Livro derradeiro. In: Poesia completa, p. 202).
 
 
Escravocratas
 
Oh!. trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados - bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.
 
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar - formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha - enquanto o grande basta
 
O basta gigantesco, imenso, extraordinário -
­Da branca consciência - o rutilo sacrário
No tímpano do ouvido - audaz me não soar.
 
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d' estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar! 
(O Livro derradeiro. In: Poesia completa, p. 201).

 

Dilema
Ao Cons. Luís Álvares dos Santos
 
Vai-se acentuando,
Senhores da justiça - heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade. . .
E quando, em breve, quando
 
Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis - batendo o preconceito. . .
O dia da razão, da luz e do direito
- solene trilogia ­-
 
Quando a escravatura
Surgir da negra treva - em ondas singulares
De luz serena e pura;
 
Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!
(O Livro derradeiro. In: Poesia completa, p. 202).

 

O Emparedado


Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa! Fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios! 

Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso ainda nos vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me nos olhos, quente, inflamada, na linha longe dos horizontes em largas faixas rutilantes.

O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.

Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos, destacados, mais agora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido, vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto sonho...

E, descidas, afinal, as névoas, as sombras claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas começavam a desabrochar florescentemente, numa tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e erradias fadas de Lendas...

Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da Esperança...

Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas.

Recordações, desejos, sensações, alegrias, saudades, triunfos, passavam-me na Imaginação como relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico de pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes, de tochas acesas e fumosas, de turíbulos cinzelados, numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais, de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e serena, pitorescamente aureolada por mares cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a melopeia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos deixados para trás na arrebatada confusão do mundo.

Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados virgens, de majestade significativa, parecia-me surgirem do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da amplidão saudosa daqueles céus...

Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma vida inteira, circulada de acidentes, de longos lances tempestuosos, de desolamentos, de palpitações ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos de cem cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...

Era como que todo o branco idílio místico da adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em Imagens e Visões do Desconhecido, caminhava para mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.

Ou, então, massas cerradas, compactas, de harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam em gritos, em convulsões, em alaridos nervosos, em estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a delicada alma sutil dos ritmos religiosos, alados, procurando a serenidade dos Astros...

As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de relicários inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro em mim, como um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.

Ah! aquela hora era bem a hora infinita da Esperança!

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!

Porque estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!

Por isso é que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo quanto eu mais eloquentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.

Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste.

Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!

Fiquei como a alma velada de um cego onde os tormentos e os flagelos amargamente vegetam como cardos hirtos. De um cego onde parece que vaporosamente dormem certos sentimentos que só com a palpitante vertigem, só com a febre matinal da luz clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem ou que não chegaram jamais a nascer porque a densa e amortalhante cegueira como que apagou para sempre toda a claridade serena, toda a chama original que os poderia fecundar e fazer florir na alma...

Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!

Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes.

De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!...

E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações.

Mas, foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada, mais ensanguentada que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem todas as paixões da terra, tumultuosas como florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu nefando Crime.

Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranquila, na consoladora e doce paragem das Ideias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas.

Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!

Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígene alacremente flutuavam através dos estilos.

Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras, as densas argumentações e saberes, desdenhar os juízos altos, por decreto e por lei, e, enfim, surgir...

Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.

Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.

Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade.

O temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: — precisava, pois, tratados, largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos latinos, para sarar...

Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio admirável, cheio de sensações imprevistas, de curiosidades estéticas muito lindas e muito finas — um compêndio de geometria!

O temperamento entortava muito para o lado da África: — era necessário fazê-lo endireitar inteiramente para o lado Regra, até que o temperamento regulasse certo como um termômetro!

Ah! incomparável espírito das estreitezas humanas, como és secularmente divino!

As civilizações, as raças, os povos degladiam-se e morrem minados pela fatal degenerescência do sangue, despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida, sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.

Um veneno corrosivo atravessa, circula vertiginosamente os poros dessa deblaterante humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras quentes e funestas das guerra!

Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo movimento da conservação e propagação da espécie, frivolamente lutam e proliferam diante da Morte, no ardor dos conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi genital, animal, de perpetuarem as seivas, de eternizarem os germens.

Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá e além, na vastidão funda do Mundo, alguma cousa da essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua, fecundando e inflamando os séculos com o amor indelével da Forma.

É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de bem remotas origens, que raros Assinalados experimentam, envoltos numa atmosfera de eterificações, de visualidades inauditas, de surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nas correntes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e nas suas trevas, conciliados supremamente com a Natureza.

E, então, os temperamentos que surgissem, que viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente lavados para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos e impetuosos para as extremas fecundações, com a virtude eloquente de trazerem, ainda sangradas, frescas, úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes vivas e profundas, os germens legítimos, ingênitos, do Sentimento.

Os temperamentos que surgissem: — podiam ser simples, mas que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos, trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico assinala.

Poderiam também parecer obscuros por serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempre determinativas da índole, da feição geral de cada organização.

Os lados mais carregados, mais fundamente cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em origens novas e de excepcionalidades não seriam para complicar e enturvecer mais as respectivas psicologias; mas apenas para torná-las claras, claras, para dar, simplesmente, com a máxima eloquência, dessas próprias psicologias, toda a evidência, toda a intensidade, todo o absurdo e nebuloso Sonho...

Dominariam assim, venceriam assim, esses Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos Reinados do Ideal, apenas, unicamente por fatalidades impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por justaposições mecânicas de teorias e didatismos obsoletos.

Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com a alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus dous pequeninos olhos gulosos de símio.

Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e devoraria reconditamente todos esses Imaginativos dolentes, como se eles fossem abençoada zona ideal, preciosa, guardando em sua profundidade o orientalismo de um tesouro curioso, o relicário mágico do Imprevisto — abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para sempre sepulcralmente fechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos sacrílegos.

Assim é que eu sonhara surgirem todas essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de um alto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais.

Essa é que fora a lei secreta, que escapara à percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa, por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental sentido à parte, vivido à parte, — simples, obscuro, natural, — como se a humanidade não existisse em torno e os nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.

Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os, subjugando-os amplamente.

Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador pecado...

Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento — e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.

Afinal, em tese, todas as ideias em Arte poderiam ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que não quereriam dizer que fossem más.

No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse voos, não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação representativa de clichês oficiais e antiquados.

Quanto a mim, originalmente foi crescendo, alastrando o meu organismo, numa veemência e num ímpeto de vontade que se manifesta, num dilúvio de emoção, esse fenômeno de temperamento que com sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem surgindo e formando em nós os maravilhosos encantamentos da Concepção.

O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado, insensível então aos atritos da frivolidade, indiferente, entediado por índole diante da filáucia letrada, que não trazia a expressão viva, palpitante, da chama de uma fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.

Muitos diziam-se rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam.

Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas ideias. Rebeldias e intransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!

Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo, perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando logo as curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais, mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.

Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades satânicas, no fundo frívolas, e que a maior parte, inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal, fazendo esforço supremo de conservar a confusão e a complicação do meio, transtornar e estontear aquelas raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem já com algum nebuloso segredo.

Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as ideias e os sentimentos que, estando dispersos, formavam a temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e trabalhar algumas páginas, alguns livros, que por trazerem ideias e sentimentos homogêneos dos sentimentos e ideias burguesas, aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de aplausos...

Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez, evidenciando com flagrância, traindo assim o fundo fútil, sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética, sem a ideal radicalização de sonhos ingenitamente fecundados e quinta-essenciados na alma, das suas naturezas passageiras, desapercebidas de certos movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por fórmulas fatais, que arrancam das origens profundas, com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias a toda e qualquer análise, tudo o quanto se sente e pensa de mais ou menos elevado e completo.

Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por modernismos falhos apanhados entre os absolutamente fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no entanto, tanto aparentam correção e serena força própria.

Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais que gravam, que assinalam de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter imprevisto, extra-humano, do Sonho.

Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de conservação, a habilidade de nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos cálculos e efeitos convencionais.

Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado, colhe e prende, com as miragens e truques da nigromancia, a frívola atenção passiva de um público dócil e embasbacado.

Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos, todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes duendes da Meia-Noite, verdes, escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os guizos das sarcásticas risadas...

Almas tristes, afinal, que se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação, murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações, melancolicamente, melancolicamente, como a decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados do Sol...

Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontra fundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!

Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho — supremo Redentor eterno!

Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a garganta como uma poeira triste, muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila pobre por onde vai taciturnamente seguindo algum obscuro enterro de desgraçado...

Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho tranquilo! Pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e de Vida!

Se alguma nova ventura conheço é a ventura intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado sentir essa ventura. Se alguma cousa me torna justo é a chama fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante que se exala de um verso admirável, de uma página de evocações, legítima e sugestiva.

O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme...

Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios...

Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a característica que denota a seleção de uma curiosa natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com os delicados escrúpulos e susceptibilidades de uma flagrante e real originalidade sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem cotterie e anais de crítica, mas com a força germinal poderosa de virginal afirmação viva.

D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam, perscrutam todas as células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças; mas só escapa à penetração, à investigação desses positivos exames, a tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.

Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentações que, parecendo as mais puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre deficientes e falsas.

Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio, mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta clarividência, da sua inata perfectibilidade celular, que é o gérmen fundamental de um temperamento profundo.

Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da cotterie.

Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os requintados, os sublimes iluminados por um clarão fantástico, como Baudelaire, como Poe, os surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos, os inflamados, devorados pelo Sonho, os clarividentes e evocativos, que emocionalmente sugestionam e acordam luas adormecidas de Recordações e de Saudades, esses, ficam imortalmente cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da Natureza, chorados e cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!

Ah! Benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! Soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloquente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!

A verdadeira, a suprema força d’Arte está em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloquência o mistério, a predestinação do temperamento.

É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas preestabelecidas que a julguem, — para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol.

Até mesmo, certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma alteração podem trazer ao sentimento geral de ideias que se constituíram sistema e que afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se suponha, a calma justa das convicções integrais, absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha, dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, imperturbáveis aos apupos inofensivos, sem tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios de uma radiante ironia mais feita de clemência, de bondade, do que de ódio.

O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimento universal mascarado de Liberdade e de Justiça.

Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico absolutamente definido, onde o sentimento d’Arte é silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo o esforço, a batalha formidável de um temperamento fatalizado pelo sangue e que traz consigo, além da condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora ciência d’hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento e, principalmente, do entendimento artístico da palavra escrita.

Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!

Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?

Ah! esta minúscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de carnívoro, é que não pode compreender-me.

Sim! Tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.

Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentir-me, dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão simbólico das convicções pré-históricas, patinhando a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias.

Tu não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d’alma, diante destes deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.

O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia.

Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, já eu antes terei, por certo — eu o sinto, eu o vejo! — te arremessado profundamente, abismantemente pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como um ferro em brasa sobre o organismo da Ideia, cada vocábulo que eu tenha pensado e sentido com todas as fibras, que tenha vivido com os meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado com os meus sonhos, representativos integrais, únicos, completos, perfeitos, de um convulsão e aspiração supremas.

Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa inteletiva, quero ao menos sensacionar-te a pele, ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao sol, pondo abertas e francas, todas as expressões, nuances e expansibilidades deste amargurado ser, tal como sou e sinto.

Os que vivem num completo assédio no mundo, pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta e profunda de como que traduzir, por traços fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da Natureza.

Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes.

Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para ousadamente deflorar as púberes e cobardes inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese, para inocular nas estreitezas mentais o sentimento vigoroso das Generalizações, para revelar uma obra bem fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para, afinal, estabelecer o choque violento das almas, arremessar umas contra as outras, na sagrada, na bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores Anátemas que redimem.

O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.

É de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.

É esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à qual pudéssemos comunicar absolutamente tudo.

E quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma nova torrente espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!

O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modo elementos de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que tudo se turba e convulsiona; e o temerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor imponderável que esse simples Sentimento responsabiliza e provoca.

Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...

Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...

E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite — talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:

— “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de ideias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormedido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho!

Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — polo branco e polo negro da Dor!

Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!

A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante negro!

Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré - inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento humano.

Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha, absurdamente ululante — pesadelo de sombras macabras — visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho..."

(Texto extraído do site http://www.cbj.g12.br/Cruz/emparedado.html)

 

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Conluio das Perdas 

Cuti

Gotas de chuva unidas serpenteiam brilhantes na vidra­ça. O frio da tarde começa a manipular suas agulhas de arrepio. É um frio fora de hora. É só a noite enxugar as lágrimas, o ca­lor volta com toda a sua potência. Mais que nunca, preciso de tempo aberto, de perspectiva espacial, de horizonte, de estrelas ao longe. Fico aqui curtindo saudade, saudade de quem retorna às minhas próprias raízes e, ao mesmo tempo, me abandona nesta São Paulo de tantos sonhos e decepções.

Não fosse aquela história de "hora errada em lugar erra­do", talvez eu tivesse a sua companhia, ainda por muitos anos, a meu lado.

Feito o exame de corpo de delito e tomadas as providên­cias médicas, quando retornávamos para casa, eu disse, entre outras coisas: Vamos vencer isso. Não desanima. Eu já passei por isso também.

Falei, mas era mentira. Havia, sim, vivido alguns vexames do tipo: pai da namorada, ao me conhecer, impede o namoro; ser barrado em porta de prédio ou me indicarem o elevador de serviço quando eu era visita; não ser servido em restauran­te ou tomar chá-de-cadeira; ser preso por vadiagem, mesmo com a Carteira de Trabalho assinada... Enfim, eram fatos que me haviam feito sofrer, mas nada daquilo se igualava ao que acontecera.

Depois de desabafar comigo, imensa muralha ergueu-se entre nós. Em minhas investidas de aproximação, ele apenas sorria como quem diz: "Preciso ficar em paz." Até que, um dia:

Vou embora – disse, com o olhar perdido.

Uma incisão profunda em meu ser. Desde Helena eu não perdia ninguém. Haviam se passado treze anos daquele adeus que ainda está aqui, como uma cicatriz em minha memória.

Ela perdera a cor. O brilho dos olhos havia sumido sob uma névoa de desencanto. Sete anos de um casamento cheio de alegria e realizações iam chegando ao fim. O futuro vinha como densa neblina cobrindo o rio por onde eu deslizava len­tamente para grandes interrogações de minha vida. A maior dúvida era como explicar tudo aquilo a uma criança que estava ali sem entender o meu cismar e o definhar de Helena. Foram inúmeros malabarismos verbais e gestuais para impedir que ele sofresse e eu perdesse por completo uma miséria qualquer de possibilidade de reverter o quadro. Em um daqueles dias, ele me assustou ao fazer a pergunta envolvendo a zona que eu ainda recusava encarar: Papai, o que é morrer? Minha memória bloqueou, durante esses anos, a resposta que eu dei. A ideia do fim me aterrorizava. A única lembrança que me ficou da­quele momento foi que eu o abracei muito, como se alguém o ameaçasse sequestrar e eu tivesse de reunir todas as forças para protegê-lo.

Depois, tudo veio como se fosse uma enxurrada de pesa­delos. Naquele dia em que, ao chegar do trabalho para render a enfermeira contratada, ao dar banho no meu filho e colocá-lo diante da televisão, sentar-me na cama e perceber que o grande amor de minha vida punha sangue pelo canto da boca, não me contive. Assim que o médico – que fora chamado às pressas – se foi, meu filho e Helena adormeceram, esvaziei meia garrafa de uísque, chorei muito e decidi que seria melhor lançar a realidade nua e crua sobre a inocência de Malcolm, no dia seguinte, antes de irmos para a escola. Foi então que me surpreendi. Ao me ouvir falar sobre a futura morte (eu usara a palavra exata) de sua mãe, ele retirou do bolso da calça do uniforme escolar um papel muito enrolado que dizia assim: "Querido filho, não posso mais falar, por isso escrevi este bilhete. Guarde-o com muito carinho. Adoro você, mas a doença ficou muito forte e logo eu tenho de ir embora igual o seu gato Leleco foi. Vou deixar você e não vou voltar mais. Todo mundo é assim, um dia vai embora sem poder retornar. Agora, você e seu pai vão viver sem mim. Estude e trabalhe muito para ser feliz. Eu te amo para sempre. Sua mãe."

Depois do féretro, ele, sentado no meu colo, tirou do bolso novamente aquele papel e me deu, dizendo: Guarda ele pra mim, papai. Guardo até hoje.

Com o fato que o fez ir embora, aquelas palavras de Helena voltaram-me com novos sentidos, como se endereçadas a mim e não a meu filho. A sensação de perda veio como uma sombra que estava apenas escondida.

Aos 18 anos, prestando vestibular para Engenharia entusiasmado com o seu sonho profissional, era um filho que muito me auxiliava desde que passamos a viver juntos só os dois. As dificuldades raciais – tema recorrente em nossas conversas sobretudo quando ele sofria alguma discriminação, arranjava uma namoradinha branca ou queria discutir suas tranças – jamais impediram nossos passos. Eu aprendera a enfrentá-las. Sabia que, se tivesse dinheiro, tudo ficaria mais fácil. Assim, sempre busquei superar barreiras para alcançá-lo e ensinei isso a ele. Depois da morte de Helena, Malcolm tornou-se a minha mais importante motivação de viver. E como ele correspondia aos meus incentivos, nossos laços se estreitaram muito. Meu filho tornara-se meu companheiro. Bastava haver qualquer coisa que me aborrecia em alguma de suas atitudes, ou vice-versa, ele me dava alguns leves socos, como quem chama para a briga, e ia me dizendo suas desculpas ou permitia que eu desse as minhas. Eu ensaiava aquela luta com ele e, assim, íamos conversando até, por fim, nos abraçarmos e todo aborrecimento se afastar completamente. Foi dessa forma que ele conseguira me livrar do álcool.

Contudo, às vezes, nós, seres humanos, perdemos a noção de que debaixo de nossos pés existe areia movediça.

Helena, próximo ao ocorrido com nosso filho, do fundo de minha memória parecia reivindicar seu antigo posto de mãe. Esse meu drama íntimo ocorria em sonhos. Sua imagem surgia muito nítida e, repetidamente, para me repreender quanto à educação de Malcolm, coisa que, em vida, raras vezes ela fizera. Após um desses entrechoques oníricos, acordei sobressaltado, com o pressentimento de que algo aconteceria. No sonho, ela, vestida de policial – algo estranho para alguém que fora modista –, brandia um cassetete em minha direção e gritava. Aflitivamente, eu não podia ouvir uma palavra sequer. A cena da noite foi, como de costume, sobreposta pelas atividades diárias, até que, no final de meu expediente de trabalho, o celular tocasse e uma voz autoritária anunciasse a prisão de meu filho ocorrida horas atrás.

Pagar nossas contas era uma tarefa de Malcolm. Durante o intervalo do cursinho, ele foi ao banco. Como de outras tantas vezes, a porta automática travou seguidamente, mesmo quando nenhuma moeda havia em seu bolso. Certa vez, conversando sobre um desses incidentes, meu filho me dissera ser o "automático" da porta giratória um controle remoto nas mãos do segurança que ficava em uma guarita interna da agência e, dali, escolhia as pessoas para realizar uma maior investigação sobre metais. Naquela ocasião, como nas outras por fim, Malcolm conseguiu entrar. Entretanto, antes que ele pegasse a senha e se sentasse para aguardar o atendimento, dois indivíduos muito bem trajados adentraram o banco sem que a porta travasse, renderam o segurança e atingiram com um tiro o colega deste, que estava ao fundo e tentara reagir. Um dos invasores deu o grito, depois de ambos se encapuzarem: Isso é um assalto! Todo mundo deitado no chão com a mão na cabeça! Cerca de dez pessoas, incluindo funcionários, ouviram, durante cinco minutos, ameaças de morte de outros dois ladrões que também haviam invadido o local, já com os rostos cobertos e portando cada qual uma metralhadora, enquanto os dois primeiros, com pistolas em punho, faziam a coleta nos três caixas. Um bandido, fora da agência, trajando uniforme de segurança, afastava os clientes alegando estar o sistema em manutenção e haver falta de energia. Alguém desconfiou e logo a viatura em serviço na região foi acionada.

Quando a quadrilha encetava a sua fuga, foi surpreendida, na saída. Houve tiroteio, os assaltantes retornaram para o interior do banco, ficando um deles de bruços após ter sido baleado.

Pai – Malcolm relatou-me – eu vi tudo. Eles me pularam três vezes. Uma, quando entraram. Outra, quando tentaram sair e, depois, quando retomaram. Eu estava com a cabeça debaixo de uma cadeira, o rosto voltado para a porta e o resto do corpo para fora. Um deles, quando estavam tentando fugir, pisou nas minhas costas. Quando tiveram de voltar, um outro caiu em cima das minhas pernas e a arma dele – uma metralhadora pequena – veio parar próximo do meu cotovelo, depois de bater no meu ombro esquerdo. O cara agonizava. Foram muitos tiros, vidros estilhaçados e uma gritaria geral. Os policiais nem consideraram que havia reféns dentro do banco. Tentei me encolher, mas o peso do homem em cima das minhas pernas travou meus movimentos. De repente a artilharia parou. O que se ouviu naquele instante foi o som de multas sirenes, choros e gritos histéricos. Eu tremia e suava frio. Aí, houve mais dois tiros. Acho que devem ter sido esses que mataram o segurança, aquele que tinha me barrado. Ele tentou reagir mesmo tendo sido algemado pelos ladrões. Então, eu consegui, num impulso, me encolher e fiquei na posição fetal. Só que, quando eu fiz isso, a arma caída ficou mais perto de mim. Fechei os olhos. Foi, então, que me deu uma crise de choro e a minha tremedeira aumentou. Houve, a partir daí, muitos outros tiros. Depois parou tudo, só ficando gemidos. Demorou um tempo assim. Aí, os policiais entraram falando alto, até que senti passos perto e escutei: "Esse daí não mata não! Esse a gente leva." Recebi um forte chute na coxa e agarram minhas mãos que cobriam a cabeça e me algemaram.

Quando Malcolm me contou, chorei abundante e silenciosamente, arquitetando cruéis vinganças. Ele havia sido preso como sendo o único bandido que restara vivo e, por isso, fora maltratado por um dos policiais, até que se pudesse explicar e um funcionário da agência, que fora depor, o reconhecesse como cliente.

Depois de, com a ajuda de amigos, eu conseguir a punição do PM, só me restava continuar insistindo para meu filho se recuperar. Eu o queria de volta aos estudos e Junto a mim. Ele ficou muito tempo sem sair, curou seus ferimentos, mas se recusou a fazer tratamento psicológico e não pegou mais em livros ou apostilas. Por fim, se foi para Salvador, onde eu nasci, mas não tinha parente algum, nem amigos.

O e-mail que ele me enviou no dia de hoje alivia bastante a sua ausência, que deixou imenso o apartamento em que moramos desde o seu nascimento.

"Pai, hoje eu colei lá no Curuzu. Fui para a saída do Ilê Ayê! Rolou um axé, senti maior firmeza. Mesmo com a miséria que tem aqui, os caras representam mesmo o nosso pessoal. Levantam o moral da galera. Trombei uma mina firmeza que você vai gostar. É daqui. Elinalva. Meu coração tá bombando. Ela tem uns esquemas com umas pessoas do bloco e vai rolar um lance de eu desfilar. Se der, vai ser massa. Com essa gata no meu caminho, acho que começo a desencanar daquela treta do banco, do vestibular e de todo aquele estresse. Vou pedir mais uma vez para você me desculpar pelo jeito como eu saí de casa. Foi mal. Você sabe. Você sabe... O importante é que eu estou ficando de boa. Você tá ligado que é o melhor pai do mundo. Quando puder, cola aqui em casa. Um beijo do teu filhão. Malcolm."

Agora eu sei: apesar da areia movediça sob nossos pés, a determinação é que não nos deixa afundar. Quando terminei a leitura do e-mail, com uma preocupação a respeito das decepções amorosas, saltou à minha mente algo que há anos eu havia perdido em mim mesmo. À pergunta de Malcolm, ainda menino, sobre a morte, eu havia respondido: Morrer é ir morar somente dentro dos outros.

Na última noite, minha hóspede maior sorriu-me no sonho e eu senti em meus dedos as delícias do toque em seu cabelo crespo.

A chuva passou. Estrelas lantejoulam o céu. O calor vai voltar. 

(In: Contos crespos, p. 196-202)

 

Texto para download

quando o escravo
surrupiou a escrita
disse o senhor:
- precisão, síntese, regra Estética e boas maneiras!
são seus deveres
ESTÉTICA
enxurrada se riu demais em chuva
do conta-gotas e sua bota de borracha rota
na maior despercebida enchente daqueles tempos
adjetivos
escorrendo ainda hoje
em negrito.

(In: Cuti, Sanga, p. 77).
                   Crespa Cantiga
 
                                                    Cuti
meus cabelos condensam vivências que nenhuma
chapinha alisa
sabem segurar os mistérios da ventania
e segredos miúdos
que o tempo encrespou e encaracolou com esmero
 
não há chapéu que abafe
o axé plantado
por cafunés
 
minha mãe
sabedora de histórias antigas
pôs um véu de paz na cabeça
para enganar o turista
 
do coração da gente
varreu a guerra
mas segredou já no útero:
“a luta continua
e a vitória está na serra
da barriga das mulheres”.

(In: Kizomba de vento e nuvem, p. 32)
Gota Do Que Não Se Esgota
 
                                          Cuti
cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
 
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas
 
cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto
 
ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso
 
é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga
 
cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo
 
é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota
 
cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da equidade
 
cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada.

                       (In: Negroesia, p. 73-74)