Os comedores de palavras

 

I. Apresentação

 

Você sabe o que é um “griot”? É como são chamados, na África, os contadores de histórias. Eles são considerados sábios muito importantes e respeitados na comunidade onde vivem.

Através de suas narrativas, eles passam, de geração em geração, as tradições de seus povos.

Nas aldeias africanas, era costume sentar-se à sombra das árvores ou em volta de uma fogueira para, aí, passar horas e horas a fio, ouvindo histórias do fantástico mundo africano transmitidas por estes velhos “griot”.

Este livro fala de um contador de histórias.

De um país distante onde as árvores falam...

De um menino triste...

E de um tambor encantado...

 

II. Os comedores de palavras

 

No distante País das árvores que falam vivia um contador de histórias, que viajava acompanhado de seu filho. Juntos atravessavam rios e montanhas.

Por onde passavam, o contador de histórias tocava o seu tambor e logo histórias nasciam em sua boca. Eram vivas como a serpente do arco-íris.

Ao final das histórias, o contador desafiava os ouvintes:

Vim de muito longe

Para as terras do senhor rei.

Venci o bicho silêncio

e minhas histórias contei.

Todos aplaudiam, oferecendo presentes para o contador e seu filho. Um dia, porém, o Monstro Engolidor de Gentes levou o contador de histórias. O menino ficou triste, tão triste que seu cabelo se esqueceu do sol e da chuva.

O menino estava decepcionado por não saber histórias como o seu pai. Até o tambor tinha adormecido. A tristeza era tão grande que o menino resolveu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras. Lá, ninguém lhe pediria para contar histórias e ele não sentiria vergonha por não sabê-las.

Depois de muito caminhar, chegou a uma casa cercada de árvores com olhos. Ali morava a Senhora-que-viu-tudo-neste-mundo. Ela perguntou-lhe:

– O que você faz tão longe de sua terra?

O menino contou a sua viagem e a luta de seu pai com o Monstro Engolidor de Gentes. Contou também sobre o tambor que adormecera.

Para distrair o menino, a Senhora disse-lhe tudo o que tinha visto no mundo. O menino ouviu com atenção. Em seguida, quis saber o caminho para chegar ao País dos Bichos Comedores de Palavras.

A senhora disse-lhe:

– Você deve viajar até a casa do Senhor-que-guarda-histórias-na-cabeça. Ele poderá ajudá-lo.

Assim fez o menino. E contou suas aventuras ao Senhor, que lhe recomendou:

– Quem pode ajudá-lo é a Senhora-que-tem-alegria-de-inventar-palavras.

Assim fez o menino. E narrou suas aventuras à Senhora, que lhe disse:

– Você não deveria buscar o País dos Bichos Comedores de Palavras.

– Mas sinto-me tão triste, Senhora. O tambor de meu pai adormeceu. Não sei como fazê-lo falar para a felicidade das pessoas.

A Senhora não insistiu, apenas indicou:

– Você precisa caminhar sete noites de lua crescente para encontrar o que procura.

O menino agradeceu e partiu. Depois de sete luas crescentes, avistou uma terra deserta. Seu coração estremeceu de medo. Mas ele avançou. Chegando a um portão de gelo, foi detido por vários bichos comedores de palavras. O mais terrível deles falou:

– Uhó... uhó... uhó... Antes de entrar, você deve dizer quem é. Depois de comermos suas palavras, você poderá passear pelo nosso jardim de silêncios.

Então, o menino que viu tudo neste mundo, que guarda histórias na cabeça e tem a alegria de inventar palavras começou a contar suas aventuras.

Os bichos comiam... comiam... comiam... comiam palavras. Elas eram de todas as formas e de toas as cores. Os bichos não podiam mais comer. Estavam plenos de palavras! Mas o menino continuava a criar histórias.

Por fim, os bichos gritaram:

– Você não pode entrar em nosso país, porque sabe inventar e contar mais histórias do que somos capazes de comer...

O menino estava novamente triste. Não havia lugar para ele no mundo. Caminhou sem direção até encontrar um velho que cuidava das árvores na beira da estrada. Pediu-lhe água e comida. O velho disse:

– Posso lhe dar o que me pede se você me der em troca este tambor.

– Sim, concordou o menino.

E passou as mãos no tambor para limpar a poeira que estava sobre ele. Ao mesmo tempo, começou a contar como viu tudo neste mundo e como venceu os bichos comedores de palavras.

Logo, as pessoas se ajuntaram para escutá-lo. O velho, então, falou:

– Não posso ficar com o tambor. Você é um contador de histórias e precisa dele para alegrar as pessoas.

O menino agradeceu ao velho contando-lhe a história da princesa que se casou com o dia. E seguiu adiante. Por onde passava, agradecia os regalos que recebia tocando o seu tambor. Todos se sentiam felizes por ouvir o menino que viu tudo neste mundo e contava histórias vivas como a serpente do arco-íris.

(Os comedores de palavras, 2003, p. 6-9).

 

Calunga Lungara

 

Vou pôr em palavras

o que não é possível.

São águas-palavras

que se dissolvem.

 

É de Calunga que falo.

 

Pode ser grande ou

pequeno depende

de quem o atravessou.

 

Seu nome

muda com as línguas.

Em umas mata

em outras é oceano.

 

Nele está viajando

quem não tem corpo.

Nós somos marujos

em terra de romaria.

 

Calunga anda a noite

estudando os sonhos.

Acompanha marcas

presas na poeira.

 

Traz medos de presente

medos de família

O maior não mostra

que até ele morreria.

 

Eu pus em palavras

o que não era de falar.

 

O que se diz não é Calunga.

(A Roda do mundo, 1996, p. 30-31)

 

 

****

 

Orfeu

 

Sou eu que marco a cadência.

Geraldo Teodoro Pereira.

 

 

1

 

o carnaval pertence

ao sábado

com narrativas de vagões

mortos sobre o avô

morto

 

spirituals

na vitrola sedan

em 78 45 33 16

rotações

 

o carnaval muda

em sede que se arruma

 

 

2

 

a tarde amadurece

no ar a alegria das mangas

a esperança não

 

no pátio

a sombra das vigílias

 

 

o gato absurdo

 

 

o cabelo cede à vida

ondulação imperceptível

 

a esperança não

 

 

3

 

o mar escreve duras idéias

 

a réclame de aimé césaire

aprende das ilhas

 

mas antes

anota da mudança a muda

 

os negros os mexicanos

os amarelos

audimos um passado ainda vivo

um ritmo intenso

de jardins

 

 

4

 

pedra verde

pássaro

e água

 

a um canto respiram avós

maternos paternos eternos

 

de uma vez sei a morte

os dedos

riscam a pedra

 

 

 

o pássaro

 

 

o negro

o azul

o vermelho

conversam em escalas

águas

 

fluem

 

uma casa ramo

sem obstáculo

em sua madrugada

 

 

5

 

a porta-bandeira deixou

o amor

os nervos de mestressala

mas a noite os reconcilia

 

o vermelho espera

as cinzas de quarta-feira

 

ausentes os rumores o amigo

de infância

longe

 

 

 

assim como o galo

sua frase

 

e os desprevenidos colhedores

de jasmins

 

 

6

 

o carnaval na esquina

lembra o festim e a peste

 

no dia

em que arlequim descobre

os avós

triangulares

 

percorro

as alas o ritual dos possessos

 

e o samba no zinco

enreda a si mesmo

 

 

7

 

os milagres são

quando o sapato cifra um samba

que durasse

perfeitos anos

 

ou a praça inumerável

há quantos séculos

desde os de tia ciata

educando os descompassos

 

na quarta-feira o rubro

o negro

o branco

o brilho da pérola sobre o dia

 

o que se transporta no elance

da porta-bandeira

e o mestressala

(O velho cose e macera. In: Zeosório blues: obra poética 1, 2002).

 

 

****

 

 

Estandarte da agonia

 

Usa-o quem o tece de fios contemporâneos,

embora existisse no passado como estranho.

 

Teceram-no João e Arthur Timóteo da Costa,

estudando na Escola Nacional de Belas Artes:

 

sob os modelos cada um gerou a sua fortuna,

menos esperada, mas livre, na livre loucura.

 

Outro Artur fez seu o estandarte da agonia.

Buscou palavras no abismo e com esforço

 

salvou-as do certo para o incerto hospício.

Como estreitar esse mergulho? Sabemos as

 

rotas do navegante Artur Bispo do Rosário?

Quem mediu sua engenharia? O estandarte,

 

contrário ao que parece, empluma

a navalha onde Arthur estacionou sua nave.

(Blanco. In: Lugares ares: obra poética 2, 2003).

 

 

****

 

Orelha furada

 

Dançar o nome com o braço na palavra: como

em sua casa um maconde.

 

Dançar o nome pai dos deuses que pode tudo

neste mundo e suportar o lagarto querendo ser

bispo na sombra.

 

Dançar o nome miséria, estrepe e tripa que a

folha do livro é. E se entender dono das letras

em sua cozinha.

 

Dançar o nome em sete sapatos limpos para

domingo.

 

Dançar o nome com a mulher nhora dele: a

mulher no seu coração tempestade e ciranda.

 

Dançar o nome com o braço na palavra berço.

(O homem da orelha furada. In: Casa da palavra: obra poética 3, 2003).

 

 

****

Três Tigres

 

MIGUEL DAS LAGES O escrito é mais silêncio, quando li-

do. Certos livros viram camisas europas medalhas.

Nos fazem retratos, vozes ditadas à nossa voz. Sigi-

los sigilosos para nós. Que é feito de minha frase que

a lavra de outra fala inventa?

 

ESTEBAN MONTEJO E de meus riscos, que ordenaram

dizendo ser meu espelho? Palavra ilha armadilha, o

nunca saber se o escrito é o dito. E, no entanto, flo-

resce literatura furta-cor. Que eu mesmo, de tanto

esquecer, talvez, tenha inscrito.

 

CANDELARIO NAVARRO Emprestei meu cavalo se falei

sobre ervas que deram em letra. Umas não é outra.

Mil cabelos se a minha comida, feitura difícil, virou

escrito, o só esqueleto. Eu sabendo dizia o que não

é possível, a ver se com isso escreviam livro.

 

Miguel Esteban Candelario das Lages Montejo Navarro

escreve alguém no delírio de pensar haver-nos escrito.

(Sete selado. In: As coisas arcas: obra poética 3, 2003).

 

 

****

 

Os comedores de palavras

 

I. Apresentação

 

Você sabe o que é um “griot”? É como são chamados, na África, os contadores de histórias. Eles são considerados sábios muito importantes e respeitados na comunidade onde vivem.

Através de suas narrativas, eles passam, de geração em geração, as tradições de seus povos.

Nas aldeias africanas, era costume sentar-se à sombra das árvores ou em volta de uma fogueira para, aí, passar horas e horas a fio, ouvindo histórias do fantástico mundo africano transmitidas por estes velhos “griot”.

Este livro fala de um contador de histórias.

De um país distante onde as árvores falam...

De um menino triste...

E de um tambor encantado...

 

II. Os comedores de palavras

 

No distante País das árvores que falam vivia um contador de histórias, que viajava acompanhado de seu filho. Juntos atravessavam rios e montanhas.

Por onde passavam, o contador de histórias tocava o seu tambor e logo histórias nasciam em sua boca. Eram vivas como a serpente do arco-íris.

Ao final das histórias, o contador desafiava os ouvintes:

Vim de muito longe

Para as terras do senhor rei.

Venci o bicho silêncio

e minhas histórias contei.

Todos aplaudiam, oferecendo presentes para o contador e seu filho. Um dia, porém, o Monstro Engolidor de Gentes levou o contador de histórias. O menino ficou triste, tão triste que seu cabelo se esqueceu do sol e da chuva.

O menino estava decepcionado por não saber histórias como o seu pai. Até o tambor tinha adormecido. A tristeza era tão grande que o menino resolveu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras. Lá, ninguém lhe pediria para contar histórias e ele não sentiria vergonha por não sabê-las.

Depois de muito caminhar, chegou a uma casa cercada de árvores com olhos. Ali morava a Senhora-que-viu-tudo-neste-mundo. Ela perguntou-lhe:

– O que você faz tão longe de sua terra?

O menino contou a sua viagem e a luta de seu pai com o Monstro Engolidor de Gentes. Contou também sobre o tambor que adormecera.

Para distrair o menino, a Senhora disse-lhe tudo o que tinha visto no mundo. O menino ouviu com atenção. Em seguida, quis saber o caminho para chegar ao País dos Bichos Comedores de Palavras.

A senhora disse-lhe:

– Você deve viajar até a casa do Senhor-que-guarda-histórias-na-cabeça. Ele poderá ajudá-lo.

Assim fez o menino. E contou suas aventuras ao Senhor, que lhe recomendou:

– Quem pode ajudá-lo é a Senhora-que-tem-alegria-de-inventar-palavras.

Assim fez o menino. E narrou suas aventuras à Senhora, que lhe disse:

– Você não deveria buscar o País dos Bichos Comedores de Palavras.

– Mas sinto-me tão triste, Senhora. O tambor de meu pai adormeceu. Não sei como fazê-lo falar para a felicidade das pessoas.

A Senhora não insistiu, apenas indicou:

– Você precisa caminhar sete noites de lua crescente para encontrar o que procura.

O menino agradeceu e partiu. Depois de sete luas crescentes, avistou uma terra deserta. Seu coração estremeceu de medo. Mas ele avançou. Chegando a um portão de gelo, foi detido por vários bichos comedores de palavras. O mais terrível deles falou:

– Uhó... uhó... uhó... Antes de entrar, você deve dizer quem é. Depois de comermos suas palavras, você poderá passear pelo nosso jardim de silêncios.

Então, o menino que viu tudo neste mundo, que guarda histórias na cabeça e tem a alegria de inventar palavras começou a contar suas aventuras.

Os bichos comiam... comiam... comiam... comiam palavras. Elas eram de todas as formas e de toas as cores. Os bichos não podiam mais comer. Estavam plenos de palavras! Mas o menino continuava a criar histórias.

Por fim, os bichos gritaram:

– Você não pode entrar em nosso país, porque sabe inventar e contar mais histórias do que somos capazes de comer...

O menino estava novamente triste. Não havia lugar para ele no mundo. Caminhou sem direção até encontrar um velho que cuidava das árvores na beira da estrada. Pediu-lhe água e comida. O velho disse:

– Posso lhe dar o que me pede se você me der em troca este tambor.

– Sim, concordou o menino.

E passou as mãos no tambor para limpar a poeira que estava sobre ele. Ao mesmo tempo, começou a contar como viu tudo neste mundo e como venceu os bichos comedores de palavras.

Logo, as pessoas se ajuntaram para escutá-lo. O velho, então, falou:

– Não posso ficar com o tambor. Você é um contador de histórias e precisa dele para alegrar as pessoas.

O menino agradeceu ao velho contando-lhe a história da princesa que se casou com o dia. E seguiu adiante. Por onde passava, agradecia os regalos que recebia tocando o seu tambor. Todos se sentiam felizes por ouvir o menino que viu tudo neste mundo e contava histórias vivas como a serpente do arco-íris.

(Os comedores de palavras, 2003, p. 6-9).

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O folclore do negro

Edison Carneiro

 

Tem-se geralmente a impressão de que a contribuição do negro constitui a parte mais difícil do folclore brasileiro. Será verdadeira essa dificuldade? 

O desconhecimento do negro brasileiro começa das suas origens. De onde procediam os escravos chegados ao Brasil? Sabemos, vagamente, que vinham da África, mas talvez não possamos apontar exatamente no mapa a situação geográfica desta ou daquela tribo. Na verdade, poucos dentre os brasileiros terão a noção das divisões tribais que existiam entre os escravos. E, agora, em consequência da destruição dos documentos do tráfico, será quase impossível traçar a distribuição espacial dessas tribos no território nacional. 

Não é de agora este descaso, este desinteresse pelas origens do negro. Sob a escravidão, — se excetuarmos, naturalmente, as guarnições dos navios negreiros, — não se sabia muito mais. Ainda em 1868, em plena São Paulo, Castro Alves comovia os seus ouvintes descrevendo, como a pátria dos escravos, as regiões do deserto do Sahara e do vale do Nilo. O negro residente no país foi qualificado, abundantemente, de etíope, nos trabalhos de Melo Morais Filho e de Manuel Querino. O costume do tráfico, de dar às peças a denominação do porto de origem, dava margem a novas confusões. 

Podemos resumir a questão dizendo que o negro foi trazido para o Brasil de uma região que vai do Gólfo da Guiné, até a colônia portuguesa de Moçambique, excetuando a ponta meridional do continente, terra dos bosquimanos e hotentotes. Essa região é o habitat do "verdadeiro negro”. Daí nos chegaram nagos, gêges, haussás, tapas, minas (tshis e gás), mandês (mandingas), angolas, congos, benguelas, monjolos, moçambiques… - uma infinidade de tribos. Também estas tribos podem ser, e na verdade já o foram por Nina Rodrigues, reduzidas a dois grandes grupos — sudaneses e bantos. O primeiro grupo abrange, principalmente, nagôs e gêges, minas e mandingas, e, mais para o interior, os haussás. O segundo compreende especialmente angolas, congos e moçambiques. Há certa homogeneidade em cada qual desses grupos. Os sudaneses habitam praticamente a mesma região e têm costumes parecidos. A única exceção está na tribo islamizada dos haussás. Quanto aos negros bantos, a homogeneidade é ainda mais flagrante, pois, além de se verificar no habitat e nos costumes, estende-se à língua. 

A dificuldade - se existe — começa quando sentimos a necessidade de, para entender o folclore do negro brasileiro, estudar os costumes dos povos africanos que deram escravos ao nosso país. Neste ponto, é essencial que recorramos à etnologia e à linguística. A primeira destas disciplinas nos dará notícias imprescindíveis sobre as concepções, o estilo de vida, os costumes dos povos que nos interessam. E, com o auxílio da segunda, poderemos encontrar, aqui, os fios perdidos que ligam o negro africano aos seus descendentes brasileiros. Mas a grande dificuldade, a dificuldade verdadeira, está na relutância com que nos dispomos a encarar os problemas do negro…

Ora, temos de confessar que os estudos brasileiros do negro não esclarecem, antes confundem ainda mais a situação. Todos se lembram do apelo desesperado de Sílvio Romero para que se estudasse, com urgência, o que de positivo restava do negro, sob pena de se perder completamente essa oportunidade. Nina Rodrigues, que atendeu a esse apelo, teve de começar do princípio. Não havia pesquisadores antes dele - e depois dele foram e são poucos os que se dedicam a desenterrar o passado ou a perquirir o presente do elemento de cor. Sendo poucos, os pesquisadores do negro se restringiram ainda mais, fazendo do seu campo de pesquisa a religião e, em proporção muito menor, o folclore. O grande documentário de Nina Rodrigues ficou, infelizmente, incompleto. Os seus continuadores, e especialmente Artur Ramos, só secundariamente se interessaram por outros problemas que não o das concepções religiosas. Os Congressos Afro Brasileiros do Recife e da Bahia e, ultimamente, o Congresso do Negro Brasileiro, no Distrito Federal, alargaram o campo de interesse, mas não suficientemente.

Com efeito, há uma lacuna essencial nesses estudos. Não se encara a vida do negro de um ponto de vista dinâmico. Praticamente, o que se faz é a história do negro, e nem sempre com os métodos e materiais mais recomendáveis ou fidedignos, senão com certo saudosismo. A exceção de trabalhos de antropologia física, devidos principalmente a Bastos de Ávila e Maria Júlia Pourchet, e de uma ou outra pesquisa em torno de contos e lendas, pode-se dizer que em geral esses estudos não se baseiam em inquéritos e trabalhos de campo rigorosamente científicos, quando não são apenas memórias da adolescência e da juventude. Esses estudos não tratam das várias forças sociais que influíram e influem sobre o negro — e a literatura já existente é assustadoramente pobre quanto a problemas como comportamento social, criminalidade, natalidade e mortalidade infantil, possibilidades educacionais e artísticas, higiene, sexualidade, ascensão social, etc. 

No referente ao folclore, o número de trabalhos existentes chega a ser ridículo. Silvio Romero não teve muita sorte, na caracterização dos contos populares de influência negra. O capítulo de Nina Rodrigues sobre folclore ficou inacabado, mas, na parte que dele resta, podemos notar que não teria adiantado muito. Não se pode dizer que sejam estudos de folclore as crônicas pobres de Manuel Querino ou as descrições literárias de Melo Morais Filho. Mas já são aquisições positivas a coletânea de contos populares que se deve a Silva Campos, em que há pelo menos algumas estórias de indiscutível procedência africana, e o livro de Artur Ramos sobre o folclore negro. Não direi que este livro seja definitivo, nem que nele se encontrem todas as manifestações folclóricas do negro. Pelo contrário, o livro é esquemático demais, ressente-se da falta de conhecimento direto do assunto e, para cúmulo, se serve da psicanálise, uma diversão pseudo-científica muito em moda antes da guerra. Mesmo incluindo o livro de Artur Ramos, que bem ou mal é um tenta tiva de estudo em conjunto do problema, podemos dizer que todos os pesquisadores deixaram de reconhecer fenômenos importantíssimos do populário de influência negra e fizeram, em torno daqueles que anotaram, estudos deficientes e precários.

Com efeito, a grande contribuição folclórica do negro está nos folguedos que nos legou -. e não nos contos e em geral na literatura oral que chegou até nós. Creio que, neste setor, mais do que em qualquer outro dos estudos do negro, impõe-se uma revisão cuidadosa e metódica, pois será aqui, sem dúvida, que encontraremos o negro comportando-se como brasileiro. 

Os estudos sobre o negro se têm concentrado sobre as suas religiões - exatamente aquela parte da vida do negro em que ele mais resiste à sua nacionalização. E, neste capítulo, os trabalhos mais notáveis se referem ao culto nagô: Nina Rodrigues, Artur Ramos e Manuel Querino lhe dedicaram vários livros e trabalhos diversos. O culto dos gêges foi recentemente estudado por Nunes Pereira e por Otávio Eduardo. Os pesquisadores do Recife, embora sem o mesmo rigor etnográfico dos da Bahia, e na verdade guiados pelo preconceito de que as religiões do negro são um problema de higiene mental, estudaram os cultos nagô e gége, na forma sincrética em que se encontram na capital pernambucana. Somente a macumba carioca não teve ainda um pesquisador à altura da sua importância. É significativa essa ausência de pesquisa científica, pois a macumba, embora seja nela decisiva a influência do negro, admite práticas de magia europeia, superstições medievais e crenças ameríndias, que podemos resumir no espiritismo, no catimbó e na pajelança, — quero dizer, a macumba já é uma religião popular, que assume cada vez mais esse caráter. Na macumba carioca talvez esteja o caso extremo, e sem dúvida singular, em que as religiões do negro, abrindo mão do seu arraigado sentido tribal, entram em fusão aberta com as concepções religiosas de outros grupos étnicos. 

Ora, essas religiões do negro são na verdade religiões nagôs, e secundariamente gêges. Tentei provar esse ponto de vista no meu Candomblés da Bahia: as seitas religiosas que trazem os nomes dos povos de Angola e do Congo não são mais do que adaptações das crenças dos nagôs e, em grau menor, dos gêges. O Islão chegou ao Brasil através dos haussás e de elementos nagôs e tapas que com os haussás já tinham contato, na África, mas as suas práticas religiosas desapareceram, especialmente em consequência da repressão aos movimentos insurrecionais que desfecharam na Bahia, mas talvez, também, por não se acomodarem à condição de vida e às possibilidades intelectuais dos escravos. Os géges modificaram levemente as concepções nagôs, mas só no Maranhão conseguiram alguma importância, com a tradicional Casa das Minas. 

Dos nagôs e dos gêges pouca coisa restou no folclore nacional. Esses povos, agricultores e artífices, estavam bem plantados nas suas terras ao começar o tráfico de escravos. As condições da escravatura fizeram com que toda a sua atividade extra doméstica, no Brasil, se concentrasse nos candomblés, que foram a sua grande força aglutinadora. Do seu folclore, por isso mesmo, ficaram apenas os contos, que ainda hoje correm mundo, e, já desaparecido, o jogo do aiú, de que Manuel Querino nos dá notícia, Naturalmente, a esses povos se deve uma série de superstições em torno de Yemanjá, deusa da água, que faziam parte das suas crenças, mas a voga popular da mãe-d'água africana não é obra sua. E já são folclóricos, sem dúvida, o traje cerimonial de filha-de-santo, a "baiana", a pulseira de balangandãs, etc., que na verdade eram vestimentas, costumes e ornatos cotidianos, que só assumiram caráter folclórico devido à situação especial em que aqui se encontraram os seus portadores. 

Dos malês, os negros muçulmanos, restou apenas o camisu. 

Devo declarar que não considero folclore as religiões do negro. Por mais absurdo que pareça, há a tendência a considerar folclóricos esses cultos, que são, em qualquer estado em que os encontremos, uma atividade hierarquizada, com base em concepções intelectuais que, embora não escritas, — ou não escritas no Brasil, — são entretanto eruditas por terem passado, de um modo ou de outro, pela sanção oficial. Chegará o dia, certamente, em que poderemos mencionar esses cultos como folclore, mas, por enquanto, mantendo, como mantém, a sua homogeneidade e a sua força de coesão, são formas religiosas que coexistem com tantas outras na sociedade brasileira. 

Não temos por que incluir aqui o folclore de Pai João. Essa literatura, às vezes sentimental, às vezes repassada de dor e de revolta, mas sempre com um alto sentido de humanidade e de justiça, não é um legado do negro. É uma literatura inspirada no sofrimento do negro, fruto do sentimento popular em relação à escravidão, que, tanto na sua configuração como nas suas maneiras de expressão, se denuncia como parte da literatura oral de origem lusitana, com orientação do seu interesse para a sorte dos escravos. São legítimas, por isso mesmo, as suas qualidades folclóricas. Já não podemos dizer o mesmo quanto ao movimento em favor da Mãe Preta, iniciado em data recente, com o objetivo de mover a piedade dos brasileiros. Movimento demagógico, animado por conhecidos mistificadores e exploradores dos sentimentos do povo, a Mãe Preta não perdurou, a despeito de toda a simpatia que inspiraram e inspiram as antigas amas de leite. Não se pode impor o folclore. 

Se o nagô, o gêge e o negro sudanês em geral nada, ou quase nada, deixaram no folclore brasileiro, a situação muda completamente quando nos referimos ao negro procedente de Angola, do Congo e de Moçambique. Esses negros, principalmente pastores, não tinham uma religião elaborada, corno a nagô, para os absorver completamente. Ao contrário dos nagôs e dos gêges, ou dos sectários haussás, esses negros passavam mais tempo fora do que dentro de casa. Aderiram aqui às religiões do negro sudanês, mas sem se agarrar demasiado às suas concepções, de maneira que possibilitaram o aparecimento de várias formas de culto, inclusive as formas recentes em que já se usa a língua portuguesa e se suprime a necessidade da iniciação. As suas maneiras de lutar, os seus jogos, as suas diversões de conjunto se impuseram em toda parte. Onde melhor se pode notar esta situação é na Bahia: toda a religião do negro está sob o signo dos nagôs ou dos gêges, todo o folclore do negro se deve ao angolense e ao conguês. Além de terem transformado a devoção a Yemanjá em festa pública, os negros bantos, indóceis, gente de pouca confiança dos brancos, transformaram o panorama geral da escravidão. Nas cidades, o nagô era o ganhador, o negro de arruar, a mucama, subserviente ao senhor, enquanto o angola, principalmente, era o revoltado, o malandro, o fazedor de desordens. A estes negros devemos Palmares, parte da Balaiada, os vários quilombos que existiram no país e os motins e levantes de escravos — com exceção, naturalmente, das revoltas malês. 

Se fizermos um balanço consciencioso, notaremos que ao angola devemos muito mais do que aos outros negros bantos, congos e moçambiques. De todos os portos de Angola, de Loanda, de Benguela, de Mossâmedes, do Rio Ambriz, chegaram escravos ao Brasil. E difícil dizer a que tribos angolenses pertenciam esses negros, pois as tribos locais viviam em guerras constantes, quase sempre estimuladas pelos traficantes, e eram os prisioneiros feitos na guerra que vinham para cá. E esses prisioneiros assumiam, nos papéis do tráfico, a nacionalidade do porto de embarque. Desde cedo os homens dessa região foram localizados em Pernambuco, no Maranhão, no Rio de Janeiro, e no começo e no fim do comércio negreiro na Bahia, ponto de concentração preferido de nagôs, haussas e gêges. - As condições de vida, nessas províncias, eram duras e difíceis. Ainda na segunda metade do século passado, os senhores amedrontavam os escravos com a perspectiva de vendê-los para o Maranhão. Em parte alguma a expressão "máquina de trabalho” se aplicou tão bem ao escravo como nos canaviais de Pernambuco. E, no Rio de Janeiro, o negro era caçado nas ruas, oprimido em toda parte, eterna vítima do quadrilheiro da justiça. O angola resistiu a tudo isto, com decisão e bonomia. A ele devemos as duas maiores diversões de procedência africana: o samba e a capoeira. 

A roda de samba, sob uma aparência angelical, de simples diversão de escravos, floresceu nos campos, nas fazendas, nos lugarejos do interior. Um grupo de negros se reunia, formando roda, tendo apenas como orquestra um prato de cozinha, um ganzá ou reco-reco, às vezes uma viola, um bombo ou um pandeiro. Um deles solava, os demais respondiam em coro. E um dos componentes do grupo dançava no meio do círculo, mal levantando os pés do chão, volteando sobre si mesmo, requebrando o corpo... Todos tinham a sua vez de dançar: o dançarino, com uma umbigada, dava o seu lugar a outro. Com estas características podemos encontrar o samba em muitos pontos do país — inclusive no Rio de Janeiro, onde a palavra significa outra coisa. E sem dúvida deve ter influído no coco, especialmente no coco da região entre Pernambuco e Paraíba, o coco de bingada. E aqui mesmo, em São Paulo, o encontramos sob o nome de batuque, certamente já misturado a formas não populares de dança. A leveza da dança, especialmente no passo chamado miudinho, de execução quase imperceptível, talvez tenha contribuído para a voga em que esteve o passo baiano no Nordeste, como naqueles versos do bumba-meu-boi, de outra maneira incompreensíveis: 

... dança bem baiano 

Bem parece ser 

um pernambucano

Há duas coisas que marcam esta dança popular, folclórica, em acelerado processo de urbanização, como herança do angola. Entre as diversões do negro, apenas as de Angola são de provocação: não são diversões fechadas, de que participem somente os componentes do grupo. No caso do samba, a umbigada é a provocação. Além disto, semba é o nome da umbigada em Angola e, de acordo com o testemunho de Pereira da Costa, no seu tempo era com esse nome de semba que os negros do Recife mencionavam a dança. 

Samba, samba de roda, corta-jaca, coco de bingada, batuque, etc., -- todas estas denominações indicam o mesmo "samba rural" que Mário de Andrade pôde estudar em Pirapora. 

Também se deve ao angola a capoeira. Menos generalizada do que o samba, simples jogo de destreza na África, tornou-se aqui, nas cidades, a arma de defesa do angola - do afilhado do senhor, do "negro de sinha", do liberto. Esta diversão de Angola parece ter sido a mais fértil de todas as diversões que devemos ao negro. A capoeira trouxe consigo, como jogo auxiliar, o batuque ou pernada, deu nascimento ao passo ou frevo e contribuiu para o marabacho do Amapá. Floresceu principalmente no Rio de Janeiro, na Bahia e no Recife. Foi o instrumento que garantiu a sobrevivência ao liberto. Todos conhecem o tipo clássico do capoeira — lenço ao pescoço, chapéu de banda, faca à cintura... Era temido no Rio de Janeiro e no Recife, e apenas respeitado na Bahia. Quando os capoeiras se reuniam para uma demonstração amistosa, formavam roda, com orquestra de pandeiro, berimbau e ganzá, faziam a volta ao círculo, aos pares, e vadiavam. Havia, então, uma exibição de extrema agilidade - rabos d'arraia, aús, balões, rasteiras... Diante da polícia, porém, esqueciam as regras do jogo, a lealdade que caracteriza a capoeira, e atacavam por todos os modos e maneiras, a faca e a cacete, e em geral conseguiam pôr em fuga os soldados. E foram os valentões do tempo. Muito cedo começou a repressão policial à capoeira, no Rio de Janeiro, que se intensificou mais ainda no século passado, com portarias da Regência e com dispositivos especiais do Código Penal da República. Perseguidos, caçados a tiros nas ruas, morrendo à míngua nas prisões, os capoeiras desertaram a cena. Na Bahia, somente nos últimos anos do Século XIX se iniciou a repressão: as autoridades recrutaram os capoeiras para a guerra contra o Paraguai. 

As diversões populares oferecem grande resistência à coação. Ao lado da capoeira existia uma forma auxiliar, subsidiária, parte do treinamento geral do angola, que no Brasil tomou os nomes de batuque ou pernada. É uma competição individual. Um dos parceiros se planta, unindo bem as pernas, enquanto o outro, dançando à sua volta, aproveita qualquer momento de descuido para derrubá-lo com uma rasteira. Esta forma de luta, a banda, permaneceu, depois de eliminada no Rio a capoeira. É hoje, sem contestação, a forma de luta do povo, a sua grande arma de defesa pessoal. O batuque existe na Bahia, mas não tem a importância que assume no Distrito Federal. Creio que isto se deva a que, na Bahia, a capoeira não foi suprimida, mas continua em todo o seu vigor, —- e ainda com o seu antigo caráter de jogo tribal. No Recife, a repressão ao capoeira, que ali era o mesmo indivíduo agressivo que conhecemos do Rio de Janeiro, teve início nos começos deste século. Maltas de capoeiras saiam às ruas, armados de cassete, gingando, o chapéu atrevidamente no alto da cabeça, protegendo duas bandas de música rivais. Dos seus saracoteios, dos seus desafios, das suas proezas como guarda-costas dessas bandas, nasceu o frevo ou passo. Os adeptos de cada banda acompanhavam os movimentos dos capoeiras, movimentos que por sua vez se adaptavam à música, já influenciada pelos ritmos descabelados que marcaram os anos anteriores à guerra de 1914. De modo que, saindo da circulação, os capoeiras deixaram no Recife uma das mais legítimas danças populares brasileiras, que vem fazendo furor em todas as nossas capitais. 

A fertilidade da capoeira se manifestou ainda no marabacho, uma diversão semireligiosa do Amapá. É um cortejo em homenagem ao Espírito Santo e, quando o grupo chega diante da igreja, se divide em vários pares, constituídos por foliões ou assistentes provocados por estes, na disputa da capoeira. O jogo se generaliza. Este marabacho, entretanto, está ainda mal estudado, de maneira que a referência a esta diversão se deve fazer debaixo de reserva. 

Menor do que a influência do angola foi a do negro do Congo. Notamos a sua presença nas congadas e nos maracatus — e essas duas diversões incluem, de um modo ou de outro, o cortejo do rei do Congo. As congadas foram assinaladas pelo menos desde o Ceará até o Rio Grande do Sul. Nem sempre os congos as realizam sozinhos: muitas vezes recorrem ao auxílio dos moçambiques. Este auto representaria um acontecimento histórico, a embaixada da rainha Ginga Bândi aos portugueses. Esse caráter de reivindicação da congada já está, porém, muito mascarado, muito diluído, e às vezes mesmo completamente esquecido, em consequência da fusão que em certos pontos se deu entre a embaixada e o cortejo do rei do Congo. Assim, já não se trata de uma luta do povo conguês contra os portugueses, mas de uma luta intertribal, da rainha Ginga contra o rei Cariongo, da rainha de Angola contra o rei do Congo. Pereira da Costa pôde, por exemplo, registrar a congada de Goiana (Pernambuco), em que a embaixada é de paz, e não de guerra. Das congadas que ainda se realizam em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, pode-se dizer que são restos das congadas primitivas. E esta degradação deve ter sido grandemente estimulada pela inclusão, no folguedo, do cortejo dos reis do Congo. Sob a escravidão, a polícia criou o costume de eleger governadores e juízes de nação, responsáveis pelo bom comportamento dos escravos, e acima destes instituiu os reis do Congo, coroados em cerimônias de que partilhava a Igreja Católica. Era para levá-los à coroação na igreja que se organizavam esses préstitos. Instrumento de sujeição dos negros à sociedade oficial, essa festa modificou completamente o panorama das congadas, transformando-as, de reivindicação nacional, em simples diversão ao gosto dos escravocratas. Surpreende, entretanto, encontrar, quase na sua pureza primitiva, as congadas da Lapa 

Em muitos pontos do país a congada não vai além do cortejo dos reis do Congo. No Recife, esse cortejo chegou a atingir brilho excepcional; e, na Bahia, também se apresenta ainda em boa forma. Em ambas as cidades desapareceram as congadas e o cortejo do rei do Congo, tornando-se profano, se transmudou no maracatu pernambucano e no afoxé baiano. O maracatu exibe ainda o rei e a rainha, mas o afoxé, que ainda os tinha em começos deste século, prescinde deles. A Dama do Paço do maracatu tem a sua réplica masculina no Babalotim do afoxé. A disposição de marcha é a mesma – grupos separados de homens e mulheres, as "baianas", a Dama do Paço ou o Babalotim, os reis (no caso do maracatu) e a orquestra. Até o grande guarda-chuva que cobre os reis, no Recife, existia outrora na Bahia, na forma de pálio. Fora destes dois pontos, porém, o cortejo dos reis do Congo nada apresenta de especial. 

Podemos encontrar traços das congadas em outras diversões populares, especialmente o quilombo de Alagoas, que não parece uma criação espontânea do povo, na laia dos índios terenas e no bate-pau. 

E neste ponto, ao falar do bate-pau, encontramos o negro moçambique. Uma afinidade qualquer sempre ligou moçambiques e congos: uns e outros sempre formaram os dois grupos adversos nas congadas; só recentemente os moçambiques se têm apresentado isoladamente, especialmente em Minas Gerais e São Paulo. Este jogo do bate-pau outrora fazia parte da congada, era como lutavam os dois partidos, depois da morte do príncipe Suena. É um jogo ritmado, em que os bastões se encontram três vezes, produzindo um ruído que se adapta bem à letra da canção: 

Nós encruza bastão, 

nós vira bastão, 

sinhô meu rimão 

O bate-pau chegou aos índios terenas, estudados por Kalervo Oberg. Esses índios formam duas filas e realizam manobras em círculos, de maneira que cada qual dos participantes defronta um componente do outro círculo, com o qual troca bastonadas, uma vez em cima, duas vezes em baixo. Sem esta movimentação, o jogo tem as mesmas características em Minas e São Paulo. Com o nome de maculelê, o jogo existe ainda na Bahia, na região açucareira de Santo Amaro, como remanescente dos antigos cucumbis, com a circunstância de se ter transformado em combate singular. 

Outros folguedos devidos ao negro, como o jongo, o caxambu e os catopês, estão ainda pouco estudados para permitir a sua sistematização. 

Este rápido esboço do folclore do negro não estaria completo se não assinalássemos a presença e a influência do negro em quase todas as diversões populares brasileiras. Até mesmo nas cavalhadas, nos fandangos ou marujadas, nas cheganças, que são folguedos caracteristicamente brancos, importados diretamente de Portugal, — o negro participa, e muitas vezes, como no Norte, garante a sua sobrevivência. Os cabocolinhos, como sabemos, são um folguedo de negros, em Pernambuco e na Paraíba. Os ternos e ranchos de Reis do Nordeste estão nas suas mãos - O célebre Terno do Arigofe, da Bahia, era composto inteiramente de negros, - e, em muitos lugares, o mesmo acontece com a folia de Reis. O bumba-meu-boi do Nordeste, da Bahia até Natal, é uma festa de negros. Nada mais natural do que essa participação, já que o negro, como parte do povo, tem vivo interesse no folclore. 

Como sabem todos os etnólogos e todos os folcloristas, este fenômeno nunca se produz em vão. Participando ou promovendo esses folguedos, o negro lhes vai comunicando muito das suas maneiras de ser — graça, vivacidade, liberdade em relação à versalhada tradicional e à música, iniciativa, — em suma, sangue novo. E isto, que para os menos avisados pode parecer uma deturpação condenável, na realidade enriquece esses folguedos e lhes dá, cada vez mais, a nacionalidade brasileira. As modificações de forma e de conteúdo por que passa o folclore correspondem a modificações na composição social e nos motivos de interesse do povo e na estrutura econômica da sociedade. O folclore se adapta às novas condições do ambiente. E, como os animais e as plantas, se fortalece e reanima em consequência dessas adaptações. Posso apontar um exemplo curioso. O rancho de Reis, sob o influxo do samba de roda trazido para o Rio pelos baianos, se fez um cortejo profano e hoje merece os aplausos dos cariocas sob nova roupagem - a escola de samba.

Onde está, portanto, a dificuldade do folclore do negro? 

Vimos que, das tribos africanas chegadas ao Brasil, somente algumas delas – Angola, Congo e Moçambique — contribuíram para o folclore brasileiro; e que, por outro lado, o estudo comparativo desses povos pode ser feito com extrema facilidade, em vista da similitude de língua, de tradição histórica, de costumes e de habitat existentes entre eles na África. Isto exclui a parte realmente complicada e difícil dos costumes dos descendentes dos africanos, constituída pelas suas concepções religiosas, que deixaram no folclore nacional pequenos vestígios, em geral exteriores ao culto como tal. Notamos que as diversões populares que devemos ao negro podem ser contadas nos dedos das mãos, embora, à primeira vista, dada a multiplicidade de nomes que assumem, nos pareçam numerosas. 

Se há dificuldade, esta reside no nosso desconhecimento do negro, das suas origens, das suas lutas, das suas vicissitudes, da sua condição atual. Um desconhecimento que não se compreende, já que o negro, com os seus descendentes de todas as cores, significa mais de um terço da população nacional. E, porque desconhecemos o negro, não empreendemos pesquisas em torno do folclore que nos legou. Não temos pesquisadores do negro. Não nos aproximamos, sequer, das margens do grande rio de alegria e de beleza que o escravo, com suor e sangue, fez surgir no cenário dos seus sofrimentos. Mas o rio corre e um dia se misturará definitivamente a todas as águas que formam a nacionalidade brasileira. Se não o explorarmos, se não utilizarmos a sua energia, se não navegarmos em todo o seu curso, tanto pior para nós.

(In: CARNEIRO, Edison. A sabedoria popular. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1957, p. 65-87)

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Três Tigres

 

MIGUEL DAS LAGES O escrito é mais silêncio, quando li-

do. Certos livros viram camisas europas medalhas.

Nos fazem retratos, vozes ditadas à nossa voz. Sigi-

los sigilosos para nós. Que é feito de minha frase que

a lavra de outra fala inventa?

 

ESTEBAN MONTEJO E de meus riscos, que ordenaram

dizendo ser meu espelho? Palavra ilha armadilha, o

nunca saber se o escrito é o dito. E, no entanto, flo-

resce literatura furta-cor. Que eu mesmo, de tanto

esquecer, talvez, tenha inscrito.

 

CANDELARIO NAVARRO Emprestei meu cavalo se falei

sobre ervas que deram em letra. Umas não é outra.

Mil cabelos se a minha comida, feitura difícil, virou

escrito, o só esqueleto. Eu sabendo dizia o que não

é possível, a ver se com isso escreviam livro.

 

Miguel Esteban Candelario das Lages Montejo Navarro

escreve alguém no delírio de pensar haver-nos escrito.

(Sete selado. In: As coisas arcas: obra poética 3, 2003).

 

 

 

Eduardo

      Wesley Correia

O coração de Eduardo parou
na Avenida Carlos Gomes.

Nós, que o observávamos, comiserados,
éramos a dimensão trágica de sua existência,
contornando como uma parabólica
as razões de seu pênis circuncidado
e tão ausente de conceito.

Nós, diante do corpo jazido,
íamos dotando de sentido a morte
e esvaziando de sentido a vida.

Eduardo nos enchia de movimento místico.
Nós o queríamos apoiar nos ombros,
obrigando-o a regressar à casa:
- Levanta, meu filho, anda,
nos exima dos ardis da ciência.

Nem carece de tanta coragem ou medo,
pois que o ímpeto e o recuo 
se processam é no justo lugar.

E crê em Deus Pai, Eduardo,
que nossas angústias são prolongáveis.

        (In: Laboratório de incertezas, p. 53-54)

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