Cuti
Jussara pensa que é branca. Nunca lhe disseram o contrário, nem o cartório.
No cabelo crespo deu um jeito. Produto químico e, fim! Ficou esvoaçante e submetido diariamente a uma drástica auditoria no couro cabeludo, para evitar que as raízes pusessem as manguinhas de fora. Qualquer indício, munia-se de pasta alisante, ferro e outros que tais e...
O nariz já não havia nenhuma esperança de eficácia no método de prendê-lo com pregador de roupa durante horas por dia. A prática materna não dera certo em sua infância. Pelo contrário, tinha-lhe provocado algumas contusões de vasos sanguíneos. Agora, já moça, suas narinas voavam mais livremente ao impulso da respiração. Detestava tirar fotografias frontais. Preferia de perfil, uma forma paliativa, enquanto sonhava e fazia economias para realizar operação plástica.
E os lábios? Na tentativa de esconder-lhes a carnosidade, adquirira um cacoete – já apontado por amigos e namorados (sempre brancos) – de mantê-los dentro da boca.
Sobre a pele, naturalmente bronzeada, muito creme e pó para clarear.
Lá um dia, veio alguém com a notícia do “alisamento permanente”. Era passar um produto nos cabelos uma só vez e pronto, livrava-se de ficar de olho nas raízes. Um gringo qualquer inventara a tal fórmula. Cobrava caro, mas garantia o serviço. Segundo diziam, a substância alisava a nascente dos pelos. Jussara deixou-se influenciar. Fez um sacrifício nas economias, protelou o sonho da plástica, e submeteu-se.
Com as queimaduras químicas na cabeça, foi internada às pressas, depois de alguns espasmos e desmaios.
Na manhã seguinte, ao abrir com dificuldade os olhos, no leito do hospital, um enfermeiro crioulo perguntou-lhe:
Tá melhor nêga?
Ela desmaiou de novo.
(In: Negros em contos, 2.ed., p. 118-119).
Cuti
Sou na infância.
A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. Tento segurar a investida, franzindo a testa e petrificando o olhar. Mas não dá. Um calor me esquenta o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça para que ninguém as veja.
A aula continua. E eu detectando risos e fazendo um grande esforço para não lhes dar crédito. Enquanto a professora verifica umas fichas amarelecidas, a sala enche-se de gargalhadas surdas. Ela prossegue. A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. Ela, após tomar fôlego, recomeça, sempre do mesmo jeito acentuado:
Os negros escravos eram chicoteados... – e dá mais peso à palavra negro e mais peso à palavra escravo! Parece ter um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado. Novos suplícios são narrados junto com argumentos entrelaçando-se em grades. Vou mordendo meu lápis, triturando-o.
O clima pegajoso estende-se na sala. O outro garoto negro da classe permanece de cabeça baixa o tempo todo. Nenhuma reação. Uma caverninha humana. Imóvel.
A minha respiração sinto dificultada.
É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco.
Sussurro uma vingança para depois e sinto, pela primeira vez, um ódio grande e repentino, metálico, um ódio branco. A professora, em face da minha reação explodindo nas contrações do rosto, pede atenção com forte autoridade. Manuseia outra vez as fichinhas velhas e prossegue:
Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...
Tremo, encolhido, dolorido diante da possibilidade de ser chamado. Meu coração bate na vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala, sem pedir licença. Chego à privada em tempo.
Defeco o desespero das entranhas.
Olho as paredes e a porta do cubículo. Estão todas rabiscadas. Procuro espaço. Contenho, com bastante esforço, um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um pedaço de jornal não sujo de todo e fico sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso sanitário desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das ideias: “... ponho fogo na escola... veada filha da puta... papel de caderno debaixo da mesa dela... como a bunda de todo branquinho... acendo fósforo... quem me xingar de neguinho... são tudo veado... vou comprar um canivete... dou porrada mesmo!...” E a porta passa a me servir de lousa: “... branco caga no meio...”. Acho graça das coisas que escrevo e continuo.
A agressividade estridente da campainha surpreende-me, então, com meu lápis sem ponta. É o término do período.
Saio. Perambulo sozinho pelas ruas, carregando um mal-estar no meio dos cadernos e um nó de silêncio no peito. No dia seguinte, nada de escola. Vou comer bananas nos vagões da Sorocabana e Joel vem comigo. É meu vizinho, negro também, de outra turma na escola. Entre sutilezas de nosso diálogo, percebo que a “história” da escravidão já espancou mais um por dentro. A gente conversa muito, mas, nesse particular, fica só um silêncio cúmplice, uma bronca em comum, uma solidariedade de quem divide a dor. Não tocamos no assunto, contudo o protesto vem do nosso jeito: falta em cima de falta e nota vermelha, e a gente falsificando os boletins; cartinhas da diretora para os nossos pais, e a gente fazendo assinaturas falsas. As mentiras sempre ao lado da verdade de nosso sentimento de revolta.
Nosso empenho contra os compromissos da escola não dura muito. Alguém vai a nossas casas e dá com a língua nos dentes. Eu e Joel, na volta de um belo passeio, começamos a apanhar no meio da rua. É uma grande surra, de cinta. Fico com vergões nas costas e Joel com uma marca de fivela no rosto para todo o sempre.
A escola de novo. A vigilância aguçada dos nossos pais. Eu e Joel, cada vez mais, com fama de valentes.
Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Neguinho-eu e do Neguinho-Joel. O medo deles é que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito.
É o dia da festa. O dia do diploma. Nossos pais comparecem, sorriem às professoras, e vamos todos cantar o hino debaixo da bandeira verde, amarela, azul e branca. Verde... Meu pai e minha mãe verdes por um instante... CARNE VERDE. E as gargalhadas surdas balançam o pendão da esperança. Com a mão direita sobre o lado esquerdo do peito, não dou importância ao Joel, que faz piadas.
Ouviram do Ipiranga...
Todos cantam. Fico mudo e triste, até sentir dentro do peito um batuque que me vem de longe, do que não sei de mim. Euforia inexplicável. Descubro o Coração.
O tempo não tem tréguas e as lembranças servem de alerta e lamento. Não é todo dia que se é lançado ao passado como uma flecha, em busca de um alvo que sempre nos é obscuro.
Depois do grupo escolar, cada um para seu lado. Um namoro entre uma irmã de Joel e um primo meu, que mora lá em casa, faz com que as duas famílias entrem em choque por causa da virgindade perdida e a gravidez da moça. Nas discussões não falta, nem de um lado nem de outro, o adendo “nego (a)” à frente das pedradas de palavrões. O atrito fica forte, com tira-limpo aos socos e polícia. A família de Joel muda-se para longe.
Nessa época as dificuldades sobem na mesa de casa. Arroz e feijão sem mistura durante meses, com certos dias de nem isso ter. Meu pai se consumindo em uma cama. Eu e o primo à cata de emprego, aturando nãos e fazendo todo “bico” que aparece. Nasce o filho de meu primo com a irmã de Joel. Ela e a criança acabam permanecendo com a gente. Dão o nome de meu companheiro. Fico contente, embora a referência tenha sido a um nosso parente distante.
Depois de tempos – Joel já em um empoeirado das lembranças –, venho saber de seu destino.
É a primeira comunhão de meu sobrinho. Na porta da igreja tenho a notícia de sua prisão. Um conhecido branco, dos tempos daquela amizade, narra com tal ênfase as peripécias de Joel pelo mundo do crime que me faz lembrar dona Isabel, a professora. Desconverso. Tento afogar Joel no esquecimento. Em vão.
Hoje, mais uma entre tantas prisões: Preso o marginal Neguinho Joel – foto em primeira página. A marca da raça e a marca do golpe da fivela no rosto.
As máquinas lá fora não dão folga pra gente. O banheiro dessa fábrica torna-se o único refúgio, apesar do cheiro. Aqui venho ler jornal quando o chefe não está por perto.
Nesta manchete de hoje, no rosto de meu amigo, aquela marca aponta um grito aparafusado com jeito na minha garganta. Mais um aperto: Preso o marginal Neguinho Joel.
Porta e paredes rabiscadas já não adiantam nada. Já nem servem mais ao desabafo!
(In: Contos crespos, p. 160-164).