Gota Do Que Não Se Esgota
 
                                          Cuti
cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
 
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas
 
cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto
 
ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso
 
é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga
 
cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo
 
é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota
 
cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da equidade
 
cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada.

                       (In: Negroesia, p. 73-74)

Incidente na raiz

 

Cuti

 

Jussara pensa que é branca. Nunca lhe disseram o contrário, nem o cartório.

No cabelo crespo deu um jeito. Produto químico e, fim! Ficou esvoaçante e submetido diariamente a uma drástica auditoria no couro cabeludo, para evitar que as raízes pusessem as manguinhas de fora. Qualquer indício, munia-se de pasta alisante, ferro e outros que tais e...

O nariz já não havia nenhuma esperança de eficácia no método de prendê-lo com pregador de roupa durante horas por dia. A prática materna não dera certo em sua infância. Pelo contrário, tinha-lhe provocado algumas contusões de vasos sanguíneos. Agora, já moça, suas narinas voavam mais livremente ao impulso da respiração. Detestava tirar fotografias frontais. Preferia de perfil, uma forma paliativa, enquanto sonhava e fazia economias para realizar operação plástica.

E os lábios? Na tentativa de esconder-lhes a carnosidade, adquirira um cacoete – já apontado por amigos e namorados (sempre brancos) – de mantê-los dentro da boca.

Sobre a pele, naturalmente bronzeada, muito creme e pó para clarear.

Lá um dia, veio alguém com a notícia do “alisamento permanente”. Era passar um produto nos cabelos uma só vez e pronto, livrava-se de ficar de olho nas raízes. Um gringo qualquer inventara a tal fórmula. Cobrava caro, mas garantia o serviço. Segundo diziam, a substância alisava a nascente dos pelos. Jussara deixou-se influenciar. Fez um sacrifício nas economias, protelou o sonho da plástica, e submeteu-se.

 

Com as queimaduras químicas na cabeça, foi internada às pressas, depois de alguns espasmos e desmaios.

Na manhã seguinte, ao abrir com dificuldade os olhos, no leito do hospital, um enfermeiro crioulo perguntou-lhe:

Tá melhor nêga?

Ela desmaiou de novo.

 

 

Texto para download

 

(In: Negros em contos, 2.ed., p. 118-119).

 Madrugada me Proteja!
(Monólogo em um ato)

 
 Cuti
Personagem
 
CELSO
 
Rapaz negro. Idade entre 30 e 40 anos. Usa terno e gravata.
 
Cenário
 
Uma rua de bairro grã-fino. Um muro alto guarnecido com grades.
 
QUADRO ÚNICO
 
É madrugada.
 
CELSO
(Em off)
 
Não se preocupa não, rapaz!... Eu tomo um táxi. Vai dormir... Não, não estou de porre, poxa! Tchau! Até segunda. Vai descansar que você bebeu demais... Isso!... Tá bem... Não se preocupa com isso... Não, não precisa chamar... Vou indo. Toma um café amargo que passa... Bom descanso! Tchau, tchau, tchau...
 
Pausa. Celso surge, o paletó sobre o ombro, tentando, com
dificuldade, afrouxar a gravata. Ouve-se o barulho de um
automóvel que se aproxima. Celso dando sinal.
 
Táxi! . . . Táxi! . . . Táxi! . . .
 
O som do veículo se afasta.
Merda! Vaziozinho... Esse aí tem a mãe na zona. Corno do cacete! Só pode ser um chifrudo um cara desse. Porra! Vê uma pessoa na rua a uma hora dessa... (Olha no relógio) Três e meia! É um canalha. Eu não estou mal arrumado nem nada?! Pô, quando o cara tá todo esculachado, aí vá lá... Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta... Mas, um crioulo na maior estica...? Terno em cima, cabelo cortado, barba feita, desodorante do mais caro, grana no bolso... Vem um safado com uma lata velha caindo aos pedaços – que o meu vale 100 daquela porcaria – vem, precisando ganhar o leite das crianças, eu dou sinal, a figura não para!? (Indignado) E deve ser um fodido... Porque um cara pra pegar um carro e ficar à noite toda atrás de freguesia só pode estar na pior. Ou então é ganancioso. Trabalha num emprego de dia, dá uma cochilada à noitinha e sai à luta de novo pra ver se enriquece. Enriquece porra nenhuma! Tá mais fácil dormir no volante, dar uma porrada com o carro e pronto... Era uma vez! (Pausa) Esses caras... Vai ver que aquele viado não gosta de preto. Será que não me viu? Viu!... Olhou pra minha cara e virou o rosto, como quem diz: "Te vira, negrão!" É... Viu sim. Acho que... É, ele passou debaixo da luz do poste. Sou capaz de adivinhar: tem trauma de infância. Vai ver que algum crioulinho enrabou ele quando era pequeno. (Pausa. Resignado, mas com certa mágoa) Não tem nada... (Descontraído) Mas que vai furar o pneu na próxima esquina, vai!... (Ri)
 
Barulho de outro automóvel se aproximando. Celso dando
sinal.
 
Táxi! Táxi!...
 
O barulho se afasta.
 
Ocupado!... Por que não apaga a luz, pô?!... Deixa rolar... Fazer o quê? (Dá uns tapinhas sobre a própria cabeça) Você também, viu, Celso!... Ir na onda do Osmar dá nisso. (Imitando) "Deixa teu carro, Celsão. Te levo em casa depois..." O cara toma todas, dá vexame na festa, você ainda traz ele em casa... Babá de bêbado. O cara não pode ver garrafa de uísque, pô! Parece criança em mamadeira. Bebe até babar. Hum!... Ficou bebinho da Silva. Silva nada! Bebinho pra Matarazzo! Tem grana. Só não sabe aproveitar. Trabalha na fábrica porque quer. O pai mesmo nem obriga. Fica lá inventando moda, querendo dar uma de gerente... Nem sei porque saio com um cara desses... (Pausa. Tenta avistar um táxi) Ah, o Osmar que se foda! Lei de Murici, cada um cuida de si.
 
Som de passos apressados. Celso assusta-se. Barulho de arma
sendo engatilhada. Celso encosta-se no muro com as mãos para
cima. Expressa muito medo.
 
Certo... Certo... Eu já entendi... Não precisa atirar... Tá certo... Grana?... Tem, tem grana sim. Fica frio, meu irmão!... Eu... Eu vou te dar a carteira sim... Mas, pode baixar a arma, meu irmão. Eu tô descoberto e não sou de briga... (Mais nervoso) Certo, certo... Eu vou pegar... Eu vou pegar... Fica frio...
 
Celso, com dificuldade, retira do bolso de trás das calças a
carteira e estende-a.
 
Toma aí... Pode pegar... Eu sou de boa paz, meu chapa. Ahn?... Certo, certo... Vou jogar, mas não precisa atirar, hein!...
 
Com muito jeito lança a carteira.
 
Certo? Tá até meia forrada; legal?... Pode pegar, sem susto... Não sou de briga não? (Pausa) Não... Quê isso?!... Eu sou crioulo, mas não sou manhoso não... Já pensou?... Eu, aqui de mão vazia, vou dar uma de valente, você com um trabuco desse? Ahn? Certo, certo, eu encosto.
 
Celso encosta-se no muro com as mãos para cima. Tentando
relaxar um pouco, descendo os braços.
 
Já valeu a noite, certo companheiro? Meu pagamento. Hein?... Pô, meu?! Mais grana? Se eu tiver mais algum são uns pichulé no bolso. Dinheiro de cigarro... Nem vale a pena!
 
Assustado, recuando como se fosse subir de costas no muro.
 
Certo, certo!
 
Levanta as mãos de novo.
 
Não leva a mal. Tô só trocando uma idéia com você... Vou pegar. Mas... (Apelativo) Dá pra abaixar a arma, meu irmão? Eu sou de paz.
 
Celso coloca a mão no bolso direito – mantendo o braço
esquerdo levantado – retira umas notas amassadas e joga.
Depois – levantado o braço direito – retira uns papéis do bolso
esquerdo e joga também em direção ao "ladrão", o público.
Em seguida retira do bolso traseiro um lenço e lança-o na
mesma direção.
 
É... Eu te falei... Agora não tenho mais nada... Joguei o lenço porque tá limpinho... Se quiser aproveitar... Ahn?... Não, não tenho. Pode ver, ó...
 
Celso tira a gravata e exibe o peito e o pescoço.
 
Não uso... Aliás nunca gostei de correntinha... (Tenta ganhar confiança do ladrão) Minha mulher me deu uma, mas... Nem usei, acho até que perdi.
 
Intimidado, mas sem pavor, volta a levantar os braços.
 
Que isso!? Você acha que eu vou rebentar correntinha diante dum trinta e oito desse?... Tá certo, tá certo!...
 
Até este momento, Celso está se ajeitando com o paletó nas
mãos. Vai tirar a camisa social pra fora da calça,
o paletó cai. Ele termina
de tirar a camisa fora da calça e sacode-a bem.
 
Olha aí, não te falei? Não tô escondendo jogo não... Ahn? Ah, sim, o paletó, você quer o paletó... Tá, tá certo... Posso chutar?
 
Celso chuta o paletó. Não consegue deslocá-lo muito.
Assustado.
 
Tá, tá, tá... Calma, calma, calma... Eu vou jogar, legal?... Fica tranquilo... Não tô armando treta não...
 
Celso vai, com muito receio em direção ao paletó. Agacha-se,
sempre olhando em direção à suposta arma, dobra o paletó,
bem dobrado e atira-o, com cuidado, mas com força, em dire-
ção ao ladrão. Relaxando um pouco.
 
É, o que tem aí é só documento... Tá certo, mas se você tivesse falado em cheque eu tinha entregado o talão... Você tá no seu direito... Não é papo furado, não. Mas eu entendo... Eu também já tive dificuldade na vida e eu sei como é que é... Essa recessão... (Procurando relaxar) Na falta de emprego, cada um tem que se virar como pode, certo? (Intimidado) Ah, claro, claro... Se você não gosta... Bem, aí tem mais é que não trabalhar mesmo... (Pausa) É, eu ponho algum documento na carteira. (Queixoso) É difícil, né, rapaz, tirar documento, não é?... Hein? Ah, essa daí... Bem, é... é a minha noiva... Ah, sim, quer dizer, é a minha mulher... (Encabulado) É... Não, que isso?... É que deu certo. Sabe como é que é, gostou do crioulo, a família não pôs areia, a gente chegou junto... Não, não, também não é assim... Eu acho que não tem nada a ver. Ela é uma branca decente... Mas você também é loiro e eu não posso dizer... (Assustado) Não, não, não quis te ofender... Só falei que não tem nada a ver. Pra mim todo mundo é igual. Preto, branco, amarelo... Como? Eu? Não, não acho não... Eu não sou melhor que você. É que... Bem, eu dei mais sorte no emprego... Isso não tem nada a ver. Cor não tem nada a ver. (Ri tentando descarregar tensão) Ah, isso aí eu não sei... É, é isso mesmo: Celso Branco de Souza. Meu nome é esse mesmo. Sei lá o que meu pai arrumou... Bem, tem cara por aí que tem sobrenome "Negrão," vai ver tem olho azul, é branco... Esse negócio de nome é um rolo... (Ri amarelo) Tem Coelho, Carneiro, Leitão... É... (Pausa) Como? Não. Eu, racista? Não, que isso!? Meu melhor amigo é um branco. Só que não tem o cabelo loiro igual o teu. O cabelo dele é preto, liso... Acabei de deixar ele em casa... Pra mim não tem diferença. (Acuado) Ahn?... Ah, sim... O "bobo". Ah, certo. Tudo bem, tudo bem...
 
Retira o relógio com certo tremor nas mãos.
 
Posso jogar? Não vai quebrar não? Ah, pô, assim...! Se você não segurar você me dá um tiro, pô!?... À toa... Eu não tô nem aí com relógio. É teu, meu chapa! (Pausa) Tá legal!... Tá legal... Mas, pô, segura... Não vai deixar cair... Você vê, eu entrego tudo, na manha, sem reagir... Aí, segura, hein!...
 
Celso lança o relógio com muita cautela. Não há barulho de queda.
Celso respira aliviado. Descontrai-se.
 
É, é bom sim. Comprei de contrabando... Não, não sou entendido do assunto, mas a gente... Podendo, a gente faz um negócio bom, é ou não é?... Um amigo lá do serviço que faz uns trambiques. Chega lá na Baixada Santista e "descola" uma muambazinha... Não, eu não sou chegado... Só comprei dele esse "bobo" e uma caneta que eu dei de presente pro meu filho... Você viu a foto dele aí na carteira... E taí... Um garotão!... Oito anos... (Pausa) Mas... E aí, tô liberado?
 
Sem jeito. Desapontado. Indignação profunda.
 
Pô, meu irmão, aqui na rua?... (Tenta ganhar tempo) Sabe como é que é... Iiii, rapaz, vem vindo um carro aí... Certo, certo...
 
Som de automóvel num crescendo. Celso deita e se encolhe.
O ruído de motor se distancia. Ainda no chão, expressa seu
temor.
 
Certo... Certo... Certo... Mas não atira... Não atira...
 
Levanta-se. Prensado contra o muro, como se quisesse
escalá-lo de costas mais uma vez, vai despindo-se.
Atrapalha-se para tirar a gravata, camisa e os sapatos. Toda
esta operação vai sendo realizada de pé.
 
Tudo bem! Eu vou tirar... Dá só um tempo... Tá, tá, tá... Tô terminando...
 
Enrola, por fim, toda a roupa e joga para o "assaltante". Está
preocupado em não ser visto seminu, apenas de cueca. Olha
para os lados. Treme. Humilhado.
 
Pô, mano, vai me deixar na pior, pô!... Vou ficar pelado, aqui?... O que que tu vai fazer com uma cueca, pô?... (Intimidado) Tá certo, tá certo... Mas, pô, não vai atirar, né?... Eu tô fazendo tudo direitinho... Pô!...
 
Assustado, vai tirando a cueca, olhando para os lados e para
o ladrão.
 
Tudo bem... Tudo bem...
 
Amassa a cueca e lança-a. Cobre a genitália com as mãos.
 
Tá tudo O.K!... Não vai atirar, hein, pô... (Implora) Abaixa a arma aí, vai... Eu não tenho mais nada, poxa!... Não vou caguetar pra ninguém...
 
Encosta-se no muro.
 
Certo, certo...
 
Vai agachando-se, encolhendo-se. Relaxa um pouco. Passos se
afastando. Celso vai se levantando. Entre os dentes.
 
Filho da puta...
 
Ouve-se um estampido e os passos de alguém correndo. Celso
cai e fica imóvel. Pausa. Som de sirene de rádio patrulha.
Celso levanta-se em pânico. Tenta se cobrir com as mãos, mas
termina optando pela fuga. Corre pelo palco. Um foco de luz
agita-se na perseguição. Ouvem-se mais tiros. Quando o som
da sirene aproxima-se ao máximo, Celso já está acuado, sob o
foco de luz.
 
VOZ
(Off)
Documento!...
 
Celso, derrotado, cobre a genitália. Expressa profunda
indignação. Por fim, começa a rir, num crescendo. Traduz
indignação e graça. Chega à gargalhada de pura gozação,
mantendo sempre as mãos sobre a genitália. Súbito,
petrifica-se. Vira estátua. A luz vai amortecendo.
Simultaneamente, ouve-se um hino cívico assobiado.
 
Fim desta peça. 

(In: Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro, p.103-112).

Lembrança das lições

Cuti

Sou na infância.

A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. Tento segurar a investida, franzindo a testa e petrificando o olhar. Mas não dá. Um calor me esquenta o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça para que ninguém as veja.

A aula continua. E eu detectando risos e fazendo um grande esforço para não lhes dar crédito. Enquanto a professora verifica umas fichas amarelecidas, a sala enche-se de gargalhadas surdas. Ela prossegue. A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. Ela, após tomar fôlego, recomeça, sempre do mesmo jeito acentuado:

Os negros escravos eram chicoteados... – e dá mais peso à palavra negro e mais peso à palavra escravo! Parece ter um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado. Novos suplícios são narrados junto com argumentos entrelaçando-se em grades. Vou mordendo meu lápis, triturando-o.

O clima pegajoso estende-se na sala. O outro garoto negro da classe permanece de cabeça baixa o tempo todo. Nenhuma reação. Uma caverninha humana. Imóvel.

A minha respiração sinto dificultada.

É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco.

Sussurro uma vingança para depois e sinto, pela primeira vez, um ódio grande e repentino, metálico, um ódio branco. A professora, em face da minha reação explodindo nas contrações do rosto, pede atenção com forte autoridade. Manuseia outra vez as fichinhas velhas e prossegue:

Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...

Tremo, encolhido, dolorido diante da possibilidade de ser chamado. Meu coração bate na vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala, sem pedir licença. Chego à privada em tempo.

Defeco o desespero das entranhas.

Olho as paredes e a porta do cubículo. Estão todas rabiscadas. Procuro espaço. Contenho, com bastante esforço, um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um pedaço de jornal não sujo de todo e fico sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso sanitário desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das ideias: “... ponho fogo na escola... veada filha da puta... papel de caderno debaixo da mesa dela... como a bunda de todo branquinho... acendo fósforo... quem me xingar de neguinho... são tudo veado... vou comprar um canivete... dou porrada mesmo!...” E a porta passa a me servir de lousa: “... branco caga no meio...”. Acho graça das coisas que escrevo e continuo.

A agressividade estridente da campainha surpreende-me, então, com meu lápis sem ponta. É o término do período.

Saio. Perambulo sozinho pelas ruas, carregando um mal-estar no meio dos cadernos e um nó de silêncio no peito. No dia seguinte, nada de escola. Vou comer bananas nos vagões da Sorocabana e Joel vem comigo. É meu vizinho, negro também, de outra turma na escola. Entre sutilezas de nosso diálogo, percebo que a “história” da escravidão já espancou mais um por dentro. A gente conversa muito, mas, nesse particular, fica só um silêncio cúmplice, uma bronca em comum, uma solidariedade de quem divide a dor. Não tocamos no assunto, contudo o protesto vem do nosso jeito: falta em cima de falta e nota vermelha, e a gente falsificando os boletins; cartinhas da diretora para os nossos pais, e a gente fazendo assinaturas falsas. As mentiras sempre ao lado da verdade de nosso sentimento de revolta.

Nosso empenho contra os compromissos da escola não dura muito. Alguém vai a nossas casas e dá com a língua nos dentes. Eu e Joel, na volta de um belo passeio, começamos a apanhar no meio da rua. É uma grande surra, de cinta. Fico com vergões nas costas e Joel com uma marca de fivela no rosto para todo o sempre.

A escola de novo. A vigilância aguçada dos nossos pais. Eu e Joel, cada vez mais, com fama de valentes.

Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Neguinho-eu e do Neguinho-Joel. O medo deles é que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito.

É o dia da festa. O dia do diploma. Nossos pais comparecem, sorriem às professoras, e vamos todos cantar o hino debaixo da bandeira verde, amarela, azul e branca. Verde... Meu pai e minha mãe verdes por um instante... CARNE VERDE. E as gargalhadas surdas balançam o pendão da esperança. Com a mão direita sobre o lado esquerdo do peito, não dou importância ao Joel, que faz piadas.

Ouviram do Ipiranga...

Todos cantam. Fico mudo e triste, até sentir dentro do peito um batuque que me vem de longe, do que não sei de mim. Euforia inexplicável. Descubro o Coração.

O tempo não tem tréguas e as lembranças servem de alerta e lamento. Não é todo dia que se é lançado ao passado como uma flecha, em busca de um alvo que sempre nos é obscuro. 

Depois do grupo escolar, cada um para seu lado. Um namoro entre uma irmã de Joel e um primo meu, que mora lá em casa, faz com que as duas famílias entrem em choque por causa da virgindade perdida e a gravidez da moça. Nas discussões não falta, nem de um lado nem de outro, o adendo “nego (a)” à frente das pedradas de palavrões. O atrito fica forte, com tira-limpo aos socos e polícia. A família de Joel muda-se para longe.

Nessa época as dificuldades sobem na mesa de casa. Arroz e feijão sem mistura durante meses, com certos dias de nem isso ter. Meu pai se consumindo em uma cama. Eu e o primo à cata de emprego, aturando nãos e fazendo todo “bico” que aparece. Nasce o filho de meu primo com a irmã de Joel. Ela e a criança acabam permanecendo com a gente. Dão o nome de meu companheiro. Fico contente, embora a referência tenha sido a um nosso parente distante.

Depois de tempos – Joel já em um empoeirado das lembranças –, venho saber de seu destino.

É a primeira comunhão de meu sobrinho. Na porta da igreja tenho a notícia de sua prisão. Um conhecido branco, dos tempos daquela amizade, narra com tal ênfase as peripécias de Joel pelo mundo do crime que me faz lembrar dona Isabel, a professora. Desconverso. Tento afogar Joel no esquecimento. Em vão.

Hoje, mais uma entre tantas prisões: Preso o marginal Neguinho Joel – foto em primeira página. A marca da raça e a marca do golpe da fivela no rosto.

As máquinas lá fora não dão folga pra gente. O banheiro dessa fábrica torna-se o único refúgio, apesar do cheiro. Aqui venho ler jornal quando o chefe não está por perto.

Nesta manchete de hoje, no rosto de meu amigo, aquela marca aponta um grito aparafusado com jeito na minha garganta. Mais um aperto: Preso o marginal Neguinho Joel.

Porta e paredes rabiscadas já não adiantam nada. Já nem servem mais ao desabafo!

(In: Contos crespos, p. 160-164).

 

Texto para download:

Muitos cortaram careca
escorregaram na gosma de inúmeros alisantes
ou se acariciaram com ferro em brasas sobre o couro
cabeludo
 
outros até à nuca
desesperados se cobriram
OPERAÇÃO PENTE FINO                                                                                                                                                      com as cavalares
perucas
 
e não adiantou nada
por mais lucro havido
na indústria de cosmético
 
jamais o racismo
mesmo com seu riso químico
será ético
 
neste comércio
nutre-se
da inferiorização constante e seu complexo.
 
(In: Cuti, Sanga, p. 43).