Memorial

A hora-ruim, do meio-dia. A sexta, o demo à solta no mundo, hora de recolhimento e rezação. Apeamos. No outrora-um-pátio, entrada de grande casa, fazenda antiga das de fama, sobrado perobal. Imaginando dava para ouvir os bois, na azáfama dos dias idos, o café cheiroso, a sofrida escravaria, o alambique suando sua cachaça. Assentados no batente de pedra preta preparamos o fogo, esquentar o feijão da jornada a ser longa, rumo do São Gonçalo. Nem não ouvimos os passos descalços, felinos rudes, do ancião que nos chegou por entre as moitas de gravatá e erva-cidreira no antes-quintal. Velho que perdeu da lembrança o tempo, visão saída de uma história de antanho, conto de assombrar. Mas ainda vivo, mesmo, pitando um cachimbo de barro cozido-queimado, em fogo de terra, seus olhos eram só crianças rindo, rapazes, olhos de não querer ir. Avô-menino. Ele: Tadeu, Sôtadeu pai-véio, do Queluz, ali vivera inteira vida, em moleque escravo foi. “Aqui pousô o Imperadô e sua fia Izabé, andano mundo...” disse em sua voz que era um só-suspiro, quase um ah. Mostrou-nos a medalhinha de um santo apagada já a efígie, “presente-da-princesa-branca”, piedosa em suas saias todas, no beija-mão.

(In: Memorial, p. 23-24)

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Ia-se bem a fazenda, Sôtadeu remembrava, voejava em seus olhinhos de criança no mundo só, voltava ao tempo longe, lá. De tudo dava, fazia gosto: capado, rapadura, milho, frutal frutaria, galinhas, mel, madeirame. Peroba e cabiúna, candeia e jacarandá. O velho Pacheco e a filha por casar; matriórfã, tia-velha a cuidava. Moça loura de olhos d’água, pele alva de não pegar sol, suave e alegre, que prazia cantar e coser, só só, Angélica, angelical. Léguas em volta só reinava, os mancebos todos seus criados, de adoração. Um sorriso seu e o mundo se mudava todo em ouro, alegre-feliz, bobo mundo. Só mandava, mesmo se pedisse. Só mandava. Nem o pai lhe podia oposição, amor que grande lhe tinha. Nem lhe ordenou marido, como os costumes, nos oitocentos e tantos – do Imperadô. Um dia o velho enfermo mal, de longe tudo se arranjou do melhor da medicina, da capital, até os reclusos tambores da antes-senzala soaram noite adentro esconjurando o mal, benzeções. Calou-os o padre, chegado com o doutor novo, curador do governo. Desenganado, o velho sem netos. A filha-princesa decide então casar-se às pressas, mandou arautear nas grotas todas, nos Coelhos, Acuruí e São Vicente. No Santo Antonio do Monte e nos Portões. Deram-se as novas em Sabará e Ouro Preto, nas Congonhas serranas. Os pretendentes todos, chegando e chegando, com presentes; rosas muitas, garrotes taludos, baios encrinados, cofretes com anéis, fazendas-de-França, perfumes de mil-reis a gota, licores de Portugal, sabonetes Granado, colares. A todos recebeu, igual igual, sem preferência. Uns só com os pais, a pretexto de visita. Outros com a família quase inteira, para dias, a casa se enchendo, os muitos quartos e varandas vozeirais. Matou-se um boi, depois outro. Era uma quase festa, não fosse a desdita, doença malsã, quebranto sem cura de reza. Armou-se botica no gabinete onde assistia o doutor que, a mando do chefe, atendia a todos, velhos e crianças, mesmo os pretos, rijos, que lá iam de-chapéu-na-mão, descalços como no tempo do Chico Capitão, do cativeiro, do açoite brabo no tronco que se derrubou depois, muito depois, quando a Calado recebeu o monarca. Veio até um George, inglês da Morro Velho, louro e magro rapaz de uais e gudis, falaz. A nenhum esperançou, nada de mais, desamou e não quis, desconversou.

(In: Memorial, p. 25-27)

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Um um, de nome João, chamado Titonho, pobre de nada ter, boa-gente do Córrego do Lobo, com sitiozinho de pouca cana no Acuruí, defronte o rio, até cuja casa chegava forte o estrondo da cachoeira grande do Velhas e a neblina fria, noites adentro, trovejo na cheia. Seu pai, anos antes, comprara o sítio ao velho Pacheco em muitas quantas prestações, que o velho em pessoa costumava ir receber, à guisa de visitar os muitos afilhados no arraial. Titonho sempre à enxada, nunca fora fôra, só-ali só, só. Rapagão bem-feito, braço forte, pele tostada ao sol, digno, respeitoso, silencial. Fidalgaz. Foi à Calado, a ‘do Cruzeiro’, levar os mil-réis da prestação, o combinado. Um balaio de doces e uma partida de farinha, por ser da melhor de léguas muitas, qual bahiana, de fama, fina e amarela, rara. Apeou, saudou, entrou. Louvado seja Nossinhô Jesus Cristo... “Louvado seja...” A moça o viu, perdeu falar, tresriu no olhar, palpitou. Ele sem gracejos, sem graça, pagou, pouconversou curto, saiu. Sem dar ar, firme rio acima. Junto o perdigueiro, soldadaz, escudando. Ela desentendeu, dispensou os querentes restantes, insoniou, casamental. Publicou: João Antonio Corrêa dos Reis de Tal, Tinhonho pobre, cristão do arraial, sem ouro ou cabedal, seria o noivo. Ele, já comprometido com certa Esmeralda, vivente no Chancudo, beleza morena humilde jambo, sobrinha do padre Joaquim, pároco da Boa Viagem de Itaubira do Campo. De palavra e amor. Data marcada para o ano, apadrinhados.

(In: Memorial, p. 28-29)

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Cavalo arreado, hora de ir. De chapéu na mão, o ancião nos rezou um adeus negro.

(In: Memorial, p. 30)

 

 

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Entradas e Serviços

(Para Milton Nascimento)

Quando eles chegaram
eu estava absorto
no meu tempo
trabalhando ferro,
plantando,
fazendo
minhas próprias guerras.

Tinha as portas abertas
pois pouco sabia deles
entraram com suas armas
me tiraram da cama
justo quando descansava.

Me puseram correntes
e caminhei
os mares
no ventre fétido
de grandes barcos.

Cheguei em terras
que haviam tomado de outros
fiz tudo por aqui
enquanto eles
de braços cruzados,
bebiam meu suor.

Seu tédio era tão grande
que ainda lhes dei
chula, samba, mambo
blues, rumba, calipso
jazz
para vê-los, pelo menos
mexer suas carcaças inertes.

Hoje vendo esse passado
posso, devo dizer
não.
Estou mais do que farto
de entrar pela porta dos fundos.

(Atabaques, p. 15)

Maio

Quero ler na noite, cor, irmão
o rosto dos irmãos, braços, peitos
todos lindos, nus, descendo todas
as colinas, transpondo barreiras
se espalhando na semelhante
marca serpente do asfalto. 

Quero ver colares, gritos, danças
e assumir como vestido agora
o manto brilhante do que vem,
o ato, o desacato, a consciência,
e descobrir depois de tudo a luta pela
felicidade interior de ser negro.

(O arco-iris negro, p. 41)

 

Identidade 

  

Houve um tempo em que 
constava de sua carteira 
o dado cor 

na minha: pardaescuracabeloscarapinhados. 

  

Diante de espelho, me pergunto 
que faço com estes lábios grossos, 
este nariz achatado? 
Que faço com esta memória 
de tantos grilhões, 

destas crenças me lambendo as entranhas? 

  

Será que não é demais ter o direito 
de ser negro? 
Causa espanto? 

Pardaescura é o aspecto que vocês deram 
à nossa história. 

  

Morra de susto! Sou, vou sempre ser: NEGRO! 
ENE, É, GÊ, ERRE, Ô. 
Aqui, Ô! 

 

(Atabaques, 1983.) 

M A T A 
 
Diante da tua presença 
Sinto-me tragado inteiro, de forma intensa 
Qual curumim buscando teto 
Se a noite chega, densa 
Sou todo intento 
Buscando em ti minha negra 
A toca, a taba, a oca 
Descanso da caça, da lida, da roça 
 
Suado, mergulho em teu riacho 
Brinco em tua calma água 
Bebo teu vinho de cachos 
Desde a palma 
Em uma contínua sede, sugo tua seiva 
De negra clorofila trocada do verde 
 
Na intimidade de tuas redes 
Enrosco-me em teus cipós, nós e ramas 
Donde antes do sono tecemos tramas 
 
Daí me transformo em vento 
E adentro tuas arestas 
Atrevido em tuas frestas, sem drama ou atalhos 
Caminhos nunca falhos, copas, folhas, galhos 
Até o completo mergulho no mais doce igarapé 
Onde bicho, carrapicho 
Eternizo-me, 

  

Moco, broto, solto, semente, caipora 
Lenda 
Animal dentro das fendas 
Grotas e segredos 
Curando-me de todos os medos 
Invasor, sou teu grileiro 
E somos juntos no escuro 
Sobretudo 
Oxigênio e Futuro 

 

(Cadernos Negros v. 23)